Em 1941, em plena ofensiva alemã em solo russo, o Hotel Metropol, em Moscovo, acolheu sucessivos repórteres do Ocidente que queriam cobrir a guerra. Desfrutavam do conforto, da vodca, do caviar e das jovens mulheres russas. Mas nunca viram a linha da frente, como conta em Hotel Vermelho este antigo correspondente da Reuters.
Se as paredes do Hotel Metropol falassem, teriam muitas e boas histórias para contar. Acolheram festas, jantares regados a champanhe e vodca, encontros escaldantes, discussões políticas de alto nível e reuniões de negócios. Nos seus salões e corredores, jornalistas, empresários e diplomatas cruzavam-se com prostitutas, espiões e quadros do Politburo. «Fora aí, num gabinete improvisado num dos quartos ‘de luxo’, que Lenine recebera delegações de operários», escreve Alan Philps em Hotel Vermelho (ed. Vogais). «Estaline andara por aqueles corredores enquanto planeava o extermínio dos seus inimigos», continua. E, num dos quartos com casa de banho privativa, pernoitou anos a fio Vassily Ulrich, um magistrado a quem chamavam ‘Executor n.º 1’. «Durante os anos do Grande Terror, de 1936 a 1938, assinou pelo menos 31 456 sentenças de morte».
Foi também no Metropol que ficaram instalados os correspondentes estrangeiros que em 1941 acorreram a Moscovo com o intuito de cobrir a guerra na Frente Oriental, onde a Wehrmacht e o Exército Vermelho lutavam pela sobrevivência. Tinham comida, aquecimento e conforto, luxos que não estavam ao alcance de qualquer um. Intérpretes-secretárias – todas mulheres jovens – tinham sido designadas para os acompanhar e vigiar. Mas havia algo de que eles sentiam uma falta tremenda: de notícias. Estaline mantinha a imprensa debaixo da sua mão de ferro, mesmo a estrangeira, e os jornalistas ocidentais aborreciam-se de morte por não poderem libertar-se do jugo e cumprir o dever de informar.
Construído em 1905 num exuberante estilo art déco, o Metropol rapidamente consolidou uma reputação de requinte e elegância. «Quando a Rússia recuperou da sublevação de 1905, o hotel revelou-se um êxito instantâneo para os que tinham dinheiro para gastar. Barões do açúcar exibiam a sua riqueza com torrentes de champanhe francês e oficiais de cavalaria convidavam bailarinas do Teatro Bolshoi, ali próximo, para jantar depois de atuarem», continua o jornalista.
Alan Philps ficou hospedado pela primeira vez neste ícone moscovita quando tinha quinze anos, numa fase em que já tinham passado décadas sobre o período de maior fausto. O declínio do hotel não lhe passou despercebido. Mais tarde, quando foi correspondente da Reuters e do Daily Telegraph passou por lá muitas vezes – até que um dia percebeu que a história do Metropol durante a guerra tinha de ser contada. O Nascer do SOL conversou com o autor por videoconferência.
Revela logo nas páginas iniciais que visitou Moscovo quando tinha apenas 15 anos, porque a sua mãe era uma russófila.
Sim.
Essa simpatia estendia-se ao regime político da União Soviética?
Era uma simpatia mais cultural. A minha mãe nasceu no Norte da China, em 1918, num lugar no meio do nada, porque o pai dela tinha sido contratado pelo ramo chinês da Shell. Na realidade ele não sabia nada sobre petróleo nem geologia, mas mandaram-no para este lugar remoto onde não podia fazer estragos. Acabou por ir para Xangai um pouco mais tarde, onde tinham uma vida de nababos. A minha avó era bastante preguiçosa e adorava a vida que tinha no estrangeiro. Quando regressou a Inglaterra, não percebia como é que as pessoas conseguiam viver sem criados. Isto para dizer que Xangai estava cheia de exilados russos, de pessoas fugidas dos bolcheviques, e a minha mãe passou a infância com uma ama russa, que lhe contava contos de fadas russos em francês, porque era essa a língua das amas no tempo dos czares.
Daí a russofilia, portanto. A sua primeira visita a Moscovo terá sido nos anos 60…
Sim, no final dos anos 60. A minha mãe queria muito visitar os sítios turísticos e também tinha amigos russos exilados em Inglaterra que lhe tinham pedido para levar um pouco de solo russo para Inglaterra para espalhar em cima dos caixões quando eles fossem a enterrar. O que ela cumpriu. Felizmente não fomos presos por espionagem.
Como inglês, vindo de um país rico ocidental, qual foi a sua primeira impressão de Moscovo? De estranheza? A cidade pareceu-lhe um pouco assustadora?
