Gonçalo M. Tavares. ‘Não sou fã de uma arte para adormecer as pessoas’

Defende uma arte exigente, que requer energia e empenho por parte das pessoas. E recusa baixar a fasquia. Muitas vezes, edita os seus textos mesmo sabendo que isso o vai fazer perder leitores. ‘Como não dependo da venda dos livros, faço o que quero e a minha mão não treme’, assume.

Regressamos à conversa com Gonçalo M. Tavares, a propósito da publicação de Museu Imaginário da Europa e Outras Ideias (ed. Relógio d’Água). Na primeira parte da entrevista, o escritor falou-nos sobre a cidade como máquina, a descoberta da literatura e o «bunker espacial e temporal» onde se fecha todas as manhãs para trabalhar. Revelou-nos ainda que tem dezenas de livros na gaveta para publicar. Hoje vai explicar-nos por que se recusa a fazer concessões, a baixar a fasquia, mesmo sabendo que pode perder leitores por causa disso.


Não lhe interessa a biografia dos escritores?
Nunca foi algo que me entusiasmasse muito. Mas claro que a biografia é importante, e claro que podemos simpatizar mais com a biografia de um determinado escritor. Eu, por exemplo, admiro muito uma coisa que às vezes não é tão valorizada: o Lobo Antunes começou a escrever aos 20 anos, e aos 30, 40, 50 continuou a escrever. Certamente recebeu convites para coisas ligadas à política, ao poder, à economia, etc. E foi dizendo que não, que não, que não. É uma coisa quase da ordem da obsessão: alguém que vai dos 20 aos 80, e o que quer é escrever. Não é alguém que foi à guerra, não é uma coisa grandiosa ou heroica. Mas a mim bastar-me-ia. Essas obsessões criativas, que não envolvem violência em relação aos outros, parecem-me muito admiráveis. Porque é muito fácil uma pessoa escrever um livro. É muito fácil escrever um poema à segunda-feira. Difícil é estar um dia, outro dia, domingo, segunda, terça, quarta, domingo, segunda, terça, quarta… um ano, outro ano… Este tipo de maluquice eu admiro.

Embora haja escritores que fazem outras coisas.
Claro. Eu também admiro o escritor que de repente abdica de fazer mais obra por exemplo para coisas de intervenção. Há muitas formas de admirarmos as pessoas. Mas é bom não nos esquecermos disto: se alguém quer escrever, os livros são o essencial. Se quer pintar, os quadros são o essencial. No caso dos músicos, é muito comum transformarem-se em pessoas panfletárias. Até podem estar a defender uma causa extraordinária, mas de repente deixam de ser músicos. Pode ser interessante a nível político, mas é desinteressante a nível criativo.

Há uns anos li uma entrevista à Rosa Montero em que ela aconselhava os escritores a terem uma profissão de retaguarda, porque assim têm como ganhar a vida, e só escrevem mesmo o que querem escrever, não têm de escrever por obrigação. O escritor profissional não pode ficar enredado numa teia de solicitações, em que tem de promover os livros, ir a festivais, etc.? Isto para não falar na obrigação de publicar com uma certa regularidade…
Eu escrevo o que quero, quando quero, com total liberdade. Se tiver 2000 leitores, óptimo. Se tiver 100 leitores, óptimo. Não escrevo para ter mais leitores, não escrevo o que as pessoas querem eventualmente ler – escrevo o que tenho necessidade de escrever. Isso é o sagrado. Acho perigoso quando se depende da venda de livros, porque aí queremos chegar a 10 mil pessoas, a 20 mil pessoas… E, infelizmente, muitas vezes os livros que vendem muito não são bons, chegam a pessoas que não percebem nada de nada. Às vezes estou a rever os meus livros e corto uma frase ou uma palavra ou duas e sinto que o texto fica menos fácil, mas claramente fica melhor. Com o corte daquela frase vou perder 50 leitores. E depois corto outra frase e penso: ‘Olha, perdi mais 50’. Felizmente, como tenho liberdade total e não dependo da venda dos livros, faço o que quero e portanto a minha mão nunca treme. Corto e pronto. E aceito que eventualmente estou a perder leitores, é a vida. Tento fazer o livro o mais seco possível, o mais forte possível, no meu juízo crítico, sem ser influenciado. Se dependesse exclusivamente da venda de livros, provavelmente a minha mão estaria a tremer e a duvidar. E a minha mão não treme, não duvida.

