Nomes. O Touro e o Cavalo, os Ursos e Lábio Flácido

“Que importância tem um nome?”, perguntava Alice. No mundo dos sioux, dos apaches, dos cheyennes e por aí fora, cada nome tem o peso de uma vida. E da lembrança de um tempo em que os índios ainda tinham uma selvagem fantasia.

Talvez toda a gente se lembre de Touro Sentado. Afinal foi o chefe supremo que derrotou o Exército dos Estados Unidos na Batalha de Little Bighorn. Conseguiu juntar, sob o seu comando, lakotas, dakotas, cheyennes e arapahos, num total de 2500 guerreiros. Do outro lado estava o general George Armstrong Custer, uma daquelas figuras que ficou na História por vencer todas as guerras exceto a última, um tipo tão embirrento quanto pouco escrupuloso, à frente do orgulhoso Sétimo de Cavalaria composto por 700 homens. 286 deles foram mortos nessa tarde e noite de 25 para 26 de Junho de 1876. Custer também não escapou, mas não houve quem desse por isso por entre a confusão das escaramuças. Seria encontrado mais tarde, já a poeira assentara, cadáver bisonho com um buraco de bala debaixo do coração. Muitas mãos se ergueram para reclamar o seu assassinato: a de Touro Branco, sobrinho de Touro Sentado, cujo primeiro nome fora Touro-em-Pé-com-Vaca, filho de Boa Pena e irmão Touro Solitário, por exemplo. Mas também a de Chuva-na-Cara, do bando dos Hunkpapa (Cabeça-de-Círculo), que passara uns tempos no chilindró por ter assassinado o médico de campanha, dr. John Honsinger, na Batalha de Honsinger Bluff, três anos antes. Mas também as de Lábio Flácido e de Urso Bravo, outras duas personagens intrépidas que combateram nesse Verão esmagador.

Sim, esta é uma história de nomes. E é atrás dos nomes que vou. Até de Gal, o chefe das três letrinhas apenas. Nomes de índios, que hoje não é dia para cowboys.

Vé’ho’énóhnéhe, por exemplo. Só tentar pronunciar provoca cãibras na língua. Mau-Homem-Branco é mais fácil. Este não era sioux, era cheyenne, mas também esteve em Little Bighorn. Chefe guerreiro também conhecido por Homem Barbado (não tinha nem um pêlo a separar o escalpe do umbigo, que é o que se pode ver um fotografias da época), ou por Lobo-de-Coração-Louco. Os nativos americanos, ou seja os que já lá estavam antes de Américo Vespucci ter resolvido dar o nome de América à América num gesto de suprema indulgência e de não menos espantosa modéstia, tinham mais alias (como gostam de escrever os bófias do lado de lá do Atlântico) do que as famílias da Cosanostra. Mas não quero despistar-me. Regresso ao Mau-Homem-Branco, sobre o qual lenda recita que combateu o Sétimo de Cavalaria em tronco nu (sem pêlos!), tendo abatido um oficial logo no início da refrega, usando o seu casaco pendurado no cavalo para assustar os inimigos. Não terá assustado por aí além, ou pelo menos não assustou durante muito tempo, já que seria um dos poucos chefes índios a morrer em Little Bighorn. Apesar disso mereceu, mais tarde, um memorial, a sua fronha esculpida numa rocha de pedra vermelha. «À bon entendeur…»

Éše’he Ôhnéšesêstse também era cheyenne. Ou meio. Trato-o por Duas Luas, e o estimado leitor perceberá certamente porquê. O seu pai, um índio da tribo dos arikaras do Dakota, foi feito prisioneiro pelos cheyennes e acabou por ganhar um prémio em forma de esposa. Se o filho tinha um nome poético, o progenitor, provavelmente por ser um estranho, teve de suportar a malícia dos que o receberam no seu seio: Carrega-a-Lontra. É giro, mas sinceramente prefiro assinar como assino. Duas Luas teve um vida notável no que a tiros e flechas diz respeito. Dez dias antes de se bater como um valente em Little Bighorn, bateu-se de forma intrépida não longe dali na Batalha de Rosebud Creek, um ataque estratégico levado a cabo pelo general George R. Crook – o homem que derrotou o grande líder Gerônimo, o herói do primeiro capítulo destes opúsculos que já vão na terceira dose, proeza que lhe valeu o nome apache de Lobo Chefe – tendo como aliados os apsáalookes, ou a Tribo dos Corvos do Montana, que andava de candeias às avessas com os cheyennes e com os sioux comandados por Cavalo Louco, por seu lado inseparável de um medicine-man que serviu de grande fonte de informação sobre a história do Velho Oeste e se chamava Urso Encorajador. A batalha acabou por assim dizer empatada, com uns e outros a reclamarem baixas alheias em números pouco fiáveis. Quem é certo que ficou caído na testilha foi o chefe lakota Chega-te-à-Vista e isso provocou um sarilho dos diabos porque a sua irmã, Cria-de-Búfalo-na-Estrada, decidiu voltar para trás em seu resgate. Sarilho sobretudo para Crook (este não precisa de tradução) que, descansando sobre os louros falsos de um triunfo não autenticamente estabelecido, viu o bando de Cavalo Louco surgir de repente a pedir contas sobre o guerreiro ferido, o que representou mais um acervo de aleijados. Numa espécie de vitória après la lettre, os cheyennes esqueceram o Rosebud Creek e inventaram a Batalha na Qual a Rapariga Salvou o Seu Irmão. Convenhamos: eram requintados.

