Incompatibilidades

Ao contrário do que há mais de vinte anos afirmou um certo ministro, a ética republicana não é a lei

Imagine que dá umas aulas em part-time numa universidade pública e é eleito deputado. Certamente poderá continuar a dar as suas aulas; com um detalhe, todavia: desde que por tal não seja remunerado. Como precisa do rendimento adicional e não está para trabalhar de borla, desiste das aulas na universidade pública e vai dá-las numa universidade privada. Fará alguma diferença? Não deveria, mas faz. Pela privada já poderá ser remunerado. 

Um académico reformado é convidado por uma agência pública para integrar um grupo de peritos que produzirá uma avaliação de uma dada intervenção de política. Como os dinheiros que financiam o estudo são públicos, o pobre académico, tendo completado o trabalho, não encontra forma de ser por ele remunerado. Se tivesse sido contratado por uma consultora privada para participar precisamente no mesmo estudo nada disto aconteceria.

Um Reitor não pode ser remunerado por aulas que dê na sua Faculdade de origem, mesmo que seja uma matéria que ensina há anos e da qual é especialista único.

Estes são exemplos reais, dos quais tenho conhecimento pessoal. Outros poderia citar. Para que fique claro, o que está mal nestes exemplos não é a expectativa de ser remunerado pelo trabalho adicional. Eles servem, apenas, para ilustrar as inúmeras, absurdas e muitas vezes injustas normas de exclusividade e de incompatibilidades que recaem sobre quem, a algum título, é ‘assalariado’ com o dinheiro dos contribuintes. 

O caso de Luís Montenegro é muito diferente. Mas este introito é importante para se entender o contexto nada permissivo que enquadra o comum dos servidores do Estado e, consequentemente, a expectativa acrescida relativa às incompatibilidades que afetam um primeiro-ministro.

Não sei se a relação de Montenegro com a Spinumviva está ou esteve ferida de ilegalidade. Também não sei se ela é estritamente suficiente para conduzir à queda do Governo. O que sei é o seguinte: 

i. A participação de Luís Montenegro na Spinumviva – mesmo agora, que é formalmente inexistente –, não é o mesmo que ter uma quota na mercearia da esquina ou ações da EDP ou rendimentos de uns andares arrendados. A empresa só existe e tem clientes, públicos e privados, porque Luís Montenegro a criou, e o seu nome a ela está ou esteve direta ou indiretamente associado. É um produto da sua condição profissional, certamente, mas, pelo menos em igual medida, da sua condição de operador político.

ii. Não existe, que eu saiba, uma smoking gun, ou seja uma decisão ou ação do primeiro-ministro ferida de conflito efetivo de interesses. Não existe, nem, em rigor, necessitaria de existir. As normas servem para prevenir eventuais situações de potenciais conflitos e, assim, salvaguardar a imagem de imparcialidade dos agentes públicos. 

iii. Estou convencido que agora e no passado, entre governantes, autarcas e deputados, da esquerda à direita, muitas casos existiram e existem de empresas familiares que servem apenas de cobertura para monetizar a influência política. O que é único em Montenegro é a sua condição de primeiro-ministro.

Ao contrário do que há mais de vinte anos afirmou um certo ministro, a ética republicana não é a lei.