É surpreendente o modo como a presente crise política tem vindo a ser discutida por estes dias. À primeira vista, dir-se-ia tratar-se apenas de um acidente, inesperado e imprevisível, decorrente da inépcia do Primeiro-Ministro para lidar com questões relativas à sua vida privada, profissional e familiar. Os habituais comentaristas da imprensa escrita e televisiva, especializados em dizer às pessoas o que devem pensar, apressam-se, com muito poucas excepções, a sugerir que assim é. Tratar-se-ia apenas de um episódio. Um episódio infeliz, é certo, mas um episódio. As eleições «que ninguém deseja» surgem como uma simples consequência do sucedido. Consequência que ninguém queria, mas ninguém conseguiu evitar. Por isso, todas as atenções se concentraram primeiro na análise da elevadíssima discussão com que os parlamentares de São Bento ilustraram o debate público nacional, aquando da votação da moção de confiança apresentada pelo Governo. Uma sessão parlamentar talvez ao nível dos jogos de bluff eventualmente praticados no Casino de Espinho. Depois, focaram-se nas aventuras e desventuras empresariais de Primeiro-Ministro e descendência, ou nas explicações que deu ou não deu ao país. E assim continuam. Ou seja, tudo é conduzido para discutir assuntos que só teriam algum interesse se houvesse entre nós algum Eça capaz de os perpetuar nas Farpas, o que, infelizmente, não é o caso. Pelo meio perde-se o essencial. E o essencial é a encruzilhada em que politicamente nos encontramos, para a qual caminhámos de forma consistente na última década.
É, pois, essencial alargar o olhar e considerar a nossa situação actual em perspectiva histórica. A seguir ao 25 de Abril, depois da perseguição, prisão e exílio de pensadores e militantes políticos da direita, e da concomitante integração de comunistas e extrema-esquerda, cujas esperanças revolucionárias se frustraram em Novembro de 1975, a democracia portuguesa estabilizou-se como uma oligarquia de poucos partidos. Para evitar regressar ao caos da Primeira República, tornando a democracia previsível e estável, o sistema centrou-se no chamado «arco da governação», alimentado pelo rotativismo centrista entre PS e PSD. Tudo concorreu para alimentar esse rotativismo e a pretensa estabilidade que proporcionava. O rotativismo impôs-se ao fenómeno do PRD nos anos 80, que se revelou um episódio fugaz, soterrado pela maioria absoluta de Cavaco Silva; e impôs-se ao CDS, que hoje, apesar de uma história rica e cheia de oscilações, se reduz à existência post mortem de um apêndice. Entretanto, a prática do rotativismo entre PS e PSD degradou deliberadamente a nossa cultura política, transformando a percepção dos portugueses do que é uma eleição legislativa. Para grande parte destes, tal eleição passou a contar como uma espécie de luta de galos entre dois candidatos a chefiar o governo. Adriano Moreira, certamente para evitar tão prosaica expressão, chamou-lhe, de forma eufemística, um «presidencialismo do Primeiro-Ministro».
Os termos informais desta concertação entre PSD e PS eram conhecidos. O «arco da governação» surgia como um entendimento entre ambos para a partilha diacrónica do poder, sob a cobertura retórica de uma rejeição da sua coincidência sincrónica no Governo, ou seja, de um Governo de «bloco central». Tudo para arrastar indefinidamente esta partilha, alimentando as respectivas clientelas. Foi este entendimento, convertido em sustentáculo do regime, que, para gáudio de muitos e desespero angustiado de alguns, António Costa fez ruir, em 2015, após os dolorosos tempos da bancarrota de Sócrates e do resgate financeiro. António Costa perdeu as eleições contra a coligação liderada por Passos Coelho. Para sobreviver, restava-lhe converter a derrota em vitória, juntando-se à extrema-esquerda. Foi o que fez alegremente, sem hesitações nem escrúpulos de arrasar a base de entendimento que tornava tudo seguro.
Com a formação da «geringonça», o PS tornar-se-ia, nas expectativas socialistas de então, um partido hegemónico. Seria um partido destinado a determinar todas as circunstâncias, controlando o Governo quer ganhando eleições e governando quer, perdendo-as, deixando governar o vencedor segundo o seu exclusivo critério e interesse. Tertium non datur.