A importância dos nomes

Aproveito este momento de acalmia para dizer uma ou duas coisas sobre a Batalha de Little Bighorn. Claro que andar a esgravatar no meio de tantos nomes fascinantes como a Madame Curie andou a escarafunchou na pechblenda para descobrir o rádio não deixa de ser entusiasmante. E mais linha menos linha volto à vaca fria – talvez tenha havido alguma sioux assim chamada, quem sabe? Vamos lá então a essa refrega que os americanos não nativos gostariam de esquecer para sempre. Facto é que se inclui na Grande Guerra Sioux de 1876, um evento constituído por uma série de batalhas e negociações que ocorreram em 1876 e 1877. De um lado a aliança já aqui descrita dos lakota, sioux, arapahos e cheyennes, do outro o governo dos Estados Unidos e seu exército, com uma ajudinha de Pé Negro e Tribo dos Corvos, excitados pela descoberta de jazidas de ouro na zona das Black Hills, uma grande região montanhosa do Dakota do Sul, logo o lugar onde, na parte da planície, os índios tinham as suas reservas de caça. Ah! Pensavam que era uma questão de idealismos, queres ver!

A força de gente do calibre de Touro Sentado e de Cavalo Louco acabou, inevitavelmente, por se esvair. O primeiro ainda levou um largo contingente de lakotas para o Canadá, o segundo andou fugido e morreria um dia após a sua captura, a 4 de Setembro de 1877, num acidente com armas muito mal amanhado, em Camp Robinson, no Arkansas. A História das tribos índias americanas que se revoltaram contra o destino de serem reduzidas a uns palmos de terra pela ambição desmedida do Homem-Branco merece ser estudada, sejam elas comanches, apaches (chiricahuas, ndendahe), sioux (lakotas, santees e wichyennas), pés-negros, seminoles, cherokees, ou arapahos, todos com fascinantes dialectos das línguas algonquianas – vem de elakómkwik, palavra malecita que se pode traduzir por um maravilhoso somos-todos-parentes. Mas não é de História o que se pretende tratar aqui, era o que faltava, trata-se de uma prosa frugal. Talvez uma homenagem, quanto muito.

Posso ter corrido o perigo de me acusarem de ter andado para aqui a inventar nomes. Limitei-me, aqui e ali, a aportuguesá-los. Está muito para lá da minha pobre imaginação criar o Texugo Saltitante, tal como apelidaram Touro Sentado na sua infância. Não se sabe quando nasceu – entre 1831 e 1837 – algures ao longo do rio Yellowstone, afluente do Missouri. Também levou a designação de Lento, porque era pensativo e concentrado. Chegou a Touro Sentado (como o avô) por mérito de carreira, digamos assim. O pai dele foi o Touro Saltitante, a mãe A-Sua-Porta-Santa. Juntos deram ao mundo oito raparigas e cinco rapazes, Foram obrigados a puxar pelas cabeças, mas a natureza e o dia a dia também foram dando uma grande ajuda: Mulher-do-Xaile-Castanho, Touro-Saltitante-do-Pé-Grande, Mata Muito, Mulher-da-Boa-Pena, Cão Maluco, Carreiro-do-Chapeuzinho e por aí fora. Touro Sentado aprendeu a arte da guerra com o pai e com o irmão deste, Quatro Cornos. Em lakota foi Thatháŋka Íyotake – quantas traduções foram precisas? Teve cinco mulheres: Cabelo-Leve, Mulher-das-Cinco-Saias, Neva-lhe-em-Cima, Vista-Pelo-Seu-Povo, Mulher Escarlate. E um filho de cada uma: Pé-de-Corvo, Muitos Cavalos, Espírito Sentado, No-Seu-Lugar e Foge Dele. Este último bateu certo: fugiu. Adoptou a civilização dos americanos-depois-da-América e tornou-se William Touro Sentado. Em 1885, degradado, com o sangue selvagem coagulado nas veias, o grande guerreiro vencedor de Little Bighorn e do Sétimo de Cavalaria juntava-se tristemente ao espectáculo bufo de Buffalo Bill Cody’s Buffalo Bill’s Wild West. Era uma fantasia de cowboy a subir ao palco com um índio que perdera a fantasia.

Em 1895, o reverendo britânico Charles Lutwidge Dodgson, que usava o pseudónimo de Lewis Carroll, pôs a sua Alice a perguntar: «Que importância tem um nome?» Acho que nem Touro Sentado, nem Cavalo Louco nem Urso Encorajador se preocuparam com isso.