O medo das crianças

Tentar adormecer enquanto se imagina que está um monstro de sete cabeças debaixo da cama não é para meninos.

As crianças têm medo a sério, um medo respeitável, puro. Nós, adultos, somos uns moles. Temos medo de coisas que fazem parte da vida e que na verdade não fazem mal a uma mosca. Temos medo do futuro, dos impostos, dos chefes, da velhice, dos répteis (sendo que os répteis fazem mal às moscas).

As crianças têm medo de coisas muito mais assustadoras. Elas têm medo de fantasmas, de monstros e de coisas extraordinárias que nascem nas suas cabeças e crescem com a imaginação. E não há seres com mais imaginação do que as crianças. Cada criança tem a sua lista de coisas que lhe fazem medo e todas elas davam um filme de fantasia.

Os únicos medos reais das crianças são a morte dos pais (que passa com a idade) e o escuro (que passa na adolescência quando percebem o potencial dos cantos escuros). Já os nossos medos são todos reais. São tangíveis. Também são previsíveis e a maioria deles são inevitabilidades.

As crianças conseguem estar dentro de filmes de ação, de thrillers escuros e muitas vezes em filmes de terror. Viver assim deve ser terrível. Tentar adormecer enquanto se imagina que está um monstro de sete cabeças debaixo da cama ou descer a uma cave apesar de existirem sérias dúvidas de que lá em baixo está à nossa espera uma boneca assassina, não é para meninos.

Ser criança exige uma enorme dose de coragem. Um nível de coragem só comparável com a dos nossos militares das forças especiais. Os adultos têm medo de impostos, mas não devem ser muitos aqueles que imaginam os senhores da Autoridade Tributária debaixo das suas camas à espera que se adormeça para assaltarem as suas contas bancárias.

Na pior das hipóteses os adultos têm insónias com o fisco e não pavor em fechar os olhos e só acordarem quando estão a ser engolidos por fiscais das finanças. As crianças têm quase a certeza de que podem ser engolidas por um jacaré gigante que vive debaixo do colchão mal ponham um pé no chão.

Diz-se que o medo das crianças de hoje vem dos vídeos que elas veem na internet e dos jogos de consola. Mas não: as crianças sempre tiveram medo de coisas assustadoras. Desde que se contam histórias às crianças que elas têm medo de coisas. Prova disto é que os livros para crianças sempre foram sobre histórias dramáticas, trágicas, com monstros e bruxas. E quanto mais assustadoras, melhor. Os maus são mesmo maus e os bons são sempre inocentes.

Só para um público muito corajoso e com um estômago capaz de lidar com as maiores atrocidades é que se escreveram histórias como a de João e Maria, A Menina dos Fósforos ou mesmo o Harry Potter. Onde já se viu cortar a barriga a um lobo para tirar de lá as ovelhas e pôr pedras para o lobo se afogar? Nada mais sádico e sangrento. Não fosse as crianças e a sua valentia e ninguém tinha ouvido falar trolls, bruxas ou vampiros. Só elas para conseguirem adormecer embaladas com histórias feitas com este tipo de criaturas.

As crianças são os seres mais corajosos que existem. E é por isso que choram tanto. Qualquer um de nós passava os dias a chorar se vivesse em tanta aflição. As crianças choram com medo, nós, adultos, quando choramos é por pena de nós próprios, pela ingratidão da vida ou com raiva do chefe.

O medo não nos faz chorar, não nos comove o suficiente. Pelo contrário, um adulto com medo é um ser perigoso, agressivo. Uma criança com medo, é dócil e corajosa. Ou seja, tem juízo. O mundo de hoje exige que sejamos valentes como as crianças: imaginarmos o pior e sermos corajosos. O problema é que não temos medo.