Sim, de estranheza. Eu tinha andado durante um ano a aprender russo, que na altura era uma língua mais popular do que é hoje. E ficámos no Hotel Metropol, que supostamente era o melhor. Ainda se aguentava de pé, mas estava muito decrépito, em muito mau estado. As maçanetas caíam das portas, não se conseguia trancar os quartos, a comida era péssima. Quer dizer, a salada de batata era boa, e se se tivesse dinheiro para caviar, tudo bem, mas de resto… De qualquer modo já estávamos à espera de algumas dessas coisas, não foi uma surpresa. Quando se visita Moscovo como turista, há um contraste brutal entre o Kremlin, que está impecavelmente preservado, com imensas cúpulas douradas, e o resto da cidade. Temos aquelas praças enormes e avenidas muito largas, especialmente em redor do Kremlin, como se as ruas tivessem sido desenhadas para receberem paradas militares, o que em certa medida até é verdade. Nessa época diziam-nos para levarmos calças de ganga, esferográficas e coisas dessas que não havia lá. O contraste entre aquilo a que chamo o cinzentismo da vida quotidiana – não se via ninguém com roupas coloridas, embora estivéssemos no verão – e o Kremlin, ricamente preservado, era assombroso. Já lá esteve?
Apenas em S. Petersburgo, há uns 20 anos. Tanto quanto sei, Moscovo ainda é mais monumental e imponente.
Sim, é muito maior. Sempre achei que Moscovo tinha algo de genuinamente russo. Em relação a Petersburgo, sempre pensei: ‘Porque é que alguém quis construir uma cidade aqui, ainda por cima com palácios no estilo barroco italiano? É muito estranho’. Antes de Pedro, o Grande ter conseguido conquistar aquela parte do Báltico, ninguém lá vivia. Era um pântano. Morreram centenas de milhares de servos a transformar aquilo numa cidade habitável.
Como conta no seu livro, os correspondentes dos jornais estrangeiros eram colocados no Metropol.
Onde eu fiquei com a minha mãe.
Isto porque o Metropol era o melhor hotel da cidade e os russos queriam mostrar a face mais agradável do país. Faz lembrar um pouco as famosas aldeias Potemkine, que não passavam de fachadas para iludir a czarina Catarina, a Grande.
Sim, pode-se dizer que o Metropol era uma espécie de aldeia Potemkine dentro da Moscovo em tempo de guerra. Não havia nada que se assemelhasse no resto da cidade. Todas as outras pessoas tinham muita dificuldade em aquecer os apartamentos. Tendo a União Soviética perdido a Ucrânia e as suas minas de carvão, havia uma grande falta de combustíveis e os aquecimentos não eram ligados. Mas o Metropol costumava estar aquecido – nem sempre estava, mas tinha sempre água quente. Grandes quantidades de árvores eram abatidas pelos funcionários nas florestas em redor. E toda essa lenha era queimada para fornecer água quente aos jornalistas e a uns poucos diplomatas que lá estavam instalados. Por isso o hotel era uma espécie de ilha de luxo numa cidade que estava bastante vazia – grande parte tinha sido evacuada quando parecia que os alemães estavam à beira de a conquistar. Sim, era uma aldeia Potemkine. Os jornalistas iam desfrutando da vodca, do caviar e das jovens mulheres, mas o que queriam mesmo era ver a linha da frente. E isso nunca viram.
Não tinham possibilidade de escapar desta gaiola dourada e ir à procura da vida real dos moscovitas nas ruas?
A primeira vez que ouvi falar dos jornalistas do Metropol foi em 1984, era eu estagiário da agência Reuters, e pensei: ‘Isto vai ser interessante, vou descobrir como é que os jornalistas passaram a perna a Estaline e contornaram a censura e contaram a verdade’. Mas não foi isso que aconteceu.
Por falta de empenho dos jornalistas?
Quem trabalha como correspondente estrangeiro está sempre a ver o que vai conseguir ‘sacar’. Alguns fartaram-se de esperar e foram-se embora. Os que ficaram pensaram: ‘Os russos vão ser os primeiros a chegar a Berlim, e aí vamos ser os primeiros jornalistas a chegar e a ver o bunker de Hitler e vamos poder entrevistar Goebbels’. Coisas desse género. Mas sabiam que para isso teriam de se portar bem. Porque se se queixassem demasiado do sistema ou tivessem contactos não autorizados, as coisas não iam resultar. Um ou dois fizeram um trabalho razoável, em particular um americano.