Não põe um bocadinho mais de açúcar para adoçar a boca dos leitores…
Não, não, nada, nada, nada. Respeito muito os leitores para fazer isso. Acho que às vezes um leitor forte vale por muito. É a diferença de entre pescar à linha e pescar à rede. Na pesca à rede, a pessoa atira e pode apanhar peixe, mas pode apanhar latas. Eu gosto muito de pescar à linha. E tenho leitores incríveis.

Conhece-os?
Sim. Há alguns que são escritores, e sabem como escrever é uma coisa dura.

Conhecem o ofício.
Exatamente. Sei que muitos não concordarão, mas sou contra a ideia da escrita como distração, da escrita para pessoas cansadas. A arte tem de ser de alguma exigência, a criação tem a ver com introduzir estímulos. Os estímulos requerem a energia das pessoas e, portanto, não sou fã de uma arte para adormecer as pessoas.

Não baixa a fasquia.
Se, no limite, só ficar uma pessoa a ler um livro meu mas essa pessoa fizer com a leitura qualquer coisa de forte, já valeu a pena. O Séneca, nas cartas a Lucílio, que é para mim um livro de referência, tem frases muito fortes, como: ‘Não dês importância aos aplausos de pessoas a quem não aplaudirias’. A ideia de que tudo está a venda, a ideia de que somos vendedores de aspiradores e queremos que o máximo de pessoas comprem um aspirador não pode entrar na arte. A arte é outro nível, outro mundo, é como interferimos na linguagem, no pensamento, etc., e não nos rendermos a um processo geral de venda…

Indiscriminada?
Há casos históricos muito engraçados. O Walt Whitman vendia os livros pessoalmente, e muitas vezes conversava com a pessoa para perceber se era merecedora de comprar o livro dele. A algumas pessoas ele nem sequer tentava vender o livro, porque achava que não valia a pena. É uma questão também de educação. Na escola, há hoje uma tendência paternalista de atacar a dificuldade. Quando um texto é difícil, bate-se com o martelo até ficar muito simples. Como se fosse culpa do texto. Não é culpa do texto, é culpa de quem está a tentar ler o texto e não tem aptidão para o interpretar. O que está a acontecer é simplificar-se cada vez mais. Tenho um filho que estuda matemática. É impensável um matemático estar diante de um problema que acha difícil e dizer: ‘Dê-me um mais fácil que eu não percebo isto’. Se ele está diante de um problema difícil, tem que trabalhar até aquilo que é difícil se tornar fácil. O que está a acontecer a nível do texto, na escola, é que quando se encontra uma coisa difícil, pede-se uma mais fácil. E de repente as pessoas estão habituadas a receberem textos com ideias base, o que faz com que depois sejam convencidas por políticos com argumentos de quarta classe. Sinto que em vários países as pessoas estão a ser trituradas, e em parte porque começam, desde o início, a receber textos cada vez mais simples. E pronto, estão com 30 anos a ler textos para quatro anos, cinco anos.

Mas também se pode escrever bem de uma forma simples.
Claro. O Hemingway.

É o exemplo que eu ia dar.
Muitas pessoas dizem que se pode começar a ler livros maus e depois vai-se ler livros bons. Eu acho isso absurdo. Há milhares e milhares e milhares e milhares de grandes livros. Alguém que lê livros maus está a perder tempo. Até porque os livros bons não precisam de ser complexos. O Hemingway é um bom exemplo. Qualquer pessoa, com qualquer idade, pode ler O velho e o mar.É um grande livro, super simples. Outro americano, o William Saroyan, que é menos conhecido, tem contos muito simples, parece alguém que está a falar no café, e são fabulosos. Podemos fazer uma lista de mil grandes livros que têm uma linguagem absolutamente simples. O Joyce é complicado, mas o Hemingway… Porque é que as pessoas vão ler uma porcaria qualquer em vez de lerem Hemingway?

