O Governo caiu. O que ficou por cumprir em relação às forças de segurança? Ficaram por cumprir imensas coisas. Aliás, tendo o Governo caído tão cedo não se podia esperar muito mais do que aquilo que foi feito. Se eu esperava mais e se era possível ter feito mais num ano, indiscutivelmente. Não bastou, é verdade, que a primeira preocupação prioritária tenha sido tentar normalizar ou pelo menos dar uma resposta rápida para conseguir mitigar os danos que o anterior Governo criou ao atribuir o que atribuiu da maneira como atribuiu o valor que atribuiu, sem contemplar as forças de segurança, potenciou um problema…
Está a falar do suplemento de missão para a PJ?
Sim. Isso foi uma preocupação indiscutível do Governo para serenar também os ânimos e isso foi prioritário, mas, desde então, e como digo, o acordo foi assinado, aquele meio acordo, que ainda hoje, enfim, me deixa muito angustiado porque não foi um valor próximo do valor atribuído a outros, mas foi aquilo que nós considerámos razoável e que era aceitável naquele momento, mas desde então vimos muito pouco da intervenção do Governo relativamente ao estado atual e ao futuro das forças de segurança.
O que não foi feito nesse tempo?
Há um problema de fundo, indiscutível, que é uma carência tremenda de recursos e uma incapacidade indiscutível e indesmentível das polícias e do Estado cativar pessoas para as forças de segurança. Estamos a jogar com o futuro da segurança em Portugal. Estamos a jogar a partir do momento em que vemos um decaimento que acontece há mais de uma década, e não conseguimos introduzir reformas que façam a diferença para mudar o estado de coisas e para conseguirmos que o futuro seja assegurado. Por outro lado, ao mesmo tempo, há aqui uma certa aversão, uma repulsa, dos jovens ou de potenciais candidatos para ingressar nelas. E não é só a questão financeira que é importante. Passa verdadeiramente pela dignidade, ou falta dela, que nós não damos às forças de segurança. E, por isso, ninguém quer ser polícia.
O que se tem agravado.
Isto vai-se sentindo, sobretudo quando estamos a falar de uma profissão que é particularmente escrutinada, sancionada, vexada, muitas vezes, pelo trabalho difícil que tem feito. E é difícil porque é ela que lida numa primeira linha com os direitos das pessoas. Hoje, todos os dias, qualquer intervenção é amplamente escrutinada, não só pelos tribunais, pelas organizações, mas em particular pelas pessoas. E o que é certo é que vemos, enfim, poderes e pulsões que, de certa maneira, em vez de conterem e de terem alguma prudência em não julgar e não crucificar o trabalho dos polícias, são exímios em fazê-lo.
Mas o que podia ter feito o Governo concretamente?
A questão da revisão estatutária é indesmentível, bem como melhorar as tabelas salariais, mas passa desde logo por querer mostrar que quer mudar aquilo que é a implantação das polícias ou a deficiente capacidade das polícias de conseguirem responder como sempre responderam. O fecho de esquadras é inevitável, a reorganização de toda a arquitetura orgânica da polícia é uma coisa inevitável…
O fecho das esquadras porquê?
As esquadras consomem recursos que não temos. Ainda ontem estava a ver o presidente da Câmara de Lisboa a dizer que o comando de Lisboa tinha 8000 polícias há dez anos e hoje tem 6700, a acrescer que adquiriu novas competências, desde logo no controlo fronteiriço que, como estamos carecas de saber, foi aglutinar mais de 500, 600, 700 ou 800 polícias só para essas funções e, portanto, retirámos capacidade àquilo que o Comando Metropolitano tinha para poder responder a uma cidade, a uma área metropolitana, que tem mais gente, que terá naturalmente mais problemas por ter mais gente a viver, que tem necessariamente uma pressão imigratória também maior e, portanto, espera-se, do ponto de vista de contestação ao caos social, que ele seja maior. Se queremos continuar a manter e a brandir a bandeira da segurança como algo importante, uma marca de qualidade do país, em particular naquilo que são os grandes centros de atratividade turística, empresarial, de investimento, então temos que continuar a assegurar – e ter a certeza que a Polícia consegue, nos moldes em que está – a resposta que dava antes.
