As questões de sexo, ou de género, têm sido uma constante no debate público ao longo das últimas décadas.
O primeiro conflito prende-se, desde logo, com a própria linguagem. Como a primeira frase deste texto denota, de que falamos quando falamos de sexo? E de género? Serão os dois conceitos a mesma coisa? Segundo três fontes cuja credibilidade é amplamente aceite – o Oxford English Dictionary (OED), o dicionário Merriam-Webster, e a Faculdade de Medicina da Universidade de Yale -, não, sexo e género não são a mesma coisa, mesmo que sejam utilizados como sinónimos frequentemente.
DIFRENÇAS LINGUÍSTICAS Segundo o OED, o género é “um eufemismo para o sexo de um ser humano, muitas vezes destinado a enfatizar as distinções sociais e culturais, em oposição às biológicas, entre os sexos”. “O sexo é categoria biológica”, pode ainda ler-se no website da Oxford Reference, “enquanto o género é a expressão culturalmente moldada da diferença sexual: a forma masculina como os homens se devem comportar e a forma feminina como as mulheres se devem comportar”.
O dicionário Merriam-Webster define sexo como “uma das duas formas principais de indivíduos que ocorrem em muitas espécies e que se distinguem respetivamente como fêmea ou macho, especialmente com base nos seus órgãos e estruturas reprodutoras” e género como “os traços comportamentais, culturais ou psicológicos tipicamente associados a um sexo”. Esta última fonte dedica ainda uma breve menção à distinção entre os dois conceitos: “O uso de sexo e género não está de modo algum estabelecido. Por exemplo, enquanto a discriminação foi muito mais frequentemente associada ao sexo desde os anos 60 do século XX e até ao século XXI, a expressão discriminação de género tem vindo a aumentar constantemente a sua utilização desde os anos 80 e está em vias de se tornar a colocação dominante”.
Segundo a Universidade de Yale, que utiliza um estudo levado a cabo pelo think tank Institute of Medicine, “no estudo dos seres humanos, o termo sexo deve ser utilizado como uma classificação, geralmente masculino ou feminino, de acordo com os órgãos e funções reprodutivas que derivam do complemento cromossómico”. Porém, e também no estudo de seres humanos, “o termo género deve ser utilizado para designar a “autorrepresentação de uma pessoa como homem ou mulher, ou a forma como essa pessoa é tratada pelas instituições sociais com base na sua apresentação de género”.
De forma resumida, o termo género parece estar cada vez mais cimentado na linguagem contemporânea, abrindo todo um novo leque de interpretações, cuja fluidez tem como objetivo escapar às características pré-determinadas pela biologia humana.
CONLFITO DE DIREITOS Uma vez aberto este leque, abre-se também o caminho para algo que tem sido objeto de constantes reivindicações: a autodeterminação de género. De forma curta, todos os indivíduos devem possuir o direito de determinar o seu próprio género, independentemente da predeterminação biológica. Mesmo que, à primeira vista, possa parecer algo evidente e fundamental para a realização da liberdade individual, o conflito surge quando este direito coloca em causa o direito de outrem.
“O único propósito para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é evitar danos a outros”, escreveu o filósofo britânico John Stuart Mill no seu ensaio Sobre a Liberdade, em 1859. O Harm Principle (Princípio do Dano), como ficou conhecido, pode resumir-se, por outras palavras, através da máxima amplamente utilizada, cunhada por Herbert Spencer, “cada homem é livre de fazer o que quiser, desde que não infrinja a igual liberdade de qualquer outro homem”. Assim, e segundo este princípio, um indivíduo poderá escolher livremente o seu género, mas a sua liberdade acaba onde começa a de outro indivíduo.
Segundo o direito de autodeterminação de género, seria permitido a um homem biológico utilizar uma casa de banho feminina, participar no desporto feminino, ingressar numa prisão feminina, etc. É neste ponto que o conflito surge. O homem biológico, que fez uso do seu direito de autodeterminação de género e se identifica como mulher, estará a respeitar os direitos das mulheres biológicas que, e utilizando os exemplos anteriores, utilizam uma casa de banho reservada a mulheres, que participam no desporto feminino, e que cumprem pena num estabelecimento prisional exclusivo a mulheres ou, por outro lado, poderá estar a prejudicá-las?
