Trump e a síntese de uma nova ideologia

O descontentamento com a democracia liberal tem-se traduzido no surgimento do que podemos designar de uma nova direita. 

As democracias liberais enfrentam uma crise profunda, e os seus guardiões ainda não perceberam que são os principais responsáveis por essa situação. Muitos acreditam que o problema se resume a um ataque de forças obscuras, ignorando as fragilidades internas do próprio sistema e o mal-estar coletivo relativamente ao poder vigente. No que diz respeito aos EUA, devemos ir além da polarização pró e contra Trump e considerar uma formulação política inédita que pode definir o futuro.

É plausível que, neste momento, grande parte da população prefira uma reformulação da democracia liberal e não a sua destruição. No entanto, como essa reformulação não é expectável, e até a esquerda se tornou cúmplice desse modelo de democracia, a reação antissistema tem sido liderada por forças políticas caracterizadas pelo establishment como de direita radical, alternativa e até extremista.

O descontentamento com a democracia liberal – tanto no plano económico quanto no dos valores – tem-se traduzido no surgimento do que podemos designar de uma nova direita. As suas expressões não são homogéneas, variando conforme o contexto histórico, cultural e geográfico. Podemos chamá-la ‘nova direita’ para distingui-la da direita tradicional, que se deslocou para um centro difuso. Veja-se como até o conservadorismo se se tornou liberal. Outras vertentes da direita ficaram isoladas em nichos obscuros.

É um facto que há um movimento poderoso de rejeição ao sistema liberal progressista. Essa rejeição não se traduz apenas em apatia, mas numa surpreendente vontade de mudança, que se manifesta principalmente como antissistema. Não sabemos se o sistema conseguirá absorver essa tendência ou se será capaz de resolver as suas próprias contradições.

Nos EUA do século XXI, observamos o surgimento de uma nova ideologia que pode ser dominante. Ela resulta de uma fusão curiosa entre conservadorismo, libertarismo e visões tecnoutopistas. Embora essa combinação possa parecer paradoxal, a sua força reside justamente nos pontos em comum, mais do que nas diferenças. Sendo os EUA um centro de difusão ideológica global, é previsível que essa tendência se espalhe para outras regiões.

Por exemplo, tanto conservadores quanto libertários valorizam a liberdade individual e defendem a redução do poder do Estado. Ambos promovem a propriedade privada e a descentralização do poder, priorizando o livre mercado e o Estado mínimo.

Os tecnoutopistas acreditam na capacidade da tecnologia para resolver os problemas da humanidade e tornar as sociedades mais eficientes. Muitos deles defendem projetos libertários, como criptomoedas e menos Estado. Existe também um ponto de convergência forte entre conservadorismo e tecnoutopismo: a defesa do retorno à meritocracia e o afastamento da intervenção estatal.

A valorização da liberdade individual e da redução da regulamentação e poder governamental constitui o eixo unificador dessa nova ideologia. A sua viabilização depende das possibilidades abertas pelo avanço tecnológico, que pode reconfigurar a organização do poder no mundo contemporâneo.

Haverá certamente tensões devido às divergências internas, por exemplo, entre uma tendência conservadora e outra libertária, mas será sem dúvida o papel da tecnologia a redefinir essas conceções.