Em que medida é que o fecho das esquadras contribui para isso?
O fecho das esquadras mostra, desde logo, que há uma cativação de recursos completamente desnecessária alocada a edifícios. Quer queiramos quer não, absorve recursos que provavelmente não traduzem aquilo que é um atendimento eficiente. Vou dar um exemplo. Há momentos e alturas em que ter a esquadra aberta ou fechada é exatamente o mesmo. Porquê? O que as pessoas pretendem é exatamente que a Polícia, quando elas verdadeiras precisam, tenha capacidade de responder, de se deslocar com maior rapidez e capacidade, para não só salvaguardar os seus direitos, não só responder rapidamente à situação particularmente difícil que está a viver, e não está propriamente preocupada se às duas ou 3 da manhã pode ir fazer uma queixa, imagine-se, de burla, a uma qualquer esquadra. Se tiver uma situação que precise da Polícia, liga o 112. O que as pessoas querem é que a Polícia consiga deslocar-se com rapidez e, mais do que isso, quer ver a Polícia a policiar, ver a Polícia presente, visível.
O descontentamento na PSP é geral. Também há muitos oficiais que querem sair…
Quando fiz um trabalho, há dois anos, consegui perceber que, pelo menos, havia uma média, dos últimos cinco anos – de 2018 a 2023 -, de quase 50 polícias a sair por ano. E estou a falar de saídas, licenças sem vencimento ou exonerações, para não falar das comissões de serviço nos mais diversos órgãos o que mostra pouca vontade em ficar e uma grande vontade em, pelo menos, ter uma experiência fora da Polícia. Ainda que, no meio disto, depois não se pode misturar aquilo que é o desempenho de comissões de serviço em órgãos ou entidades que são estratégicas do ponto de vista securitário. Não me choca ver, por exemplo, um polícia que foi nomeado para a presidência da ANSR, não deixa de ser segurança rodoviária, é um pilar fundamental da segurança, tendo em conta que a segurança é ampla, é um chapéu de chuva muito grande. Agora choca-me quando vejo oficiais de Polícia que não hesitam ou não se coíbem em procurar outras saídas.
Nomeadamente a PJ…
Polícia Judiciária à cabeça. Fico não só desgostoso mas triste quando vejo tantos oficiais de Polícia a saírem para a PJ – e tenho ideia que para o último procedimento concursal que neste momento está em curso, eram 10 oficiais de Polícia a concorrer. E não eram só subcomissários, eram também comissários. Fico abismado quando vejo tantos a querer. E estamos a falar de quase um terço de oficiais que são formados todos os anos. Isto tem impactos no nível de enquadramento, na instituição, no nível de supervisão… Por isso é que vemos tantos oficiais de Polícia a comandar três ou quatro esquadras, porque não há oficiais.
Os dados provisórios do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) dizem que a criminalidade baixou 4,6% e a criminalidade violenta aumentou 2,6%.
