Como as elites culturais se tornaram excedentárias

O seu unanimismo artificial está bem patente na produção do consenso imposto, são todos Black Lives Matter, #MeToo, anti-Trump, entre outros. Da mesma forma, nos grandes canais do sistema, nunca falta o especialista de serviço para reafirmar até á exaustão a sua profissão de fé contra Trump ou, por cá, contra Ventura.

Esta publicação fala de uma das transformações sociais mais significativas no ocidente, o processo de decadência e irrelevância das tradicionais elites culturais de áreas como as humanidades e as artes. Algum do debate político reputa o descrédito destas elites por serem uma deriva pós-marxista ou pós-moderna, o que não é factual, trata-se, regra geral, da reprodução da ideologia liberal progressista, que subsumiu o liberalismo cultural e também o novo esquerdismo. Quanto mais liberais são os países, mais o progressismo e a sua ramificação wokista ganham força – como se observa nos países anglo-saxónicos.

Chamamo-las elites porque, no Ocidente, o sector cultural da burguesia, como os intelectuais tradicionais, escritores, figuras dos média, atores, artistas e produtores culturais, académicos dos cursos de papel e caneta, quando alcançavam prestígio, desempenhavam um papel significativo e tinham um estatuto elevado. Estes tinham peso na opinião pública, moldavam o pensamento e tinham relevância na sociedade. Esse tempo acabou, a sua importância desvalorizou-se na opinião pública e no impacto na modulação do pensamento. No caso português a realidade ainda é mais penosa, pois essas elites vivem num estado crónico de dependência estatal e condenados à irrelevância cultural.

O papel típico destas elites é já principalmente performativa, como podemos observar em festivais de cinema, encontros literários, eventos da média e até em programas televisivos que misturam entretenimento e informação. Estas estão circunscritas a sinalizar quase em circuito fechado e sempre de modo monotemático a virtude do momento e a propagandear o pensamento único do bem derradeiro contra as supostas ameaças crescentes na sociedade. A cultura, os intelectuais e a média do sistema repetem sempre os mesmos discursos: Musk é mau, Trump é tenebroso, as alterações climáticas são um apocalipse iminente, o fascismo está a caminho, o Ocidente é racista e machista, a homofobia cresce exponencialmente, a democracia está em risco, e assim por diante.

O seu unanimismo artificial está bem patente na produção do consenso imposto, são todos Black Lives Matter, #MeToo, anti-Trump, entre outros. Da mesma forma, nos grandes canais do sistema, nunca falta o especialista de serviço para reafirmar até á exaustão a sua profissão de fé contra Trump ou, por cá, contra Ventura. Quem vê e/ou ouve um, ouviu todos.

Em Portugal esse unanimismo é ainda mais insuportável, comentadores televisivos, colunistas de jornais como o Público ou o Expresso e académicos convidados tendem a repetir narrativas progressistas importadas sobre — mudanças climáticas, desigualdade de género, críticas ao populismo—, muitas vezes sem uma adaptação crítica às especificidades locais. Esse unanimismo por cá é agravado por uma tendência histórica de imitação cultural: as elites locais muitas vezes espelham discursos de centros globais em vez de produzirem uma crítica original enraizada na realidade nacional. O caso mais notório é o da ascensão do Chega, abordado como um “fascismo iminente”, ecoando o alarmismo internacional sobre Trump ou Marine Le Pen, quando o problema é outro, no caso nacional, a estagnação económica, a crise habitacional, os baixos vencimentos e oportunidades, onde a política funciona como uma casta de interesses e privilégios não acessíveis à maior parte das pessoas.

A fragilidade económica do país e a falta de um forte mercado cultural gera também uma forte dependência do Estado, mediante subsídios, prémios ou cargos públicos, o que explica uma submissão aflitiva ao poder dominante. Quem diverge é silenciado para sempre. O Estado português e autarquias, mesmo num contexto de recursos escassos, têm sido o principal mecenas da cultura, financiando festivais de cinema, teatro ou literatura. Esta prática gera dependência e um inevitável seguidismo e conformismo.

A degradação da qualidade das elites culturais não é a única nem a principal causa, essa é em parte até uma consequência do resultado das transformações económicas, laborais e tecnológicas que as tornou excedentárias. Referimo-nos, como já vimos, às áreas das letras e humanidades – sociologia, antropologia, comunicação social, jornalismo, artes, filosofia, entre outras –, que são agora cada vez mais irrelevantes e dispensáveis.