O CASO DE ISLA BRYSON Em 2023, na Escócia, um escândalo colocou em evidência o problema anteriormente referido. Adam Graham, condenado a oito ano de prisão por violar duas mulheres em 2016 e 2019, passou a identificar-se como mulher, de seu nome Isla Bryson, enquanto aguardava pela sentença. Segundo noticiou a BBC, em fevereiro de 2023, Bryson foi inicialmente remetida para uma prisão feminina, o que gerou debates acalorados “na sequência de preocupações sobre a segurança de qualquer mulher detida ao lado de um agressor sexual transgénero numa prisão feminina”. Shonna Graham, ex-mulher de Bryson, disse, citada pela BBC, que, a seu ver, “ele é um homem, cometeu o crime como homem… deve cumprir a pena numa prisão de homens”. “A mulher de 31 anos”, revelou ainda a mesma agência de notícias, “disse que, durante a sua relação, nunca houve qualquer sugestão de que o seu marido quisesse tornar-se mulher”.
O caso levou o Governo britânico a rever o quadro jurídico nestas matérias: “Alterámos as regras”, disse um porta-voz do Executivo, citado pelo The Telegraph, “para que as mulheres transexuais que tenham sido condenadas por crimes sexuais ou violentos – ou que mantenham os órgãos genitais masculinos – não possam ser mantidas numa prisão feminina, exceto em circunstâncias verdadeiramente excecionais”.
Existem também outros casos que deixam este conflito bem patente. Por exemplo, após a “Lei Trans” implementada pelo Governo espanhol, vários membros do exército exploraram uma lacuna. “Em Ceuta e Melilla”, escreveu, à data, o diário espanhol El Mundo, “um buraco negro escorre sob a forma de 38 homens, na sua maioria membros do Exército, da Guarda Civil e da Polícia Local e Nacional, que solicitaram uma mudança de sexo para obterem diferentes benefícios, mantendo o seu nome masculino, a sua aparência e o seu estatuto civil”. Da outra margem do Atlântico chegou-nos o caso mediático de Lia Thomas, uma nadadora transgénero que esteve presente em competições femininas e que levou as suas colegas a ameaçar um boicote. No verão do ano passado, Thomas perdeu uma batalha judicial contra a World Aquatics, identidade responsável pela administração de competições internacionais, que “proibiu as mulheres transexuais que tenham passado pela puberdade masculina de competir nas provas femininas”, reportou a NBC.
INCOMPATIBILIDADE INCONTORNÁVEL “O feminismo”, argumentam os editores do canal História, “tem raízes nas eras mais antigas da civilização humana”. “Normalmente”, continuam, “divide-se em três vagas: o feminismo da primeira vaga, que se ocupa dos direitos de propriedade e do direito de voto; o feminismo da segunda vaga, que se centra na igualdade e na luta contra a discriminação; e o feminismo da terceira vaga, que teve início na década de 1990 como reação à segunda vaga, que privilegiava as mulheres brancas e heterossexuais”. Por outras palavras, o movimento nasceu e desenvolveu-se a partir de um desejo de igualdade entre sexos, mas, e como mostra a terceira vaga, começou a colocar mulheres contra mulheres, dependendo da sua atitude, orientação sexual ou pelo modo de encarar o ativismo feminista.
É também a partir da terceira vaga, que rompe com o chamado feminismo clássico, que a incompatibilidade entre a causa feminista e as causas de género se torna saliente. Enquanto a primeira pretendia igualdade entre homens e mulheres – nas questões mencionadas acima -, sendo que as mulheres continuariam a ser mulheres, mas agora estando em pé de igualdade com os homens, os ativistas pelas segundas poderão estar, mesmo que de forma não propositada, a minar os objetivos primordiais do feminismo.
Desta feita, as polémicas associadas ao género e à sua alegada fluidez, parecem estar longe do fim, devendo ser abordadas com prudência para que, no final de contas, as mulheres não saiam prejudicadas.