Tive um amigo que dizia que às vezes é preciso beber um mau vinho para darmos valor aos vinhos bons.
Mas a questão é que a pessoa vai morrer. Se fôssemos imortais, podíamos beber um vinho mau, ver filmes horríveis, não havia problema. Mas não somos. Um filme do Tarkovsky, em termos de qualidade da imagem, vale 100.000 telenovelas. Se alguém quer aprender sobre imagem, aprende mais em cinco minutos d’A infância de Ivan do que em 100 mil horas de telenovelas. Essa ideia de que é tudo igual, de que Tarkovski é igual a uma coisa qualquer, ou de que um grande livro é igual a outra coisa qualquer, é completamente falaciosa. Parte da minha vida é a ler e a descobrir autores, e estou sempre a descobrir autores incríveis.

Comno os descobre? Vai à livraria e começa a folhear?
Sim, ou alguém me fala. Só para dar um exemplo recente: talvez há seis meses, e digo isto com vergonha, descobri a Irène Némirovsky, uma escritora ucraniana. Os cães e os lobos é uma obra-prima. E há grandíssimos escritores que estão a escrever hoje e a fazer coisas novas. Ler livros maus ou ver filmes maus, havendo milhares e milhares de livros e filmes bons, é totalmente tonto.

E um livro bom custa o mesmo que um mau…
Isso é mais um argumento. Se O velho e o mar custasse 100 € e um livro muito mau custasse 5 €, a pessoa poderia dizer: ‘Eu não consigo ler um livro bom porque é muito caro’. Mas não, não há razão nenhuma. Aliás, o que é incrível é que muitas vezes os livros muito bons – há livros muito bons simples, mas também há uns não tão simples – vendem pouco e depois ficam em saldo. Ou seja, muitas vezes os livros bons são mais baratos do que os outros. Eu comecei a ler a Maria Gabriela Llansol, que não é nada fácil, para aí com 20 anos. E porquê? Eu não tinha dinheiro nenhum e os livros da Maria Gabriela Llansol estavam a 3 euros, 4 euros, numa feira do livro que havia na Ribeira, em Lisboa.

No mercado da Ribeira.
Abri ao acaso e achei ‘isto é bom’. Comprei. Acho que esse é um bom argumento: a boa literatura não é mais cara. Ao contrário do vinho.

Sempre vi muito o escritor como um reservatório: de experiências, de ideias, de leituras, de palavras, de imagens. E depois chega uma altura em que despeja esse conteúdo para um livro, e o reservatório fica vazio. Mas, no seu caso, produz tanto que me interrogo se o reservatório nunca se esgota ou está sempre a ser preenchido de novo. Como é?
O Museu Imaginário da Europa, que saiu agora, é um bom exemplo de um livro que não é parecido com nenhum. É da mesma família do Atlas do Corpo e da Imaginação, mas não há nenhum livro meu que seja parecido com este. Tento sempre procurar novos caminhos. Um dos livros de que mais me orgulho é o Diário da Peste, que fiz na altura da pandemia. Escrevia diariamente para o Expresso, mandava, e depois publiquei em livro. Publiquei depois As botas de Mussolini, que é uma coisa entre a história do século XX, a poesia e o ensaio. Publiquei Na América, disse Jonathan, que é um livro que tem a ver com um retrato de Kafka e um diário. Respeito muito os autores que escrevem sempre o mesmo livro – o Philip Roth, por exemplo – e escrevem sempre extraordinariamente bem. Mas eu não sou um desses autores. Escrevi o Jerusalém e o Aprender a rezar na era da técnica, eu sei fazer aquilo, não me interessa estar a minha vida toda a fazer aquilo. Já fiz, são coisas de que me orgulho, mas não quero continuar a fazê-las. Tento sempre seguir por rumos diferentes. Este Museu Imaginário, logo ao folhear percebe-se que tem uma estrutura que eu nem sei bem o que é. E isso interessa-me muito.

Sempre a explorar.
Gosto disso também como leitor. De estar diante de um livro e ter que me adaptar. Quando pergunto ‘O que é que é isto?’ não é uma pergunta negativa. Significa que o que eu estou a ler obriga-me a pôr-me numa posição um pouco diferente como leitor. E tento isso. Não por uma decisão, digamos, intelectual, mas é uma coisa quase orgânica. Quero fazer coisas diferentes, quero sentir que cada obra segue por um caminho totalmente autónomo.

