O Matuto e os Jacarandás

O Matuto tem um autêntico fascínio pelos jacarandás. Eles têm um sistema de poda interno que engenhosamente forma botões apenas nas extremidades dos ramos, e a jardinagem humana só vai obliterar o fogo de artifício que rigorosamente irá rebentar.

O Matuto gosta dos jacarandás. Aliás, como qualquer Lisboeta. Ora, aqui na ‘Casa das Pontes’ as flores são sagradas. A gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, zela pelo jardim com a dedicação de um monge Tibetano. E a passarada agradece. Especialmente os beija-flor que todas as manhãs fazem os seus vôos picados sobre as flores predilectas, bebericando do bebedouro que Dona Sirlei disponibiliza. Sempre sacudindo as asinhas.

Essa veneração não parece habitar nos Paços do Conselho de Lisboa. Pelo contrário, os laivos assassinos marcham até à 5 de Outubro com o intuito de “abater” jacarandás. A Joana Amaral Dias escreve com mestria sobre o tema aqui, citando Eugénio de Andrade: “os jacarandás anunciam o verão e ladeiam os portões do paraíso”. O Matuto chora a (possível) morte dos jacarandás porque partilha do sentimento que tomou conta da alma da Clara Pinto Correia quando escreveu; “Deixem tudo o que tiverem nas mãos, venham à janela, corações ao alto, alegrai-vos e exultai. Acordai, povos que dormis, vede que já de violeta se tingiu a cidade em serenas explosões. Abri as portas das casas e das almas, estacai pelas ruas e respirai fundo”.1 Este texto é um hino aos jacarandás que todos os princípios de Verão florescem sem vacilação nas ruas de Lisboa.

O Matuto sabe de fonte segura que o auge deste fenómeno botânico acontece entre 11 e 15 de Junho. Como se os jacarandás tivessem um despertador interno que avisa do momento de acordar. Este despertar é recebido com júbilo e encanto pelos Lisboetas. O Matuto está por dentro dos segredos da História e está em condições de afirmar que os jacarandás de Lisboa são centenários. Viajaram nos porões dos navios. Emigrantes dos Brasil trouxeram algumas pernadas que enterraram em solo Luso. No Norte, com o mau feitio do clima, definharam. Todavia, em Lisboa prosperaram, em áreas como o Parque Eduardo VII, a zona da Torre de Belém, nas encostas do Largo do Rato a Santos, no miradouro (mirante, no Brasil, por favor) de São Pedro de Alcântara, na rua Dom Carlos I, na rua Ferreira Borges em Campo de Ourique, e ondulando por detrás da Av. da Liberdade ou escondidos nos pátios do Bairro Alto. E, todos os Verões, com a pontualidade dum relógio Suíço, estes jacarandás de Lisboa explodem em flor. É lindíssimo, louquíssimo, roxíssimo! (O Matuto volta aos superlativos!)

Ora bem! O Matuto tem um autêntico fascínio pelos jacarandás. Eles têm um sistema de poda interno que engenhosamente forma botões apenas nas extremidades dos ramos, e a jardinagem humana só vai obliterar o fogo de artifício que rigorosamente irá rebentar. Antes do momento marcado pelo “relógio de ponto”, podemos passar debaixo dos jacarandás, soprando ventos mornos para tentar atrapalhá-los. Sem resultado! O Matuto já fez a experiência… A árvore parece dormente, esquecida do mundo, sem ponta por ende se lhe pegue… Entorpecida, estagnada, modorrenta. E, de repente, numa bela manhã é um espalhafato de luz. Um estardalhaço de cor. Que secreta alvorada bichanou: ‘é tempo de acordar!’ Que dedo divino acariciou ao de leve os seus corpos dolentes! Todos os anos, ao mesmo tempo, toca o despertador dos jacarandás e Lisboa fica tingida de roxo. O Matuto exulta.

Entretanto, o Matuto consulta o texto de Clara Pinto Correia e aprende que os jacarandás de Lisboa são todos irmãos, saídos duma mesma pernada (pé, no Brasil por favor) que “um dia escapou ilesa da longa jornada de travessia do Atlântico”.  Essa peripécia consanguínea terá limitado seriamente a capacidade de reprodução dos jacarandás. Recompensam, acenando aos insectos, com as suas cores espampanantes. Aqui no Brasil, existem árvores manchadas de rosa, de azul, de púrpura, de branco, de amarelo e até de verde. O verde/amarelo do Brasil. O Matuto também aprende que os jacarandás “medem, atentos, o número de horas que passam com temperaturas acima duma determinada plataforma. Por exemplo, vinte graus”. No seu bojo possuem uma “clepsidra afinadíssima” – (o Matuto não está só na sua predilecção pelos superlativos). Silentes, aparentemente sossegados, todos os jacarandás de Lisboa aguardam. Começa a contagem decrescente (regressiva, no Brasil, por favor). 10, 9, 8… As chuvas de Maio chegam. 7, 6, 5… Os dias começam a crescer. 4, 3, 2… As temperaturas tropicais dão a cara. Pelas esquinas, praças, ruas, pátios, muros e jardins de Lisboa, os jacarandás suspendem a respiração. Então, ouve-se o tiro de partida. De repente, a uma só árvore, os jacarandás explodem em flor. Formidável. Esplêndido. Sublime.

O Matuto espia pela janela da ‘Casa das Pontes’ e topa com um jacarandá (talvez uma ipê). Por causa do clima simpático, a sua flor rosa dura há três meses. É uma árvore generosa que enche o Matuto de abundante alegria. E, sorrateiramente a saudade de Lisboa invade o Matuto. Saudade em forma de árvore. Uma árvore roxa.

  1. In “Histórias Naturais”, Clara Pinto Correia, Edições o Jornal, 1988, p. 85.