‘A veneração do imperfeito’

Os mestres do chá japoneses preferiam os objetos rústicos e campesinos de linhagem coreana ao imaculado celadon chinês. E tinham uma frase curiosa para justificar essa preferência.

«Pegue nisto», dizia-me um amigo, enquanto me convidava a segurar uma taça de chá japonesa (de preferência com as duas mãos). «Já viu a leveza? Não dá para acreditar, pois não? Uma particularidade extraordinária da cultura japonesa é que não há nada que pese. Nem as casas».

Lembrei-me destas palavras ao olhar para uma fotografia a preto e branco do Salão da Fénix, no templo budista de Byōdō-in, em Quioto. Aquelas cornijas subtilmente levantadas conferem ao edifício uma enorme sensação de leveza. Aliás, a combinação de linhas verticais, horizontais e curvas tem qualquer coisa da ligeireza da arte da caligrafia.

Joan Stanley-Baker exprimiu isso melhor que ninguém no seu livro Japanese Art (Arte Japonesa): «O ângulo erguido dos beirais, realçado pelo reflexo da água em volta, dá uma impressão de voo gracioso e iminente».

Não é o único momento do livro em que a veia poética da autora, a que certamente não é alheio o seu sólido conhecimento da cultura nipónica, emerge para nos oferecer uma descrição belíssima. A propósito de uma paisagem pintada na mesma época em que o Salão da Fénix foi erguido (século XI), escreve ela o seguinte: «Veja-se, por exemplo, os volumes de nuvens flutuando livremente, onde o pigmento é salpicado, em vez de pincelado. As nuvens parecem respirar; e assim parecem dotadas de movimento e de emoção num espaço que de outro modo estaria imóvel».

Eis, mais uma vez, a leveza – neste caso das nuvens e do gesto do artista. Mas também uma certa lentidão que associamos à vida no mundo de antigamente.

Essa lentidão é uma das marcas dos rituais, que por razões óbvias não podem ser feitos a despachar. E com isto voltamos ao início desta crónica, ao ritual do chá. «Beber chá em ambientes tranquilos foi instituído pelo mestre do chá do século XV Shukō», escreve Joan Stanley-Baker. «Ele inventou a cerimónia do chá como uma forma de arte para ser fruida numa pequena sala projetada especificamente para isso […]. Promoveu ideias espirituais de ‘harmonia, respeito, pureza e tranquilidade’ e em 1582 construiu a sua casa de chá, o Tai-an, numa cabana na sua terra natal, Yamazaki. Baseada em formas assimétricas e irregulares, esta pequena estrutura de cedro é simples e rústica, com paredes de terra texturada e vigas de madeira não polida à vista».

O princípio da imperfeição (o pintor e escritor Okakura Tenshin chamou-lhe mesmo «a veneração do imperfeito») aplicava-se, naturalmente, também à cerâmica usada no ritual.

Os mestres do chá japoneses preferiam os objetos rústicos e campesinos de linhagem coreana ao celadon (a preciosa porcelana cor de jade) chinês. E tinham uma frase muito curiosa para justificar essa preferência: «A taça coreana imperfeita espera por mim mesmo quando não estou em casa, enquanto a taça chinesa não espera por ninguém».

A perfeição da taça chinesa torna-a completamente auto-suficiente – não precisa de nada nem de ninguém. Mas também por isso um pouco fria e desumana.