Para entender a decadência geral dessas elites é preciso compreender um conjunto de mudanças estruturais na sociedade. As mudanças estruturais do capitalismo, por exemplo, como a financeirização da economia a partir dos anos 80 e a ascensão da cultura digital a partir do início do século XXI, que levaram inevitavelmente à desvalorização de certas áreas profissionais e do conhecimento. O mercado já não consegue absorver o excedente dos indivíduos destas áreas e atividades, a forte competição entre eles, a diminuição do seu reconhecimento, a degradação da sua qualidade, a desvalorização do seu capital simbólico tem provocado uma dupla degradação, aparentemente antagónica, ou seja, a necessidade de agradar ao sistema e um crescente ressentimento pela perda de estatuto. Se por um lado têm de agradar ao sistema para manterem a visibilidade, por outro esse sistema relega-os para uma posição cada vez mais irrelevante. Essa contradição explica muito do seu comportamento. Afinal, quem ouve hoje um intelectual? Ou se interessa por uma preleção ideológica de um artista?

Essa perda de estatuto gerou revolta entre essa burguesia intelectual pela perda de destaque e poder económico. O capitalismo continua a concentrar riqueza, poder e prestígio, mas cada vez menos nestas áreas, tornando-as supérfluas e obsoletas.

Com a redução da sua função produtiva e da sua influência, essa elite transformou-se numa lumpen-intelligentsia supérflua. O termo remete-nos para uma atualização do conceito de lumpemproletariado de Karl Marx,. As elites culturais abandonaram o seu papel histórico de agentes transformadores e críticos na sociedade, assumindo a condição de um “neolumpem” — não do proletariado, mas da intelectualidade. No caso português, por exemplo, se um artista e a produção cultural praticamente não existem sem o financiamento estatal, se apenas meia dúzia de pessoas vê os filmes do cineasta, se o escritor não tem leitores, se o académico não é lido nem produz pensamento, se 20 comentadores televisivos repetem todos os mesmo, se não têm impacto social e público, a sua condição é praticamente inútil.

Esta nova classe intelectual acabou a produzir, na maioria das vezes, discursos vazios, repetitivos e alinhados com o próprio sistema, sem contribuir de forma significativa para o progresso social ou para uma crítica política efetiva. Não há, na maior parte dos casos, uma verdadeira autonomia intelectual, mas sim uma contínua reciclagem estilizada de narrativas convenientes. Assim, essa lumpen-intelligentsia é sinónima dessa burguesia intelectual excedentária. Há exceções, claro, existem vozes dissonantes que, mesmo dentro desse sistema, conseguem questionar a narrativa oficial, mas são cada vez mais raras e isoladas.

Essa desvalorização levou também a um retraimento desse grupo, que vive numa bolha autocentrada forjando conceções idealizadas do mundo, mas afastada das preocupações e lutas da maior parte da população. A sua dependência, por exemplo, do Estado, leva-os a servirem de instrumentos da legitimação do discurso dominante e de modo asseguram alguma sobrevivência. É desse modo que obtêm um êxito relativo dentro do sistema com o preço de servirem como órgãos de propaganda. São agora meros serventuários das estruturas do poder, tendo a função de legitimar os discursos hegemónicos e a narrativa oficial, produzindo conteúdos que servem para reforçar a ordem estabelecida. Essa dependência e submissão acabaram também por gerar um tipo de ressentimento projetado sobre a civilização e cultura em que vivem e que os tem tornado obsoletos.

Não é exagero também afirmar que as grandes questões da intelectualidade e da cultura estão agora nas mãos dos cientistas e tecnólogos e de raros casos de homens independentes que conseguem sobreviver ao ostracismo progressista. O resto não passa de modismos circunstancias acompanhados por um espetáculo cansativa.

Um certo narcisismo intrínseco destas elites produz, apesar da consciência da frustração sobre a sua verdadeira importância, uma certo autos-sobrevalorização, mas a bolha em que vivem é cada vez mais exígua, apesar de considerarem que esta reflecte o interesse do todo social.

A noção de ressentimento em Nietzsche oferece uma chave para compreender a psicologia deste grupo. Para Nietzsche, o ressentimento é o mecanismo pelo qual os grupos marginalizados transformam a sua frustração numa forma de vingança simbólica contra o sistema que os exclui. No caso das elites culturais, esse ressentimento manifestou-se numa adesão intensificada às causas progressistas, possivelmente como estratégia para recuperar estatuto e relevância.

