Para que serve um Presidente

A Presidência da República aos olhos dos portugueses é uma reforma dourada, para os que se destacaram em carreiras executivas.

A nova crise política que se abateu sobre o país leva a uma reflexão sobre o papel que um outro Presidente da República, com uma outra margem de manobra, poderia ter tido para evitar o descalabro.
Habituámo-nos a olhar para o Chefe de Estado como uma espécie de Rainha de Inglaterra, apenas com uma diferença: o poder de dissolução. Ao mais alto magistrado da nação, a par com os deveres de representação, resta o poder da palavra, para quem o quiser ouvir. No fundo, a Presidência da República aos olhos dos portugueses, é um prémio, uma reforma dourada, para os que se destacaram em carreiras executivas.


Os últimos dias mostram-nos que não é assim. Os portugueses incorreram nesse erro sobretudo a partir da revisão constitucional que acabou com o Conselho da Revolução e ditou que o Palácio de Belém não devia ser ocupado por militares. A partir daí, fixámos que quem manda é o Governo e o Presidente tem o magistério de influência. É aquela figura a quem se tem respeito porque não conta para o campeonato.


No passado houve presidentes que tiveram de enfrentar crises e dissolver parlamentos. Mas nunca em quadros tão complexos como agora, em que o peso das suas decisões pode fazer toda a diferença. A estabilidade parlamentar, com um número reduzido de partidos lá representados, gerou sempre soluções governativas, maioritárias ou não, mas que garantiam que deitar um Governo abaixo não podia ser um exercício fútil. Provocar crises políticas, até aos dias de hoje, nunca compensou.


A partir de 2015, tudo mudou na política nacional. A geringonça provocou um choque vitamínico ao sistema e transformou-o para sempre. Os atores políticos descobriram que o sistema podia gerar soluções originais. Ao mesmo tempo, o desgaste dos partidos tradicionais e o surgimento dos partidos populistas, à esquerda e à direita, tornaram necessário um árbitro muito mais ativo. Os novos tempos pedem um Presidente da República com muito mais elasticidade.


Para o bem e para o mal, Marcelo Rebelo de Sousa foi o homem que ocupou o Palácio de Belém nos anos da mudança. Político experiente e o analista mais reconhecido do país, Marcelo conseguiu antever as mudanças do país político, mas não conseguiu perceber que elas lhe pediam um outro exercício da função. Marcelo até quis ser a figura central do regime, mas a oportunidade passou-lhe ao lado. Foi de facto um Presidente muito diferente dos seus antecessores, mas nem a proximidade, nem o excesso verbal, lhe deram o peso político que por estes dias poderia e deveria ter tido. O grande analista foi, ironicamente, vítima do quem tudo quer, tudo perde.
As eleições previstas para o mês de maio, antecedem, em poucos meses, a eleição do próximo Presidente da República. Os portugueses que costumam partir para estas eleições, como quem parte para a escolha da Miss Universo, desta vez sabem, à sua custa, que vão fazer uma escolha determinante para evitar, ou pelo menos atenuar, constantes sobressaltos políticos. Um Presidente da República com toda a latitude para exercer os seus poderes podia ter evitado que estivéssemos à beira das terceiras eleições legislativas em três anos.


Se não queremos continuar por este caminho temos de perceber que os tempos do Presidente decorativo passaram. Marcelo Rebelo de Sousa teve o mérito de nos ensinar que precisamos de um inquilino em Belém capaz de pôr ordem numa casa cada vez mais confusa e instável. Se for preciso dificultando soluções governativas que não deem garantias de estabilidade. Recusando soluções fáceis. Obrigando e mediando o diálogo entre os agentes políticos. O próximo Presidente da República não pode ser um político em pré-reforma, tem de ser um político a tempo inteiro. A Presidência do croquete acabou.