O suicídio de Montenegro

Montenegro é o único responsável por mais este pântano em que a nossa pobre classe política nos insiste em manter atolados até ao pescoço, tendo provocado, conscientemente, uma grave crise política que nos vai conduzir a mais umas desnecessárias eleições antecipadas que ninguém desejava.

Não tenhamos dúvidas de que a diferença ideológica que vai do PS ao PCP e ao Bloco de Esquerda é significativamente maior da que vai do PSD ao Chega.

Tal constatação não impediu que os socialistas se tivessem aliado aos comunistas e aos bloquistas para que Costa se pudesse ter assumido como primeiro-ministro e, graças a essa improvável aliança, tivesse governado uma legislatura inteira sem sobressaltos dentro da área política de que se socorreu.

Mas Montenegro, quando chegou a sua vez de se mudar com armas e bagagens para S. Bento, logo descartou qualquer tipo de entendimento com o espaço à sua direita, empurrando, dessa forma, o Chega para a oposição e, consequentemente, levando-o a estabelecer acordos cirúrgicos com a esquerda parlamentar.

O “não é não” de Montenegro resultou em que não foi possível levar-se a cabo as reformas necessárias de que Portugal bem precisa para o afastar da cauda da Europa, desaproveitando-se uma maioria parlamentar confortável do espectro político sensível a essa profunda transformação social, económica e financeira que tarda em ser implementada.

Esta é a bitola que separa a esquerda da chamada direita parlamentar portuguesa: enquanto que aquela se une nos momentos críticos, esta teima em se manter dividida, mesmo quando a situação deplorável do País implora por um entendimento que se sobreponha às naturais divergências que dividem os partidos que se movem naquela área político. 

A teimosia e a intransigência da AD em procurar cooperar com o Chega, mesmo que essa estratégia não implicasse a participação daquele partido no arco da governação, levou a que Ventura, usando a máxima de que a vingança se serve fria, soubesse aproveitar a primeira oportunidade com que se deparou para ditar o derrube do governo chefiado por Montenegro, valendo-se de uma infantilidade do ainda primeiro-ministro que, após sobreviver a duas moções de censura, achou por bem sujeitar-se a um voto de confiança do parlamento, sabendo, à partida, que este seria rejeitado.

Sim, Montenegro precipitou a sua queda e sem que nada o justificasse.

Perante as acusações e suspeições de que foi alvo, somente lhe restavam duas alternativas: ou se demitia, por no seu íntimo admitir responsabilidades culpáveis no comportamento referente aos negócios em que se envolveu, permitindo-se, dessa forma, uma passagem de testemunho sem a necessidade de se recorrer a eleições antecipadas, ou, caso estivesse de consciência tranquila e seguro de que não praticou ilegalidade alguma, enfrentava a pressão e seguia em frente, sujeitando-se à anunciada comissão parlamentar de inquérito e sob as condições em que esta se deveria desenrolar.

Mas não, apesar de apregoar a sua inocência, sufragada, em parte, pelo chumbo das moções de censura ao seu governo, insistiu numa disparatada moção de confiança que tinha, à priori, chumbo garantido.

Montenegro é o único responsável por mais este pântano em que a nossa pobre classe política nos insiste em manter atolados até ao pescoço, tendo provocado, conscientemente, uma grave crise política que nos vai conduzir a mais umas desnecessárias eleições antecipadas que ninguém desejava.

Provavelmente, fiou-se em estudos de opinião que indicavam uma subida de intenções de voto na AD, acreditando que poderia percorrer um caminho semelhante ao de Cavaco Silva em 1986, almejando, com essa crença, a obtenção de uma maioria absoluta, à semelhança da alcançada por aquele seu antecessor.

Puro engano. Cavaco Silva não provocou a sua queda, bem pelo contrário, tentou sobreviver a uma moção de censura, e não de confiança, que lhe foi imposta por um partido emergente e que acabou por ser fortemente penalizado nas urnas por essa ousadia.