Olhando para outros escritores, baseiam-se em experiências da sua vida em histórias que ouvem… ou seja, as coisas chegam-lhes de algum lado. No seu caso, sai tudo da sua cabeça e das leituras que faz?
Como disse, tenho livros muito diferentes e alguns deles são mais ligados à realidade. No caso do Diário da peste, apanhou a pandemia e havia uma relação muito grande com as notícias, com o que estava a acontecer, etc. O Viagem à Índia é algo que parte d’Os Lusíadas. Mas no geral eu escrevo ficção. O Museu Imaginário [da Europa] tem mais a ver até com ideias de arquitetura, ideias malucas, ligadas ao espaço. Mas eu interesso-me por coisas muito diferentes. Interessa-me a ciência, interessa-me muito a arte contemporânea, e o Museu Imaginário e o Atlas aproximam-se de alguma coisa da arte contemporânea. Os meus estímulos são muito distintos.

Como é essa relação com a arte contemporânea? Vai a museus e galerias, ou é mais mediada pelos livros?
Também. Fui-me cruzando, por um lado, com cientistas, e, por outro lado, bastante com arquitetos. Os arquitetos, não sei bem porquê, adotaram-me. Não percebo nada de arquitetura, gosto de pensar sobre a porta, sobre a janela, sobre o telhado. A Poética do Espaço, do Bachelard, marcou-me muito. Mas também me fui cruzando com artistas contemporâneos. Pedem-me às vezes textos para catálogos, e já troquei um texto por uma obra. Tenho dois desenhos do Julião Sarmento que trocámos quando fiz um livro com ele. E é uma coisa que me agrada muito. Há uma troca de ofícios, sem intervenção do dinheiro. De forma muito natural fui-me aproximando da arte, tanto a nível de livros e de autores, como a nível das obras de artistas contemporâneos. Se calhar uma parte da arte contemporânea é fake…

Charlatanice?
A arte contemporânea é mais falsificável. Agora, a grande arte contemporânea é muito, muito boa. Na arte mais clássica há uma questão técnica. Diante de um Caravaggio eu digo: ‘Eu não consigo fazer isto’. Diante de uma banana com fita-cola na parede, as pessoas dizem: ‘Eu consigo fazer isto. É uma charlatanice’. Mas a arte contemporânea vive muito de ideias. Para dar um exemplo de um artista de que eu gosto particularmente, o Francis Alys, tem uma obra muito simples, uma performance que é empurrar um bloco de gelo ao longo da Cidade do México. É evidente que, à medida que vai empurrando, o bloco de gelo vai desaparecendo com o calor. A performance chama-se qualquer coisa como ‘Às vezes fazer muito esforço não leva a nada’. Porque realmente ele leva horas e o gelo às tantas é tão pequenino que ele está quase a dar-lhe pontapés e por fim desaparece. É uma coisa muito simples e nós podemos perguntar: alguém não conseguia fazer aquilo? Toda a gente consegue. Mas é quase o mito de Sísifo [condenado para sempre a carregar um pedregulho até ao cume de uma montanha, pedregulho esse que depois acaba por rolar pela encosta abaixo, obrigando a um novo esforço…] adaptado ao contemporâneo. Ele está a transportar uma coisa que vai desaparecendo à medida que ele a transporta. No meu entender, é uma ideia muito bonita. Toda a gente podia fazer aquilo. Tecnicamente não requer nada a não ser empurrar. Mas não deixa de ser uma bela ideia. E a boa arte contemporânea vive disto, de boas ideias. Claro que depois há a charlatanice, há o comércio. Mas acho que também há uma questão na arte contemporânea interessante. É muito democrática. Ou seja, todas as pessoas podem intervir, ninguém fica de fora por não ter aptidões técnicas. Às vezes basta ter uma boa ideia.

Falando do título do seu livro, que imagens convoca para si a palavra museu? A páginas tantas compara-o a uma Arca de Noé que salva o que merece ser salvo.
Pode ter muitas leituras. Se dissermos que no dia de hoje estão a ser publicados, não sei, um milhão de livros em todo o mundo, acho que não estamos a exagerar. E quantos quadros estão a ser pintados? E falamos de produção humana, não de produção da inteligência artificial, que vai pôr isto noutro patamar. Eu não posso guardar tudo, não posso ter um museu de tudo e portanto só posso ter alguns quadros. Nesta espécie de inundação, de dilúvio – um dilúvio de imagens -, quais são as imagens que vamos resgatar? Dos milhões de quadros a serem feitos, que quadros vamos salvar, vamos pôr na Arca de Noé? Porque realmente há um dilúvio de textos, de imagens, de quadros, de músicas…

De informação.
E até como leitor: o que é que eu vou salvar? O que é que vou ler neste dilúvio? Neste dilúvio de grandes obras, como vou construir a minha Arca de Noé mental? O que vou salvar na minha cabeça?