Para fazer uma análise rigorosa – e é verdade que há muitas pessoas que o fazem sem o rigor das estatísticas – e que tenha por base subjacente conhecimento rigoroso das causas que levaram a essas diminuições ou aumentos, é preciso ter muito cuidado. Relativamente à criminalidade global, parte dessa descida pode dever-se a alguma quebra da proatividade policial, isso é indesmentível, e acredito que possa ter algum impacto nessa mesma descida, mas também quero acreditar, por outro lado, e dúvidas eu não tenho, que foi o esforço dos polícias que contribuiu para essa diminuição – com um custo maior, porque tendo menos polícias é natural que seja mais difícil evitarmos que o crime aconteça. Mas, mesmo assim, quero acreditar – e só olhando para as tipologias criminais que mais baixaram – que há aí muitos méritos por parte do trabalho que a Polícia fez e que os polícias fizeram para evitar que eventualmente tipologias de crime aumentassem mais do que aquilo que aumentaram ou tivessem diminuído tanto quanto diminuíram. E digo isto porquê? Sou oficial de Polícia desde 2008 e vou relembrar tempos passados, porque gosta-se muito de brincar com as estatísticas e depois vai-se buscar um bocadinho os valores aos referenciais que nos dão mais jeito para apresentar um ponto de vista. Vou lembrar: fala-se aí do aumento de 2,9% que não deixa, obviamente, de merecer a nossa particular atenção e preocupação porque 2,9% ao aumento da criminalidade violenta, é preciso somar o aumento que vem do passado, o que já corresponde, em acumulado, quase a 5%. É verdade que houve uma quebra muito grande no período do covid e temos aqui o que vou chamar uma ‘bolsa de conforto’, porque as estatísticas caíram a pique, de forma atípica. Naturalmente, não havendo pessoas na rua, o crime deixa de acontecer. Mas, recuemos um bocadinho aos anos 2009 e 2010, em que tínhamos quase 20 mil ocorrências de criminalidade violenta e grave. Neste RASI, aparentemente, ainda que os dados sejam provisórios, estamos a falar de qualquer coisa como 14 ou 15 mil. Ainda estamos a 5 mil ocorrências daquilo que é o segmento de criminalidade mais preocupante, aquele que mais destrói o nosso bem estar, de não ter receio em caminhar numa determinada rua, caminhar num determinado sítio, passear a uma determinada hora…
Baixou…
Sim, de 2010 para cá. O que estou a dizer é que já vivemos tempos securitariamente preocupantes que não vivemos hoje mas que aparentemente existe aqui, pelo menos, indícios que nos devem alertar e alarmar para aquilo que é a possibilidade de voltar a vivê-los.
É extraordinário que estejamos longe de 2010.
Porque foram mais de 10 anos de criminalidade violenta a cair. Isso tem que ver, indiscutivelmente e em primeira linha, com o mérito e o trabalho dos polícias. Em particular a PSP, tendo em conta que é responsável, só para que se tenha ideia, de mais de 70% da criminalidade violenta e grave em todo o país. Exatamente porque ela tem maior incidência nas áreas urbanas e não podemos fazer de conta que não houve aqui um trabalho imenso feito e que não pode ser desprezado, tem que ser louvado, tem que ser reconhecido. Inevitavelmente, chegámos a um ponto em que é cada vez mais difícil a PSP fazer aquilo que conseguiu fazer antes. Exatamente porque tem muito menos polícias, muito menos capacidade, e continuamos com um modelo que é um modelo falido, que como disse e reafirmo, consome desmesuradamente recursos, não dá agilidade, não confere eficiência, não dá capacidade funcional para que a Polícia continue a responder em toda a linha ao problema da segurança rodoviária, da segurança juvenil, da delinquência juvenil, da violência doméstica, das violações, do tráfico de droga que tantas vezes tem sido discutido. E pergunto: o que foi feito? Onde está o envolvimento por parte de todas as polícias no combate, aparentemente, ao fenómeno que tem ganho maior impacto nos últimos anos? Onde está? Qual é a intervenção do Sistema de Segurança Interna (SSI) neste capítulo? E digo isto porque a unidade de coordenação primária do Governo relativamente à coordenação dos polícias é o SSI. Pergunto: porque é que ao nível do tráfico de droga não é o SSI a encabeçar esta luta e a envolver verdadeiramente todas as polícias? Mais do que uma ideia de articulação tem que haver um efetivo de articulação. Mas há decisões que têm de ser tomadas para eliminar redundâncias no sistema, para evitar que andemos nós a atropelar-nos uns aos outros na resposta que damos ao crime e, por isso, tem que haver respostas verdadeiramente reformistas.
A PJ praticamente assume o combate ao tráfico de droga, ou não?