O ressentimento também se manifesta em Portugal, mas com características próprias. As elites culturais portuguesas, cientes da sua posição periférica na Europa e da dependência do Estado, adotam frequentemente posturas hipercríticas como forma de legitimação. O seu progressismo, embora atenuado, ainda se faz sentir, especialmente nos debates sobre racismo (associado ao passado colonial), género ou diversidade, muitas vezes impulsionados por académicos, artistas e colunistas. Eventos literários e programas televisivos incluem regularmente painéis sobre “descolonização” ou “inclusão”, temas que, embora relevantes estão desfasados num contexto nacional onde a pobreza, a emigração jovem e o envelhecimento populacional são preocupações mais imediatas para a maioria da população. A tendência de importar discursos dos EUA e de outras nações europeias mais desenvolvidas resulta numa adaptação forçada e, por vezes, incongruente com a realidade portuguesa. Nesse cenário, André Ventura tornou-se o alvo predileto para essas elites, servindo como ponto de referência para a aplicação de categorias e discursos importados. Rotulado de extremista, racista e fascista, o debate em torno da sua figura obscurece uma análise mais profunda das razões do apelo popular do seu partido, deixando de lado as dinâmicas sociais e políticas que explicam a sua ascensão.

O conceito de “superprodução de elite” utilizado por Peter Turchin fornece-nos a explicação de uma das principais causas da degradação das elites contemporâneas. No ocidente forma-se um número de membros potenciais da elite, muito superior à capacidade da estrutura de poder para os acomodar, criando um excesso de competidores para um número limitado de posições. Encontramos muitos desses indivíduos de áreas como a sociologia, antropologia, jornalismo e literatura a trabalhar como caixas de supermercados, call centers, em lojas de centros comerciais, etc.

O conceito de Turchin é particularmente relevante para a análise da sociedade portuguesa. Desde 1990, houve uma explosão de licenciados em humanidades e ciências sociais com aspirações a carreiras culturais ou intelectuais. No entanto, a economia portuguesa, caracterizada por baixo crescimento, dependência do turismo e ausência de indústrias criativas robustas, não conseguiu absorver esse trabalho qualificado. Como resultado, muitos desses licenciados enfrentam empregos precários, como bolseiros de investigação, estagiários perpétuos ou freelancers no jornalismo, ou emigram.

Essa desvalorização do “capital simbólico” gera uma burguesia intelectual frustrada que, tal como noutros países, canaliza o seu ressentimento para discursos moralizantes e ataques ao sistema que os formou. Em Portugal, essa frustração manifesta-se no mimetismo dos jargões progressistas, mas geralmente sem propostas concretas ou impacto real.

Nesse contexto, muitas pessoas, incluindo intelectuais, profissionais qualificados e jovens ambiciosos, recebem educação e treino para ocupar posições de prestígio, mas encontram o seu caminho bloqueado devido à falta de oportunidades. O sistema já não consegue absorver esses indivíduos no topo da hierarquia social. Frustrada com a falta de mobilidade, essa burguesia intelectual voltou-se contra a sua própria cultura e história, num processo, muitas vezes inconsciente, de vingança. Como vimos, essa vingança é simultânea com o comportamento aparentemente contraditório de subserviência à mundividência dominante. Estão frustrados, mas devem servir o sistema por uma questão de sobrevivência, e acabam a acreditar nesse papel que a responsabilidade não é do sistema que os controla. Ora, no caso concretos das pautas progressistas, estas estão a servir como um dos meios para desviar as atenções do grau de destruição do tipo de capitalismo globalista e amoral instalado. As políticas identitárias e as batalhas culturais são alçadas ao centro do debate político, ofuscando questões estruturais como a desigualdade económica, a precarização do trabalho e o aumento da pobreza. As narrativas que enfatizam microagressões e a ideia de que o Ocidente nunca foi tão machista, homofóbico e racista acabam por servir para minimizar os problemas sistémicos, como as hierarquias de classe e o agravamento das condições laborais. Dessa forma, ao impor determinadas pautas, essas elites contribuem para marginalizar as multidões que, de facto, sofrem em sociedades cada vez mais brutais e desiguais do ponto de vista económico, psicológico e social.