Além de mais, o então primeiro-ministro não estava a ser alvo de qualquer tipo de campanha direccionada ao seu carácter, mas apenas de contestações por parte daqueles que se opunham às políticas que estavam a ser levadas a cabo e que então recebiam uma sentida aceitação junto da opinião pública.

Daí ter sido largamente compensado no sufrágio eleitoral que não desejou nem provocou.

Nos tempos que correm, e apesar de ter sido bastante pressionado a retirar a moção de confiança, inclusive por gente que lhe é próxima, Montenegro manteve-se irredutível e levou a sua casmurrice até ao limite, mesmo tendo-se apercebido, e ainda a horas de rectificar a sua estapafúrdia decisão, de que as sondagens que assumiu lhe serem favoráveis se estavam a inclinar para o lado socialista.

Assistimos, então, ao momento mais hilariante e patético já vivido naquela câmara de má-fama, que muitos teimam em identificar como a casa da democracia, com a bancada do PSD praticamente a suplicar ao líder socialista que viabilizasse a moção que este nunca reclamou, só faltando mesmo àquele menino bem-falante, mas desprovido de tacto e senso político, e que dirige a maior bancada parlamentar, pôr-se de joelhos e derramar genuínas lágrimas de arrependimento dirigidas ao coração dos socialistas.

Em sentido contrário ao de se revelar firme e íntegro na sua intenção de se sujeitar ao escrutínio dos deputados, Montenegro humilhou-se e desceu ao nível de andar a discutir dias em que a eventual comissão de inquérito parlamentar deverá desenvolver os seus trabalhos, acabando por levar uma nega nas suas pretensões.

Uma palhaçada!

Sejamos sinceros, desde o primeiro momento em que aceitou a derrota eleitoral, que Pedro Nuno Santos deixou bem claro que o PS não iria viabilizar nenhuma moção de censura ao governo da AD, mas, em contra-partida, jamais votaria a favor de uma moção de confiança.

Por esta razão, atribuir-se as culpas pela crise política aos partidos da oposição, e em particular ao PS, não passam de desculpas de mau pagador.

Claro que Santos também se mostrou inflexível nos termos impostos pelo seu partido para o prazo da referida comissão, até porque se apercebeu do pânico e desolação estampado nos rostos dos seus mais directos adversários políticos, bem como, certamente, se deixou embalar  pelas novas sondagens que o fazem acalentar a esperança de sair vitorioso nas eleições que até então temia, razão mais do que suficiente para que Montenegro, em nome da estabilidade e do superior interesse nacional, tivesse aceitado esses mesmo termos e retirado a malfadada moção.

Teria saído daquele debate como um governante com sentido de Estado e não como um derrotado, conforme a condição a que se permitiu.

O governo estava na posse de todos os requisitos obrigatórios para que continuasse a exercer a missão que lhe foi confiada, mas agora, graças às traquinices mais apropriadas a crianças que nos obrigaram a assistir na sede do poder legislativo, Portugal caminha para o desgoverno que se estenderá ao longo dos próximos meses.

E pela frente temos um futuro incerto, com uma plausível probabilidade de os socialistas se apoderarem novamente do governo da Nação, com a agravante de agora reféns do radicalismo mais extremo que se instalou na cúpula do partido, tirando partido da desconfiança de parte considerável do eleitorado sobre a suposta inocência de Montenegro e da penalização com que normalmente castiga quem provoca as crises.

Se essa fatalidade se concretizar, Portugal voltará a marcar passo e os únicos culpados por esse triste destino serão Montenegro e os partidos que obedeceram cegamente à estratégia por aquele adoptada.

Acresce que mesmo que o próximo parlamento venha a ser povoado por uma maioria proveniente dos partidos que se situam à direita dos socialistas, cenário também possível, apesar dos disparates de quem ainda se encontra ao leme da governação, a viabilização de um governo chefiado por Montenegro tem já a morte antecipada, caso Ventura concretize a ameaça de não deixar passar nenhum executivo que tenha como cabeça de cartaz o actual presidente do PSD.

O “não é não” e a moção de confiança de Montenegro vão conduzir, quase certo, ao seu suicídio político!