Para mal do cardeal a morte não quis Santo Cristo

De uma generosidade escandalosa, Walter Goulart da Silveira cedeu o seu lugar num avião da VASP

Quando Santo Cristo chegou ao Fluminense em 1948 já lá estavam outros nomes do mesmo calibre. Vejam bem o samba que Pixinguinha podia ter feito com eles: Tarzan, Eros, Hélvio, Osny e Píndaro, Ismael, Pé de Valsa, Bigode, Rato, Irany, Grande, Berascochea, Índio, Mirim, Emílio, Oswaldinho, Rubinho, Enguiça, Goldenir, Pinhegas, Orlando Pingo de Ouro, Careca, Toinho e 109. Os jornais tanto escreviam 109 como Cento e Nove. O desgraçado chamava-se apenas José Pereira da Silva, nome de Barnabé com uma porrada de filhos, como diria o Nelson Rodrigues. Já Santo Cristo era mais finório: Walter Goulart da Silveira. De Silva aSilveira a distância pode ser se apenas três letras, mas o primeiro ganhou a alcunha por ser parecido com um tal de 109 que ninguém sabe quem é, e o segundo simplesmente por ter nascido no Bairro de Santo Cristo, bairro de portugueses que assim o apelidaram por terem trazido cá dos Açores, Ponta Delgada, São Miguel, uma imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Imaginem se a nossa gente tem criado um Bairro de Ponta Delgada. O Walter deixava de ser Santo Cristo e andaria pelos campos de futebol de forma muito mais pícara. Sorte a dele. Aliás foi um fulano com muita sorte na vida, não sendo santo mas com milagres que mereciam no mínimo uma beatificação. Sim, porque Santo Cristo veio da morte. Isso mesmo. Ou, se quiserem, a morte não quis nada com ele até morrer de morrer mesmo no dia 30 de agosto de 2003, contando oitenta anos.

Eu explico. Em 1944, o dia 27 de agosto calhou a uma sexta-feira. Walter jogava no São Cristóvão que disputara um jogo emSão Paulo. Por alguma razão que a lenda não especifica, separou-se dos companheiros teria de regressar ao Rio de Janeiro num voo mais tardio e sozinho com ele próprio. Era ainda um rapazito e muito religioso como oSanto Cristo parece anunciar. Não digo que durante a espera pelo avião da VASP no aeroporto deCongonhas tenha rezado o terço ou assim. Se o fez também é lá com ele.Quem conta esta história é oMário Filho, não por acaso irmão do já citado Nelson Rodrigues. Estava portanto o nosso amigo Goulart a rodar os polegares um à volta do outro, algo que também sou eu a adivinhar, quando entra na sala SuaSolenidade o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar. Aí já algum grilo falante fez com que o moço ficasse alerta. A azáfama começou a despertar da sua letargia e cresceu até ficar transformada num sururu. E o Walter ali à coca. De repente percebeu o motivo das conversas cruzadas: o avião estava cheio como um abade, com licença do Cardeal, e Dom José Gaspar corria o risco de ficar em terra e não comparecer numa ceia de cardeais, mas isto já sou eu a brincar com o Dantas que, segundo o Almada Negreiros, nu era horroroso. Santo Cristo apiedou-se.Era da sua natureza. Foi como se um chamado divino o obrigasse a dirigir-se ao CardealArcebispo, ou muito provavelmente foi um outro santo qualquer a safá-lo. Generoso comoCresus, ofereceu o seu lugar à ilustríssima figura da igreja brasileira. Os dados estavam lançados. Em vez dele voou o padre.Sorte a dele, azar do padre que aprendeu que para baixo todos os santos ajudam. 

Na aproximação à pista doSantosDumont (isto já tem tantos santos que parece o communio sanctorum) a aeronave já ia um bocado esgalhada. O piloto fez o que pode mas ninguém pode grande coisa contra oDestino. A hora estava marcada. Agora e na hora da vossa morte. O avião perdeu o equilíbrio, bateu com uma das asas no edifício da Escola Naval e mergulhou nas águas da Baía da Guanabara que continua linda mas não caiu no goto do antropólogo Claude Levy-Strauss. É o que diz o Caetano. Na boca banguela morreram dezoito pessoas, Cardeal incluído. E oSantoCristo vivinho da Silva, logo ele que era Silveira, a gozar do beneplácito dos céus à conta da sua escandalosa munificência. Talvez Deus o tenha benzido. Ou gostasse mais dos seus golos, que foram muitos, do que das palestras doCardealArcebispo. E por isso, Walter continuou a marcá-los, no Vasco da Gama e no Botafogo.O homem que veio da morte fez parte do Clube deGuerreiros doFluminense. E havia tardes em que a linha ia assim: Castilho; Pé de Valsa e Haroldo; Índio, Mirim e Bigode; Cento e Nove, Simões, Rubinho, Orlando Pingo de Ouro e SantoCristo. E o cardeal lá em cima, com inveja…