Arquitectada por Pedro Nuno Santos, a herança da «geringonça» só abriria, por isso, quatro possibilidades. Ou haveria um Governo socialista suportado pelo entendimento parlamentar com a extrema-esquerda, colocando o país nas mãos da sua agenda wokista de transformação da sociedade portuguesa. Foi a solução de 2015. Ou haveria um Governo socialista de maioria relativa, mas possibilitado pelo medo da oposição de derrubá-lo. Foi a situação de 2019. Ou haveria um Governo socialista de maioria absoluta. Foi o inesperado resultado de 2022. Ou a direita convencional poderia formar um Governo frágil e precário, caso vencesse as eleições, mas ficando dependente da tolerância parlamentar socialista e podendo cair sempre que a ocasião se oferecesse como propícia. Foi o que se passou há um ano. A quinta hipótese – a hipótese de que a direita formasse uma maioria e se tornasse independente da tutela socialista – teria de ser tornada impossível. Para isso, Costa e Pedro Nuno Santos contavam com um aliado imprescindível: uma imprensa fiel, cada vez mais indiferenciada da propaganda, encarregada de formar mentalidades, domesticar pensamentos e docilizar aspirações.
Foi esta imprensa a primeira a compreender o significado da emergência, à direita, de um Partido antissistema como o Chega. A reacção da imprensa portuguesa ao seu aparecimento e crescimento, que ainda hoje repercute, não se pode explicar apenas como a reprodução em Portugal das tentativas infrutíferas dos donos do sistema para votar ao ostracismo figuras como Santiago Abascal, Marine Le Pen ou Giorgia Meloni. No caso de André Ventura, juntava-se a isso o sentimento vivo da ameaça que o Chega representava para a estrutura de poder delineada pelas intenções socialistas em 2015. Com o Chega forte não haveria hegemonia socialista em Portugal. Havia, por isso, que jogar com o ressentimento da direita convencional, entretanto resignada a aceitar o papel que Costa lhe reservara. O PSD, simultaneamente nostálgico da antiga urbanidade parlamentar e assustado pela ameaça do Chega à sua direita, vergou-se inteiramente a este papel. Encabeçou a demonização do Chega e a sua perseguição mediática. Alguns dos seus dirigentes votaram-lhe um ódio só comparável ao do Bloco de Esquerda. E, com isso, a direita ficou sem nada para oferecer ao país. Foi isso que deu a António Costa o seu maior sucesso, a inesperada maioria absoluta de 2022, antes de se demitir, em razão das buscas de São Bento, e de ir ganhar a vida para a Europa, como Durão Barroso antes dele.
É aqui que estamos. A última década, com os seus quatro Governos – o Governo da «geringonça» (2015-2019), a maioria relativa do PS (2019-2022), a sua maioria absoluta (2022-2024) e a precariedade da governação actual, a que os socialistas permitiram um ano de vida e que derrubaram no que lhes pareceu a melhor ocasião –, esgotou as quatro possibilidades delineadas pela estratégia das ambições hegemónicas de Costa em 2015. O intransigente «não é não» de Montenegro, e a obsessão dos seus acólitos por tratarem os deputados do Chega como párias e intocáveis, apesar de alguns deles terem sido seus correligionários de bancada até há pouco tempo, foi o seu canto do cisne. Um canto crepuscular que, como acontece com os anúncios de fins de época, abre a possibilidade de pensar o porvir. Resta, por isso, esperar. Esperar que, após as eleições, o Presidente da República, certamente a contragosto, seja forçado pelas circunstâncias a libertar o país da estratégia de Costa, interpretando o art. 187º da Constituição como deve e não como os partidos do sistema reclamam. Ou seja, assumindo que nomear o Primeiro-Ministro «tendo em conta os resultados eleitorais» não significa, automaticamente, chamar o líder do partido mais votado a formar Governo, mas garantir uma maioria parlamentar. Disso faz parte a promoção de um entendimento entre Chega e AD, se porventura as circunstâncias eleitorais o exigirem. As eleições legislativas não são, como querem impor os partidos do sistema, uma luta de galos. Seria bom que o Presidente, contrariando-os e levando a sério a encruzilhada em que estamos, esclarecesse acerca disso, desde logo, o país.
Professor da Universidade de Coimbra