Recrutar e reter nas Forças Armadas – um desafio maior!

O Governo não pode continuar a encarar a Defesa como uma questão restrita às FFAA.

“Há uma coisa que eu digo sempre às minhas estruturas de recrutamento: que não andem à procura dos cidadãos que não existem. Temos de perceber a juventude do nosso país. Temos de saber chegar à juventude do nosso país e temos de saber recrutá-la. Mas depois de os recrutar, também temos de os saber reter. (…) não vale a pena queixarmo-nos de que eles não aguentam estar longe do telemóvel. São assim. Temos de ter mais progressividade nas coisas. (…) Há os que andam mais depressa e há os que andam mais devagar. Isto é, do ponto de vista cognitivo, intelectual, da apreensão, os jovens estão muito mais capazes. Mas do ponto de vista físico, nós já sabemos que estão atrás. Precisamos de mais tempo para lhes dar as condições físicas”, salientava o General CEME em recente entrevista a um jornal nacional, uma análise realista sobre os desafios do recrutamento e retenção de jovens no Exército, que se assume semelhante nos demais Ramos das nossas Forças Armadas (FFAA).

Esta afirmação reconhece duas realidades incontornáveis: a juventude de hoje tem características diferentes das gerações anteriores, e a adaptação das FFAA a esta nova realidade é essencial para garantir a sua continuidade e eficácia, sobretudo num momento em que os desafios geopolíticos para a Europa são de uma inesperada e grave dimensão.

A ideia de que não se deve procurar um “cidadão que não existe” é um ponto crucial. As estruturas de recrutamento têm de abandonar a idealização de um perfil de recruta que já não corresponde à realidade demográfica e muito menos ao ambiente social do país. A juventude atual tem outras motivações, outra relação com a autoridade, com a tecnologia e com o esforço físico, e ignorar isso conduz a frustrações, dificuldades no preenchimento e na retenção dos quadros e tropas das FFAA. Para além de recrutar é necessário reter e isso obriga a condições que incentivem os jovens a permanecer e a evoluir dentro da instituição militar. O equilíbrio entre disciplina e modernização dos seus métodos de treino e integração nas FFFA é tão essencial como são as condições de habitabilidade do quartel bem como o fardamento e equipamento necessário.

O acesso fácil à informação e o contacto constante com novas tecnologias tornaram os jovens mais rápidos na apreensão de conceitos e na resolução de problemas, mas o declínio da atividade física nas últimas décadas tem um impacto claro na capacidade de resistência e adaptação ao esforço físico prolongado. É na escola e na família que esta resiliência tem de ser trabalhada. No essencial, a filosofia das FFAA não mudou, antes pelo contrário, a família e a escola educam e a vida militar forma, sendo que isso que ontem era uma mera constatação hoje pode vir a ser uma exigência na defesa do País, perante as ameaças que, entretanto, nestes últimos 3 anos se assumiram como realidade presente. Se, por um lado, é necessário acompanhar a evolução da sociedade, por outro, as exigências da profissão militar não podem ser reduzidas ao ponto de comprometer a operacionalidade das FFAA. Nas últimas décadas, a simples presença do Soldado nas missões bastava para garantir a paz. Hoje, contudo, a paz só será assegurada se o Soldado provar que tem a determinação e a força para a impor, recorrendo ao combate se assim tiver que ser. Isso muda o desafio do serviço militar, pois o treino exigirá mais resistência, disciplina, capacidade de superação e no limite a vontade de defender o País com sacrifício da vida, se necessário for. Ora, isto para pais e filhos representa um novo paradigma. Ele sempre existiu é verdade, mas agora pode ser mais do que isso!

É precisamente por essa razão que o poder político não pode alhear-se deste desígnio nacional. O Governo não pode continuar a encarar a Defesa como uma questão restrita às FFAA. Se verdadeiramente ambicionamos dispor de militares preparados para os desafios do presente e do futuro, impõe-se uma visão estratégica de longo prazo, alicerçada em investimentos adequados, políticas de recrutamento eficazes e um compromisso genuíno com a valorização da condição militar.

Reconheça-se que o atual Governo AD, justiça seja feita, introduziu melhorias substanciais nas condições de prestação do serviço militar, em particular no que concerne à remuneração, o que já produziu alguns efeitos positivos. Mas será isto suficiente para alterar o estado da arte? Para responder a esta questão, importa, antes de mais, reconhecer que, no contexto da nova ordem mundial em transformação, Portugal, em consonância com os seus parceiros europeus, deve definir a sua “repartição de trabalho estratégico” no domínio da Defesa. Retomamos, assim, a questão estrutural que orientou o debate sobre a Defesa 2020: qual o efetivo necessário para as FFAA?

É certo que as recentes medidas de atração melhoraram a captação de efetivos, que as taxas de incorporação aumentaram e que as saídas precoces diminuíram. No entanto, se o objetivo for alcançar um reforço de mais 10.000 militares, por exemplo, o ritmo atual não permitirá atingir essa meta em menos de cinco anos. Convém, desde logo, ter consciência de que não faz sentido estruturar um dispositivo militar para cenários anacrónicos ou anedóticos, como uma hipotética campanha para conquistar Olivença – questão que não se configura como ameaça, não integra qualquer desígnio estratégico e que, ademais, envolveria um aliado histórico como Espanha.

O verdadeiro foco deve estar na garantia de um efetivo devidamente preparado, operacional, treinado e equipado para responder eficazmente às exigências da defesa nacional e aos compromissos internacionais. Será esse esforço materializado em três brigadas no Exército, vinte embarcações na Marinha e quarenta aeronaves na Força Aérea, a título meramente ilustrativo? Qualquer que seja a configuração definida, importa ter presente que, para cada militar diretamente empenhado, será necessário dispor de três em reserva e treino, além de um sistema de apoio logístico robusto e eficiente.

Tal desígnio implica, inevitavelmente, uma maior capacidade de atração, uma seleção mais criteriosa, um treino mais exigente e, consequentemente, melhores condições de retenção no serviço ativo. Importa, no entanto, não ignorar a realidade subjacente: o reforço da Defesa tem custos orçamentais inegáveis, e é ilusório tentar camuflar esta evidência. Um incremento da capacidade militar nacional, tendo em conta a estrutura económica do país, traduzir-se-á, inevitavelmente, numa reconfiguração dos recursos do Estado, com impacto na política social e na cultura da subsidiação.

Se a resposta for europeia, será imprescindível nivelar padrões, o que significa que, nas forças projetadas para o exterior, o soldado português deve dispor do mesmo equipamento, do mesmo treino e – essencialmente – da mesma remuneração que os seus homólogos europeus. Esta reflexão sobre a “repartição de trabalho estratégico” na Defesa não pode ser superficial nem deve ser adiada.

Há, pois, muito a ponderar no seio das instituições europeias, um vasto trabalho a conduzir por parte do Estado português e um esforço notável a ser exigido às FFAA. Há, contudo, um único valor inalienável, sobre o qual não há necessidade de alocar mais recursos: o valor do Soldado Português. Encontrar o seu igual na Europa será certamente possível; superar a sua dedicação, profissionalismo e bravura será tarefa quase impossível.

Que saibamos, pois, reforçar, honrar e respeitar esse património – nas FFAA, em Portugal e nesta Europa, que deve continuar a afirmar-se como bastião da democracia, do humanismo e da paz.

Fernando Figueiredo, Cor