Déjà-vu

O filme transportou-me no tempo. Ao ver as cenas da casa dos Paiva, magistralmente filmadas por Salles e interpretadas por Fernanda Torres, recordei muita coisa.

Já estava à espera de experimentar uma sensação de déjà-vu ao ver Ainda estou aqui, o filme de Walter Salles que retrata o que sucedeu a Rubens Paiva e à sua família durante a ditadura militar brasileira, nos anos 1970. Isto porque a minha família viveu uma situação semelhante, ainda que menos dramática. Há precisamente 50 anos, dois dias depois do 11 de Março de 1975, o meu Pai foi preso por ordem direta de Eurico Corvacho, o homem a quem o MFA entregara o comando da Região Militar Norte (RMN).
O meu Pai chegara na véspera de uma viagem de negócios, e nada tinha a temer. Procuraram-no em casa mas estava a trabalhar tranquilamente na sua fábrica, onde os homens de Corvacho entraram sem mandato. Foi levado para um quartel para ser interrogado e seviciado, sendo o seu paradeiro ignorado pela família. Seria mais tarde transferido para uma prisão, sem poder recorrer a um advogado. Esteve várias semanas em solitária e depois conviveu com presos de delito comum, tendo-lhe sido, inclusive, recusado o auxílio médico de que muito necessitava.


Os trabalhadores da empresa foram violentamente reprimidos quando se manifestaram contra a sua prisão, diante do Quartel-General do RMN. O seu nome não constava sequer da lista de presos do MFA. De resto, Otelo haveria de dizer que o meu Pai não fora um dos ‘seus presos’. Acabaria transferido, em segredo, para a prisão de Caxias. Entretanto, alguns militares tentaram extorquir dinheiro à família prometendo a libertação do meu Pai, ao mesmo tempo que eram ignorados os apelos com esse fim de políticos portugueses, dos seus advogados Francisco Sousa Tavares e Proença de Carvalho e de embaixadas estrangeiras.


Felizmente, e ao contrário do que sucedeu a Rubens Paiva, o meu Pai não foi assassinado. Libertado depois de Corvacho ter sido demitido, voltou, contudo, com mazelas de saúde de que não mais recuperou. Nunca foi formalmente acusado de fosse o que fosse, nem recebeu qualquer pedido de desculpas. Provou-se que nunca fez parte da organização extremista ELP (Exército de Libertação de Portugal) e que a sua única relação com bombas foi com a que explodiu na nossa casa de família, em plena noite e com crianças lá dentro, pouco depois da sua libertação, quando a fábrica também já ardera misteriosamente…


Tal como no filme, somos uma grande família de oito irmãos. Sou o mais velho; e como sucedeu com uma das filhas de Paiva, também eu estudava em Londres quando o nosso Pai foi preso. Também nós tivemos uma mãe corajosa quando, em nossa casa, tudo mudou de um dia para o outro. A nossa vivência quotidiana foi idêntica ao que podemos ver no filme: congelamento de contas e dificuldades económicas; vigilância por homens à paisana que assistiram impávidos quando a nossa casa foi apedrejada. Partilhámos entre nós a ansiedade de não sabermos do nosso Pai, o medo ao ouvirmos a fúria dos extremistas e os apelos a fuzilamentos, enquanto tentávamos manter a possível normalidade dentro da insuportável anormalidade.


O filme transportou-me no tempo. Ao ver as cenas da casa dos Paiva, magistralmente filmadas por Salles e interpretadas por Fernanda Torres, recordei muita coisa. Principalmente os silêncios quando nada sabíamos, quando nada conseguíamos dizer.


O que nos sucedeu teve um preço. As angústias deixaram-nos marcas mas ganhámos alguma coisa: o orgulho pelo exemplo de cidadania do nosso Pai e pela bravura da nossa Mãe, bem como a convicção de que é possível resistir ao Mal.


Os culpados nunca foram julgados, mas foram derrotados. Alguns ainda andam por aí, mais ou menos dissimulados. A forma como resistimos àqueles acontecimentos foram o cimento que nos uniu para sempre. Isso ninguém nos roubou. O Pai deixou-nos outra vez, há um quarto de século, mas está sempre connosco. Ao fim de 50 anos, ainda cá estamos. A Mãe e os oito irmãos.