O Matuto adora cafés. O espaço, bem entendido. O Matuto considera que um café deve ser um lugar aconchegante, íntimo. Deve estar-se num café como na nossa poltrona favorita. O aconchego pode vir dum recanto com livros e revistas (sim! Muitas revistas!); mesas de madeira; um piano no canto; uma parede desnudando os tijolos; janelas rasgando a paisagem; almofadões; luz suave; um cesto com discos de vinil; uma lareira, e claro, um jazz clássico no ar. Eis umas dicas para quem deseja abrir um café. Mas adiante que se faz tarde!
O Matuto afirma de pés juntos que os seguintes relatos são genuínos. Em comum as duas histórias têm o café e a viuvez. A primeira passa-se em Lisboa. Dona Cremilde habita no Bairro dos Actores, esquina da Carlos Mardel com a Lucinda do Carmo. Dona Cremilde vive a sua viuvez entre o tapete gasto e as cortinas tristonhas. O piano de mogno fala de abastanças passadas. As porcelanas e as poltronas exalam aromas remotos. Dona Cremilde nunca se agasta. Há muito que renunciou ao júbilo da vida. Embrulhou-se nos seus fantasmas e cobriu-se de austeridade. Todavia, Dona Cremilde tem um vício. Quando o relógio de sala bate as quatro da tarde, Dona Cremilde abandona o seu crochê e veste o seu melhor vestido preto. Solene. Seca. Elegante. Sai do seu prédio e vira em direcção à Praça João do Rio com as suas magnólias. Sobe como se fosse para o Areeiro, mas vira à esquerda na Avenida Paris. Passa em frente à Praça Pasteur e desemboca na Praça de Londres. A Igreja São João de Deus aparece na sua frente. Dona Cremilde tem um vício. Irá confessar-se? Não. No seu passo miudinho esgueira-se pela Praça em direcção à pastelaria Mexicana. Entra decidida. Em frente à vitrine dos bolos o seu olhar saltita guloso. Depois com um dedinho firme aponta: “este aqui, aquele ali e mais este e este”. Devagar, Dona Cremilde come os seus bolos. Depois o seu dedinho entra de novo em acção: “aquele, e mais aquele ali”. Dona Cremilde come desfrutando, apreciando, mastigando. Dá gosto ver. A cidade lá fora agita-se. À sua volta a balbúrdia do café. Dona Cremilde serena e tranquila, diante dos bolinhos. Solene. Seca. Elegante. Quase desdenhosa – observa o Matuto.
A outra história acontece na cidade que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio. Dona Laura gastou-se em desconsolo e lágrimas. A viuvez encontrou-a ainda de boa figura. Mas a mágoa assentou garras afiadas no ânimo de Dona Laura. Deixou de se arranjar (arrumar, no Brasil, por favor). Não mais se aperaltou. Deixou de comprar roupa. Deixou de almoçar e jantar fora. Apenas visita diariamente o café do bairro. Um copo de Guaraná, dá-lhe para uma hora. As amigas convidam-na para festas, mas Dona Laura suspira e fica-se prostrada. Fazem-lhe companhia no café habitual. Ela, ensimesmada é presença distante. Olhos vermelhos de choro. O rosto sem pintura. Cabelos levemente desgrenhados. Apenas bebericando um eterno Guaraná. Elegante na sua pública melancolia. De repente, na rua um pregão familiar: “pamonha, pamonha! Pamonha de Piracicaba. O puro suco do milho verde!” A sonoridade familiar desperta Dona Laura. O ritmo do convite ambulante toca algo no fundo de si mesma. Aos pulos e desprezando a compostura fina de dama com classe, Dona Laura embica rua abaixo ao encontro do milho verde moído, envolto na palha cozida. “Que saudades duma pamonha” – delira Dona Laura. No café as amigas entreolham-se: “Só ela escutou esse pregão”! E, rapidamente Dona Laura inaugura uma alegre e doce convalescença.
O Matuto nada entende dessas coisas de depressão – agora diz-se saúde mental! Mas uma coisa o Matuto sabe: cafés, bolinhos e docinhos, combinam com senhoras elegantes.
NOTA: Singela homenagem do Matuto à mulher pelo dia 8 de Março.