É curioso que a PJ possa dizer isso quando a maior parte das apreensões e detenções, em número global – mais uma vez, voltamos às estatísticas -, são feitas pela PSP. E se juntarmos a GNR à PSP então elas representarão certamente 70, 80% ou até mais. Mas em termos de número de detenções e apreensões, indiscutivelmente a PSP e a GNR e em particular a PSP, fazem muito mais que a Judiciária. A PJ tem-se concentrado muito mais em combater, face àquilo que é o empirismo das notícias que todos os dias vemos, o tráfico, sobretudo marítimo, que indiscutivelmente constitui-se como a maior plataforma de expedição de droga, maioritariamente no que toca à cocaína porque não esquecer que o tráfico de haxixe é feito de maneira diferente, é feito maioritariamente via marítima mas também via terrestre por força de ligação a Marrocos mas, sobretudo, preocupa-me também outros dois segmentos: o tráfico de heroína onde, indiscutivelmente, a PSP há anos que é responsável não só em apreensões mas pelo maior volume de quantidade de apreensões, porque o tráfico de heroína manifesta-se sobretudo por via terrestre, por aquilo que é a rota balcânica. E nesse capítulo não tenhamos a mínima dúvida que a PSP tem feito um trabalho fantástico, encabeçando o maior número de detidos, apreensões e volume global de apreensões em termos de quantidade. Mas há outro nível que me preocupa imenso e para o qual dediquei particular atenção sobretudo quando fui formador da Frontex na área do tráfico internacional de estupefacientes, que é as drogas sintéticas. O grande laboratório de produção de drogas sintéticas é, à data de hoje, a Europa. É verdade que a Polícia Judiciária fez até um excelente trabalho muito recentemente e, portanto, seja louvado, no desmantelamento de um laboratório de produção de drogas sintéticas ainda há cerca de dois ou três meses. Mas isto existe pela Europa fora. E as drogas sintéticas são aquilo que está um bocadinho na moda e está a ganhar uma expressão e uma dimensão que são particularmente preocupantes. O tráfico de droga impacta, na primeira linha, o próprio que consome. É, do ponto de vista visual e percetivo, algo que danifica subjetivamente a nossa perceção de segurança porque nós vemo-lo associado a quem é consumidor e quem efetivamente passa para uma situação de adição completa vai ter a necessidade de continuar a consumir. É sempre aquele efeito do que anda à volta do tráfico de droga ou do consumo de estupefacientes, sobretudo drogas duras ou drogas que são, particularmente, aditivas. É que as pessoas vão ter que cometer crimes para continuar a alimentar o seu vício. Isto é que é o problema, o dano que provoca esta perceção de insegurança.
Em relação à descida da criminalidade geral, a Polícia teve uma quota parte muito grande, mas não foi por ação, foi por inação…
Temos que ver com rigor a quebra que existiu na proatividade policial, sobretudo naqueles que são os crimes de proatividade. Mas os polícias não deixaram de trabalhar. Provavelmente, se a criminalidade violenta e grave não cresceu mais, deve-se exatamente ao facto de os polícias nunca virarem a cara aos problemas.
Quando temos uma descida tão grande de indivíduos apanhados a conduzir sob efeito de álcool, isso não foi porque a Polícia esteve a atuar…
Não tenho a mínima dúvida que terá havido uma queda momentânea.
No distrito de Lisboa chegou a baixar 65% a detenção de indivíduos por excesso de álcool, sem carta de condução…
Como digo, não tenho os dados aqui presentes, mas não tenho dúvida que houve aqui, em parte, uma contribuição de alguma greve de zelo por parte dos polícias relativamente à proatividade, de procurar o crime. Porque esses crimes só existem se a Polícia os procurar.
O crime mais comum é ou não é a condução sob o efeito do álcool?
Há outros crimes que, a par desse, contribuem com uma grande quota parte da criminalidade global. Vou dar o exemplo: o crime de dano, o crime de ofensas, os crimes de burla, que aumentaram imenso ao longo dos últimos anos. Para os quais a polícia tem feito, não só do ponto de vista de publicitação e de alerta, um trabalho tremendo junto de setores mais frágeis para que as pessoas não caiam no ardil, numa situação possível de burla. Também tenho ideia de que as burlas terão caído imenso este ano e quero acreditar que isso se deve imenso ao mérito do trabalho que os polícias fizeram.
Se não tivesse havido greve de zelo os números podiam ser diferentes?
