O poço de Babel

A nova torre de Babel quer sugar todas as línguas num único poço

A torre de Babel bíblica conta-se breve: quando em toda a Terra se usavam as mesmas palavras fizeram os homens uma cidade na planície de Chinear e nela quiseram erguer uma torre tão alta que chegasse aos céus para, ficando assim famosos, evitarem a sua dispersão terrena; frente a este desafio determinou Deus impedir tal projeto e, descendo à Terra, confundiu-lhes a linguagem comum até suspenderem a construção da torre; nasceram assim as várias línguas e, à cidade, abortada por este motivo, deu-se o nome de Babel. Dizer Babel lembra Babilónia da qual ecoa balbúrdia. A diversidade das línguas foi castigo, mas a sua atual miscelânea é um inferno.

Ora, nos séculos recentes, instalou-se nos homens o desejo de realizarem todos os seus projetos conforme a sua exclusiva vontade, já desembaraçados de qualquer veneranda relação com a transcendência. Antes disso ajustaram que não viria mal ao mundo se pelo comércio os vários povos se relacionassem na base de mútuas vantagens e isso fizeram os portugueses na sua expansão marítima, ganhando mares e almas em missão, sem ocupação territorial extensa, exceção do Brasil onde a reciprocidade não era ainda possível. O mundo ficou uma esfera perfeita por natureza superfície contínua, assim o vemos hoje, global e interdependente. Se o latim serviu o clero e os letrados medievais europeus como língua de trato internacional, a escala globalizante exigiu a difusão de dicionários e gramáticas para estipular acordos e alianças com povos exóticos, desimpedir obstáculos, estimular negócios. Por fim, nesta dilatada Babel o século XIX inventou o esperanto, um conglomerado artificial de língua comum a pairar sobre o globo, triste paródia do Pentecostes cristão. Não resultou. Como não pegou por cima veio o dinheiro global por baixo, um máximo denominador comum: houve o ouro, depois o dólar, agora o euro, moedas ou fidúcias a que damos crédito. Mas continua a faltar uma língua capaz de totalizar a convergência, totalitarismo que o Inglês vem empreendendo desde a II Guerra, como reboco e estuque de acabamento neste edifício globalista e acelerado no qual a União Europeia é parte, aliás, pequena e em declive. Chegamos assim a uma Babel invertida em língua totalitária, um buraco em vez de torre, poço voraz de balbúrdia sonora, mental e anímica. 

Quando o escola é débil e assim o português há décadas, as ambições humanas morrem rasteiras, fantasias de grandes alturas que se extinguem em ruínas. O que se passa no Portugal recente, mental e linguístico, é tristemente degradante: a aceleração desbocada e dementada no uso de anglicismos, por tudo e por nada, vazios e desnecessários, exibe a vacuidade de elites na universidade, no jornalismo, na política, nas classes médias desnorteadas. É um linguajar sem cabeça. Performance diz melhor do que desempenho? Statement do que declaração? CEO do que Diretor Executivo? Flop do que fiasco? Upgrade do que atualização ou melhoria? E por aí fora, sem falar em boots on the ground por forças terrestres, em proxies como representantes (ou testas de ferro!) ou, pior, quando já o anglicismo mental traduz read my lips pelo literal lê os meus lábios, em vez do tradicional escreve o que te digo. Andam todos muito focados desfocando fora de sítio, quando antes bastava o centro para nos concentrarmos. A nova torre de Babel quer sugar todas as línguas num único poço!

A língua é o utensílio essencial para se poder pensar, a balbúrdia leva fatalmente a raciocínios errados, o pensamento decai. «Nós falamos com palavras, Deus fala com palavras e coisas» diz S. Tomás de Aquino mostrando que o universo criado por Deus fala connosco, ou seja, há uma estrutura da realidade da qual não nos podemos furtar e que cada língua sabe interpretar em expressão coerente e criativa, também mutável, numa relação singular da variedade dos homens. A nossa elite já não fala, não pensa e nem isso percebe, balbucia uma mistura ininteligível de uma Babel sorvida num poço. Quem dela nos salva?