Como eu vejo as coisas, nos seus livros existe uma tentativa de pôr a lógica à prova e propor alternativas, e com elas criar uma nova lógica que pode incluir o absurdo. Não sei se se revê nesta interpretação…
Sim, acho que é uma boa leitura. Desconfio da pura racionalidade, porque a pura racionalidade pode ser totalmente violenta até eticamente. Muitas vezes as coisas mais racionais são muito impiedosas. Politicamente estamos a ver isso. Olhamos para a estatística como um instrumento de racionalidade. É evidente que é um instrumento da racionalidade – e também da impiedade e da falta de empatia, etc.

Como dizia Estaline: ‘Uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística’.
A racionalidade pura é perigosa. A estatística é um bom exemplo. Temos que perceber o que é que aqueles números significam em termos humanos. Por isso muitas vezes tento introduzir por um lado o imaginário e, por outro lado, a questão do absurdo. A minha cabeça é muito misturada… Logo n’O senhor Valéry a questão da lógica está presente. Mas, se eu levar a lógica ao extremo, entro no absurdo. Por exemplo, na física, a ideia de que o caminho mais curto entre dois pontos é uma linha reta. Eu estou no Café Luanda e de repente quero ir em direção a uma senhora que está atrás do balcão. Se eu traçasse uma linha reta, ia buscar um escadote, subia ao balcão, descia, etc. E, portanto, se eu aplicasse as leis das ciências exatas, puramente racionais…

Entrava no domínio da irracionalidade.
Entrava numa coisa meio Charlot ou Jacques Tati. Realmente a pura racionalidade leva-nos ao absurdo. E muitas vezes a racionalidade, a estatística, tem muito a ver com isso: fazer linhas retas…

Aquilo a que se chama ‘cortar a direito’.
É o que está a fazer até agora a administração americana: estão a planear fazer uma Riviera, com praias e sítios turísticos, em locais onde por azar vivem 2 milhões de pessoas há uma série de tempo. Têm os seus mortos lá, os seus rituais, os seus vivos, os seus filhos futuros… E de repente é isso: uma linha reta, deita-se tudo abaixo e não há humanos. Hoje algumas coisas que vamos ouvindo na administração Trump são um pouco isso: são pessoas que traçam linhas retas mesmo quando há pessoas no meio, fazem uma autoestrada por cima de pessoas se a autoestrada for o caminho mais curto. Estão obcecadas com a racionalidade.

Agora que referiu O senhor Valéry, um dos seus primeiros livros, pergunto-lhe: vê-o como algo próximo ou distante?
Orgulho-me muito desse livro. Quando é reeditado eu nem mexo nele. Aliás, não me lembro de alguma vez ter mexido num livro depois de o publicar. Como disse, tenho aquele processo de vários anos. Sinto-me muito próximo d’O senhor Valéry. Mas, como digo, vou seguindo percursos diferentes.

Há lá uma ideia que eu achei muito engraçada, quando ele, que é baixo, diz que salta e fica da mesma altura que as outras pessoas só que por menos tempo. Vejo o escritor um pouco assim: como alguém que salta e fica mais alto por aqueles momentos. Ao registá-lo por escrito, fixa esses pensamentos ‘elevados’, e por isso vemo-lo sempre na sua melhor versão.
É uma boa metáfora. A imaginação é uma coisa que eleva e eu gosto muito do mundo imaginário, um mundo ficcional totalmente imaginário; mas também gosto muito dos pés na terra. Pensando no Valéry, gosto do salto – quando saltamos conseguimos ver coisas diferentes. Mas gosto também quando voltamos à terra e percebemos que nem tudo é imaginário e há coisas terríveis. A realidade, a questão política, as notícias interessam-me também. Não sou uma pessoa completamente alheada do que está a acontecer.

[entretanto vai rabiscando esquemas e desenhos]
Anda sempre assim com uma caneta na mão? Ajuda-o a pensar?
Sim… Estou sempre com uma caneta e papel. Mesmo a ler. Leio sempre com lápis.