Podiam ser ligeiramente diferentes. Talvez a criminalidade global não tivesse caído tanto. Mas tendo em conta o conhecimento que tenho da particular incidência e do impacto que eles têm na perceção de segurança, é mais preocupante, e devemos ter um olhar mais atento, a criminalidade violenta e grave.
Subiram as violações, o rapto, sequestro e tomada de reféns, a violência global e a delinquência juvenil.
Tenho sempre algumas reservas relativamente à forma como nós quantificamos a delinquência juvenil. Mas se efetivamente os dados lá estão, vamos olhar e ter atenção a eles, porque é verdadeiramente preocupante quando nós vemos tantos menores a começarem tão cedo a praticar crimes e a fazê-lo de forma grupal. Vamos falar de uma organização robusta, mas vamos chamar-lhe para-organização, que tem uma predisposição em cometer crimes de forma grupal, coletiva. Tem de haver aqui uma vontade de pessoas ainda de tenra idade começarem a cometer crimes e crimes violentos. Isso sim, é preocupante. E aparentemente existe aqui o recrudescimento de práticas e de comportamentos a esse nível. É aqui que, verdadeiramente, é importante o trabalho desde logo que a Polícia faz, do ponto de vista de proximidade, junto das famílias, das escolas e junto daquilo que possam ser grupos que têm um papel fundamental de interação e intervenção junto das crianças antissociais, por exemplo. E a Polícia tem feito um trabalho tremendo a esse nível. Relativamente às violações e às extorsões e a outros crimes que aparentemente sobem, eu daria mais particular ênfase ao roubo, porque efetivamente tem uma expressão numérica verdadeiramente preocupante, porque aí sim, estamos a falar na ordem de milhares, enquanto quando falamos de violação estamos a falar na ordem das centenas. Com isto não quero menorizar esse crime hediondo, que é um crime particularmente impactante, sobretudo junto das próprias vítimas, que ficam com cicatrizes para a vida. A violação espelha apenas uma parte dos crimes sexuais que são praticados, porque à volta dele orbita um sem-número de outros que não são contemplados, como recordava esta semana uma jornalista: o abuso sexual de crianças, o abuso sexual de pessoas incapazes, atos sexuais com adolescentes, pornografia infantil, prostituição de menores, lenocínio, tudo isso são crimes sexuais e, portanto, se calhar, provavelmente até poderíamos ter, ou não, de analisar dados que se calhar seriam mais preocupantes. Mas, como digo, mantém-se a ordem das centenas. Quando falamos do maior aumento da última década, se não estou equivocado, obviamente que isto terá que merecer a nossa atenção. Agora quando estamos a falar que o aumento é de 10% e portanto, quando falamos puramente do ponto de vista percentual, temos que analisar qual é verdadeiramente o aumento absoluto. Do ponto de vista absoluto, os roubos representam uma fatia muito grande. São a maior fatia da criminalidade violenta e grave.
Estamos a falar de que tipo de roubos?
Por esticão, com armas – o número de apreensões de armas tem aumentado particularmente nos últimos anos. Quer dizer que a Polícia tem-se mantido muito proativa em procurar apreender ou retirar das ruas todos aqueles que portam armas com o propósito das utilizar, não só no sentido de se poderem defender, como acontece muito, sobretudo quando estamos a falar de guerras entre gangues, mas também, sobretudo, de quem as pretende utilizar para agredir outros, para roubar outros, para praticar crimes violentos e, portanto, este trabalho tem sido feito. Agora, é verdade que o número de roubos aumentou em alguns setores muito particulares, em alguns segmentos particulares. Se não estou equivocado, o roubo de esticão aumentou, o roubo com armas brancas e de fogo não tenho presente se aumentou, mas a ter aumentado é particularmente preocupante, mas tenho ideia que houve alguns decréscimos de algumas tipologias de roubo. Mas vamos olhar para os roubos de forma global, porque independente do móbil, independente do objeto a que ele se dirija, seja um roubo a um estabelecimento, um roubo a um posto de abastecimento de combustível, o roubo a um banco ou a uma carrinha de valores, a única coisa que aqui podemos discutir é a sofisticação do ato, porque não é qualquer pessoa que comete um crime, como um roubo a um banco, enquanto é normal cometerem-se roubos na via pública. A maior sofisticação de cuidado ou planeamento é completamente diferenciado. E aqui sim, no primeiro plano, estamos a falar de grupos organizados, que planeiam muito bem o que vão fazer, enquanto o roubo na via pública, em que a janela de oportunidade se apresenta e, portanto, ele é agarrado pelo autor, pelo agente do crime ou pelos agentes do crime, porque veem ali uma oportunidade de poder conseguir roubar com sucesso. É completamente diferente quando discutimos um assalto a uma carrinha de valores, que, normalmente, obriga a que tenha que haver um planeamento prévio. As pessoas não vão assaltar uma carrinha de valores assim, sem mais nem menos.
