Homens em tempos sombrios Ou as artes e o humano

Ser-se alguém que está nas artes em tempos sombrios e aí se quer humano, isso é já enfrentar os tempos sombrios

«A verdadadeira função cognitiva de uma obra de arte devia representar a totalidade de uma época».

Hermann Broch

A epígrafe em causa vamos nós encontrá-la num livro de Hanna Arendt, Homens em Tempos Sombrios (Relógio d’Água, 1991:141). É uma questão essencial, esta que a autora de As Origens do Totalitarismo nos coloca: saber como é que, em face da desintegração dos valores de uma época, ainda será possível uma obra – seja de que arte for – falar e ser a síntese do seu tempo. 

Atravessamos tempos sombrios também por isso: não vislumbramos, pelo menos em certas expressões em português e que se dizem ‘arte’, uma obra (palavra de que muitos suspeitam, preferindo o inapropriado lexema ‘projeto’) em relação à qual possamos sentir e de forma inteligível entender que é uma obra que nos diz respeito. Uma obra (como Ulisses, ou como Em Busca do Tempo Perdido, ou como O Grito, de Munch, ou Guernica, de Picasso, ou mesmo, entre nós, Alexandra Alpha, de Cardoso Pires) que fosse como que o ‘eco do grito’, como um dia disse Gastão Cruz, ser a poesia. Eco do grito e, portanto, um livro, um quadro, uma fotografia, um filme que nos arraste a uma espécie de sentimento-pensamento-sensação que provoca o estranhamento e o calafrio, o incómodo e o choque por sabermos estar perante algo irrepetível. Uma obra para tempos sombrios? É isso possível? 

A pergunta que muitas vezes teremos de fazer (aqueles que escrevem, pintam, projetam em pedra a linguagem do invisível; ou os que fazem da vida filme, ou teatro, ou se entregam a esse «inexprimível exprimível» que é a música) será só uma: «Que fazer?» Uma pergunta que se faz por estes dias de rasura da realidade. E talvez seja este o terreno mais propício para a arte acontecer: os tempos sombrios.

Relembro um romance de Almeida Faria, Cavaleiro Andante, nó ficcional, centrado em vozes que se fazem ouvir por meio de cartas, concentrado em escalpelizar um problema: Portugal. E relembro outro romance, Myra, de Maria Velho da Costa, mais recente e que, pondo em cena uma menina e o seu cão, Rambo, é um mergulho profundíssimo a um país perdido, esse das periferias, dos arrabaldes de qualquer razão. Talvez por isso a telepatia entre menina e cão, ou a humanização do cão, guia que é, nesse romance maior de uma das mais singulares trabalhadoras da ficção em português (fosse Maria Velho da Costa francesa ou americana, que teria sido?)… 

Escrever em tempos sombrios, isso fizeram Hermann Broch e Brecht, Rimbaud e Baudelaire, ou Dylan Thomas ou Camilo Pessanha… O esboroamento de um mito chamado Europa, fosse do III Império francês ou do Portugal finissecular; fosse a Europa e o Ocidente de Oswald Spengler, território onde o eclipse da razão – na metáfora extraordinária de Max Horkheimer –, é um dado adquirido. Europa: tempos sombrios e facto trágico: duas guerras mundiais, 200 anos, 250 anos de guerras civis com alguns períodos de paz (podre, pois os povos viveram nas ‘cidades negras’ ou foram esmagados nas guerras dos interesses dos impérios). Europa e nós neste tempo sombrio e que coincide com o advento de novos monstros. Europa: do cientifismo oitocentista e do fim do Deus-Razão (a morte de Deus postulada por Nietzsche) a culminar na corrida aos armamentos da década de 1930, a Europa descendo aos infernos do nazi-fascismo até à pax americana ancorada no nuclear… E no meio das ruínas e da morte a existência da arte, da poesia, da música. A resistência do humano, apesar de Auschwitz, apesar de Sarajevo, ou do Ruanda, ou de Wiriamu, ou de Mi Lay, ou de Guantanamo… 

Ser-se alguém que está nas artes em tempos sombrios e aí se quer humano, isso é já enfrentar os tempos sombrios. Pintou-os Cesário, na sua época, de modo magistral: «Nas nossas ruas ao anoitecer/ há tal soturnidade, há tal melancolia / que as sombras, o bulício, o tejo, a maresia / despertam-me um desejo absurdo de sofrer». Hoje, por um passe de magia negra cujo lance foi feito por ilusionistas perigosos, os tempos sombrios abatem-se sobre nós. 

País pobre, que lê pouco, que imagina pouco; retângulo à beira-mar plantado, onde a corrupção medra, como enfrentar os tempos sombrios? Lutando para que, em tempo de economia de guerra, não de mate o Estado Social? Sim. Mas não basta. Exigindo, no interior de cada um – cada um a sós consigo – uma disciplina férrea: não sucumbir ao ‘desejo absurdo de sofrer’. Trump e J. D. Vance, Musk e Putin, estas quatro cabeças de uma hidra global acabarão por morrer. Nada fica. Até lá, porém, há que fazer das artes um perímetro sólido de afirmação da criatividade e não o sistema bafiento das contrafações. Isso seria já ser derrotado por Trump e os seus: esses cujo plano é roubar a esperança para acusar as democracias de terem seguido a soturnidade e a melancolia.