Para tomar notas.
É talvez uma heresia terrível, agora às vezes até leio com caneta. Mesmo ficção, poesia… Aliás, não consigo ler sem lápis. Para mim, o ato de pensar, que está ligado ao ato de escrever ou ao ato de ler – ler também é pensar -, está ligado a ter uma caneta, um lápis. Se estou a ler um livro sem lápis sinto-me desarmado. É como se estivesse a ver televisão. Eu, como leitor, não me sinto um espectador, sinto-me um emissor. E só me sinto emissor porque tenho lápis.

Acho que era o George Steiner que dizia que os judeus leem sempre com o lápis na mão, porque têm a expectativa de vir a escrever um livro.
Há casos de presos que não tinham folhas brancas e que escreveram livros nos espaços brancos das margens. E depois de estar tudo ocupado pode-se escrever até no meio, no chamado espaço entre linhas. Simbolicamente, o espaço em branco dos livros é um espaço para se escrever. Se o livro só fosse para ler, todo o espaço estaria ocupado por tinta, e não está, há muito espaço branco.

E o que gosta de ler atualmente?
Leio coisas muito diferentes. De manhã leio mais ensaio, filosofia e coisas mais pesadas, digamos, porque minha cabeça está mais forte. E depois à tarde normalmente estou mais cansado, leio mais ficção, poesia, etc. É como se fosse uma carga física. De manhã aguento mais carga física, portanto leio coisas mais difíceis. Mas leio muito ensaio – misturo -, leio ciência, arte contemporânea, enfim… Às vezes ando com uma mochila com sete ou oito livros – um de contos, um de ensaio, um de não sei quê -, e leio três páginas de um, duas páginas do outro… É uma leitura muito desorganizada e acho que isso faz parte quase da minha cabeça. Para mim está tudo misturado.

Pelo que percebi, também trabalha em vários livros ao mesmo tempo. É uma coisa quase heteronímica…
Um pouco. No limite, isto quase podia ser assinado por autores diferentes. O tipo de escrita das Canções nada tem a ver com o da Epopeia ou com o das Mitologias ou com o do Atlas. Walter Benjamin dizia que o golpe decisivo será dado com a mão esquerda. Gosto desta ideia de fazer géneros literários diferentes. Era bonito que cada livro inaugurasse um género literário. A ideia de género literário – conto, romance, ensaio… – parece-me muito pobre.

Não gosta de categorias estanques?
A literatura ainda tem um bocado as categorias do conto, da ficção, do ensaio, de não sei quê. Isso parece-me quase sempre uma perda em relação à linguagem, porque a linguagem pode pensar, pode contar uma história, pode ser sonoramente forte. E quando nós pensamos por gavetas, se estou a escrever um poema, então eu não posso pensar, porque pensar é para o ensaio. Começa a ficar um absurdo, porque a linguagem é feita para pensar, para ter ritmo, para contar uma história. E nós temos muito essa divisão. A ideia de que uma coisa é contar uma história e outra coisa é o pensamento filosófico é uma ideia muito ocidental. Há uma tradição do pensamento filosófico oriental baseada em histórias.

A Bíblia está cheia de parábolas
E o que é uma parábola? É um conjunto de pensamentos, ou de possibilidades de pensamento, dentro de uma história. Claro que há muitas exceções. Por exemplo, eu gosto muito do Wittgenstein porque ele às vezes conta micro-histórias a partir das ideias. Mas normalmente o Ocidente pensa por conceitos e faz uma definição. Há uma história chinesa de que eu gosto bastante, de um homem que saiu à rua para comprar sapatos e encontrou um homem que não tinha pés. É uma história incrível sobre a questão da necessidade e do luxo. E é isto: nós podemos pensar a partir de um conceito e podemos pensar a partir de uma história. Muitas vezes essa divisão faz com que os romances sejam apenas contar histórias para boi dormir.

Para entreter.
Isso parece-me um disparate. A história tem que interferir no leitor. Nós já somos adultos, não temos três anos. Não são os nossos pais que nos estão a ler para nós dormirmos. Mas eu sinto que às vezes homens com barba, com 30, 40 e 50 anos, estão a ler histórias para adormecer, como se fossem meninos. E já não somos meninos.