O seu colega da PJ já disse que muitos dos assaltos que acontecem em Portugal são realizados por pessoas que não vivem cá. Apenas vêm a Portugal cometer esses crimes e depois seguem para outro destino. Calculo que os crimes cometidos na rua não sejam cometidos por esses grupos internacionais.
Não sei de onde é que o senhor diretor-nacional da PJ retira isso. Eu não consigo fazer essa avaliação porque naquilo que é a prática de crimes por estrangeiros, e nós temos de saber distinguir aquilo que são estrangeiros que cá estão, e cá residem e cá continuarão a residir, e praticam crimes, por comparação a grupos verdadeiramente organizados de pessoas estrangeiras. E podia dar aqui vários exemplos de grupos estrangeiros balcânicos, georgianos, romenos, croatas, de moldavos que vêm aqui, e a outros lados da Europa, assaltar casas particulares, praticar furtos qualificados, furtos no interior de residências, ou até praticaram outro tipo de crimes, por exemplo, ligados às ATMs. Isto já são grupos que têm uma capacitação e uma qualificação técnica muito acima da média, que um qualquer criminoso de vão de escada não consegue levar a cabo. Este tipo de grupo é verdadeiramente itinerante, tanto praticam crimes cá, como praticam crimes amanhã em Espanha, como no dia a seguir está em França. São os que representam a maior fatia de crimes praticados por estrangeiros? Tenho imensas dúvidas se existe alguma correlação, e para que fique claro, entre crimes e estrangeiros, eu acho que não podemos fazê-lo, e não podemos extrapolar, e temos de ter cuidado, porque tanto temos crimes praticados por estrangeiros como não estrangeiros.
Esteve envolvido, porque é o segundo comandante da Amadora, nos tumultos depois da morte de Odair. Como foi viver aqueles momentos?
Foi mais uma vivência muito singular na minha vida profissional. Isso foi, indiscutivelmente. Foram períodos bastante conturbados e difíceis de gerir. Mas foi uma contestação que se pode ter ideia que foi promovida por muitos ou que foi aderida por muitos, mas não foi. É verdade, pois tendo em conta os múltiplos incidentes que houve ao longo de toda a Área metropolitana de Lisboa, e não só, que basicamente espelhou bem o efeito mimético que teve a sua origem aparentemente na Amadora e que entretanto se alastrou para outras zonas da Área Metropolitana de Lisboa, mas não tenho a mínima dúvida que os precursores foram poucos. Foram alguns. Se isso me preocupa? Preocupa naturalmente. Esses protestos não foram uma forma democrática de manifestar ou de expressar o descontentamento. Vivi verdadeiramente e olhei para eles de uma forma bastante preocupada, já que sendo poucos conseguem não medir os seus comportamentos, as suas ações, perturbando não só o bem estar das pessoas e das comunidades, mas, no limite, perturbando os seus próprios vizinhos e no limite as próprias famílias, colocando-as a elas próprias em risco.
Na altura, foram divulgadas partes do relatório da detenção do agente que supostamente matou Odair. A Polícia chegou a dizer que os seus agentes correram perigo de vida por causa disso.
