Dupla Gratidão

Viveu e morreu serenamente. Vogando acima das contingências do quotidiano. E só por essa coerência de setenta e sete anos de vida merecia a presença grata – e até amiga – dos que com ele fomos à missa a Miraflores.

Conheci o fundamental do carácter de José António Saraiva antes, muito antes, de ele e eu termos nascido. Umas boas três décadas e meia.
Seu avô, José Saraiva, era Reitor exemplar do Liceu Passos Manuel. Exemplar na visão, na autoridade, no afeto, na devoção a essa sua causa primeira de ser-educar.

Tinha muitos filhos. Todos ligados por forte sentido de família.

Deles, dois ficaram mais notáveis.

António José Saraiva, professor, ícone na História da Literatura Portuguesa, século após século, até à contemporânea.

José Hermano Saraiva, também professor, e advogado, ícone na pedagogia e comunicação recaindo sobre a História de Portugal, toda ela.

Um, de base filosófico-românica. Outro, de base jurídica.

Na altura eram, eles e os irmãos, crianças ou adolescentes.

Meu Pai frequentava o Liceu do Reitor Saraiva. E quis o destino que, vivendo a passagem de criança a adolescente, órfão muito cedo de Pai e em mau relacionamento com o segundo marido de sua Mãe, tivesse procurado um outro lar, nos dias mais agrestes da década de 30 do século passado.

Almoçava ou jantava com a Família Saraiva quase como se fosse também a sua Família. O Presidente da República

O Pai Reitor passara a ser o substituto do Pai partido tinha quatro anos.

Dos vários irmãos Saraivas ficou íntimo de José, mas o espírito da Família, as raízes em Donas, na Beira, não mais saíram da sua vida.

Eu tinha quatro, cinco anos, meu Pai, ademais Salazarista como José Hermano Saraiva (este mais liberal do que ele), já contava a história da Família que o formara, o exílio de António José, de que penso ter ouvido que tentara ajudar, mais tarde, na morte do saudoso Pai e Reitor, para que pudesse entrar e sair de Portugal, na ocasião do enterro. Era meu Pai Subsecretário de Estado da Educação Nacional.

Toda a minha infância e adolescência foi tão dominada pela memória da Família Saraiva – aliás, minha vizinha de andar, através da mesma Família e quase nosso irmão de proximidade, Manuel Botto –, que não me espantei quando recorri a José Hermano para preparar a minha exposição de ‘Filosofia Política’ no 1.º ano de Direito, na cadeira de Marcelo Caetano.

Entretanto, nesses anos, já 60, estudava António José, sobre toda a nossa Literatura, bem como sobre política daqueles tempos, fustigando a ditadura e, depois, polemizando com Mário Sottomayor Cardia acerca do Maio de 1968.

E, um dia, como quem conhece mais um membro da Família de sempre, encontrei José António Saraiva.

Da Família tinha o mesmo espírito inquebrantável, mais uma predileção pelos vastos horizontes, multidisciplinar, com uma paixão histórica e um gosto de pensar, e um tempo e um espço, que lhes davam, que lhe davam um ar de distância, uma necessidade de refletir, uma busca de caminhos diferentes, originais, que o comum dos mortais não entendia. Em particular, em idades como os vinte e muitos ou trinta e poucos.

Claro que o arquiteto juntava ainda a perseguição do rigor no traço como no julgamento. Muitas vezes, com a rudeza das raízes e da preocupação de ser isento, independente, desconfiado de aparentar ser demasiado benevolente ou permissivo.

Assim o conheci, nas crónicas da História política a fazer-se naquele preciso momento (com Vicente Jorge Silva como par). Meus parceiros nos tempos da direção do Expresso.

Assim o conheci, na hora em que sucedeu a Augusto de Carvalho, que me sucedera.

Assim o conheci, na escrita da sua primeira aventura de ficção.

Assim o conheci, na saída para criar o Sol.

Assim o conheci, testemunhando os primeiros passos desse recomeçar, como se tivesse menos vinte anos e o futuro fosse ilimitado.

Assim o conheci, acompanhando-o de longe – telefonemas notívagos esporádicos de quando em vez – mais e mais acima do dia a dia, como, no fundo, sempre gostara de estar.

Era o mesmo José António de sempre, exigente para consigo próprio, e, por maioria de razão, exigentíssimo para com os demais.

Diferente, procurando a diferença, cultivando-a, com o rigor extremo e a contundência que era sua marca de água.

Muito de nós fomos tema ou objeto dessa sua contundência, na altura difícil de aceitar, mais tarde vista com outros olhos. Mais compreensivos.

Ela não queria dizer falta de afeto, de consideração, até de amizade.

Era a sua exigência de princípio para ter a certeza de nunca ficar presa de nada ou de ninguém, no decifrar dos outros, da realidade, da vida, da sua vida.

Viveu assim. E deixou-nos assim. De repente. Sem queixume nem malquerença pela rapidez cortante da notícia da partida e apenas – o que para ele era essencial – as semanas indispensáveis para concluir a sua mais recente obra.

Viveu e morreu serenamente. Vogando acima das contingências do quotidiano.

E só por essa coerência de setenta e sete anos de vida merecia a presença grata – e até amiga – dos que com ele fomos à missa a Miraflores.

Mas eu tinha uma razão mais, muito minha e dos meus, para só o deixar na despedida final em Barcarena. E pensei nela, no meio do dilúvio logo convertido em sol triste, fugaz, mas sol, enquanto conduzia entre Miraflores e Barcarena.

Era agradecer, ao menos numa parte, em nome de meu Pai e de toda a minha Família, a dívida à Família Saraiva, contraída há quase um século e nunca devidamente paga.

Lisboa, Palácio de Belém 8 de Março de 2025.