Tudo aquilo que não possa ajudar, e que neste caso possa perturbar, é claramente de evitar. A pessoa ou pessoas que foram alimentar a comunicação social, e com isto não quero sequer discutir a veracidade ou inveracidade, verosimilhança ou inverosimilhança da partilha precipitada e precoce de elementos que deixaram no ar a ideia de que poderia haver aqui, enfim, uma maquinação por parte dos polícias envolvidos, daquilo que aconteceu poderia ter uma conotação que, no limite, permite ou alimenta ou dá espaço para que, por exemplo, narrativas de radicalização, de classificação do comportamento dos polícias como racistas ou xenófobos. Isso é altamente perturbador. Tanto que condenei severamente quem não mediu aquilo que partilhou, quem o fez partilhando com uma ideia, porque teve um alcance, teve um propósito e não tenhamos a mínima dúvida que quem o fez fê-lo com o propósito não de ajudar, mas claramente de perturbar. E toda e qualquer ação de perturbação é uma ação que naturalmente terei que condenar porque dificultou, ou pelo menos não ajudou, a que a Polícia conseguisse conter os tumultos que tiveram lugar e não paravam de aumentar.
A fuga de informação só pode ter saído de duas instituições… Da PJ ou do Ministério Público?
Não pode passar de um de esses dois sítios. Ou dos tribunais ou da PJ. Seja um, seja o outro, e isto não representa as instituições, porque as pessoas representam as instituições, mas não são as instituições. Quando digo isto, faço-o com toda a reserva relativamente ao respeito que a maior parte desses profissionais merece da minha parte, ou da sua, mas quem fez isto sabe que é errado e quem o fez será uma pessoa que integra uma dessas duas instituições. Tribunais ou PJ, ou até no limite, se queremos alimentar bodes expiatórios, até poderia ser alguém dentro da PSP. No limite, se queremos ser conspirativos, coisa que eu não sou.
Não acha que a PGR devia abrir um inquérito para apurar a fuga de informação?
Para apurar a violação do segredo de Justiça? Não tenho nenhuma dúvida disso. O inquérito estava sob segredo de Justiça, há uma partilha indevida de elementos e de dados que, aparentemente, estariam a coberto desse mesmo segredo de Justiça. Do ponto de vista puramente formal, há uma violação indiscutível do segredo de Justiça. Devia ter sido aberto imediatamente um inquérito para averiguar quem efetivamente partilhou e quais foram os propósitos dessa mesma partilha, tendo em conta que não ajudariam, nem ajudaram à data de hoje, à descoberta da verdade. Porque se efetivamente houver responsabilidade a atribuir ou responsabilidade a não atribuir, não foi por ter vindo da comunicação social que ela foi feita e, portanto, pergunto eu, qual foi a intenção dessa mesma partilha que não perturbar e acicatar e acirrar ainda mais os ânimos?
Para terminarmos, como viu a divulgação dos números de homicídios? Primeiro eram mais e depois são menos. Como é que isso pode acontecer?
Só o senhor diretor-nacional da PJ poderá esclarecer, porque, como digo, se há alguma entidade que tem ou devia ter, de forma rigorosa, os dados totais do número de homicídios é a Polícia Judiciária, porque à partida será ela que tramita do ponto de vista investigatório todos os crimes de homicídio, e teria ainda mais facilidade em fazê-lo, tendo em conta que, para o bem de Portugal, eles não são muitos, certo? Se não estou equivocado, o número final de 2024 são 89, portanto, por comparação a países como o Brasil admitiria que fosse difícil fazer a contagem, porque o Brasil tem mais de 50 ou 60.000 homicídios por ano, uma realidade bem diferente da nossa.
Mas o que pode ter acontecido?
Não consigo perceber, a não ser que pudesse haver situações que começam não como homicídio e passam a ser homicídio ou situações que se classificaram como homicídio e também se vieram a verificar que não eram. Se não eram, têm que deixar de ser contadas. Não consigo arranjar uma explicação razoável porque acho que é um exercício tão simples que os dados deviam estar presentes a todo o tempo, a todo o momento, por parte de quem os controla, do ponto de vista investigatório. Faz-me espécie que o seu diretor-nacional da PJ, que é uma pessoa tão conhecedora, tão competente, que, enfim… talvez os dados possam ter sido mal dados, não sei. Às vezes cometemos erros, pode ter sido um erro.