Edgar Snow…
Snow era muito intrépido e conseguiu chegar à fala com um leque de pessoas um bocadinho mais alargado, mas não eram nomes que ele pudesse identificar ou influentes. Ele tinha uma vantagem sobre os outros, que era ter escrito um livro muito favorável sobre Mao tsé-Tung. Chamava-se Estrela Vermelha sobre a China. Graças a isso tornou-se muito conhecido nos círculos progressistas, no mundo editorial e no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Conseguiu sair um pouco, mas ficou profundamente frustrado. Dizia: ‘Em nenhum outro período houve tantos jornalistas no mesmo sítio a escreverem as mesmas histórias e até a escreverem livros sobre isso sem descobrirem nada merecedor’. Na sua última visita, Snow escreveu um artigo sobre uma noite passada com uma família russa, o que estava completamente fora do que era aceite. Ninguém tinha permissão para isso, porque todas as casas russas estavam incrivelmente sobrelotadas.
Os apartamentos eram partilhados por várias famílias…
Snow conseguiu essa boa história, mas depois nunca mais teve autorização para voltar à Rússia. Quando eu ainda achava que ia escrever sobre jornalistas afoitos e corajosos, li alguns dos livros de memórias que eles escreveram. Grande parte era a queixarem-se das condições em que estavam. Achei aquilo um bocado aborrecido. Até que comecei a descobrir mais sobre as intérpretes – chamavam-lhes secretárias-tradutoras, porque obviamente, estando o país de guerra, eram todas mulheres. E há uma cuja história de vida é quase inacreditavelmente empolgante. Tinha passado algum tempo em Nova Iorque e isso levou-a a perder a fé em Estaline, embora ninguém soubesse, claro. Estava lá para manter as outras tradutoras debaixo de olho, e fazer relatórios. E decidiu que queria contar a verdade sobre o que se tinha passado nos anos 30, durante as purgas, que na altura ainda eram muito pouco conhecidas – e o que se sabia parecia tão extraordinário que as pessoas tinham dificuldade em acreditar. Ela explicou como o sistema funcionava. Mas cometeu o erro de confiar num jornalista australiano.
Está a falar de Nadya [Ulanovskaya]?
Exato.
Algumas intérpretes, como Nadya, envolveram-se sentimentalmente com os correspondentes estrangeiros e nalguns casos chegaram mesmo a casar-se. O casamento com um estrangeiro era uma espécie de salvo-conduto para uma mulher russa…?
De modo algum.
Era um estigma?
Era um estigma. No início da aliança, era mais ou menos aceite, penso. Mas quando se tornou claro que havia demasiadas mulheres a quererem casar-se com estrangeiros – porque não havia apenas jornalistas, havia diplomatas, e imensos oficiais americanos e britânicos, tanto generais como outras patentes – Estaline acabou por decidir que era um pecado capital uma mulher russa casar-se com um estrangeiro. E se se casasse não podia sair do país. Porque ele esteve sempre convencido de que a União Soviética ia ganhar a guerra. E dizia que elas queriam esquivar-se ao trabalho árduo de reconstruir o país. E até podia haver um pouco de verdade nisso. Tanya [Matthews], que foi a primeira dessas mulheres que eu conheci, conseguiu contornar essa regra, com a desculpa de que seria uma saída temporária, e nunca voltou – obviamente. O Ministério dos Negócios Estrangeiros usou este caso para fustigar os diplomatas britânicos e americanos: ‘Deixámos Tanya sair e ela nunca mais voltou, portanto não vamos deixar sair mais ninguém’. Houve um americano que passou 11 anos com a sua namorada russa, e só depois da morte de Estaline teve permissão para sair. Portanto casar com um estrangeiro não era de modo algum uma carta do tipo ‘você está livre da prisão’.
Quanto aos correspondentes estrangeiros, alguém se atrevia a tocar-lhes ou tinham imunidade total?
Havia regras a que toda a gente obedecia. Mesmo quando estive na Rússia durante a Guerra Fria, havia regras. Se alguém se portasse mal, eles diziam: ‘Desculpe, tem de ir embora’. Mas não punham ninguém na prisão com uma acusação de espionagem, como fizeram ao correspondente do Wall Street Journal, Evan Gershkovich. Com Putin não há regras. Mesmo um jornalista acreditado pode facilmente ser detido e levado para a prisão, para depois ser usado como moeda de troca por alguém que esteja preso um país ocidental e que Putin queira ver libertado, provavelmente alguém dos serviços de informações militares.
Falou de Tanya, uma das figuras principais do seu livro, e que você conheceu na Tunísia. Ela costumava contar-lhe muitas histórias sobre a sua vida na União Soviética durante a guerra?
Tunes não era um grande centro de notícias mundiais na altura e sim, ela contava muitas histórias. Falava sobre o casamento, em que não tinha roupa, e tudo o que usou foi-lhe emprestado…
Por amigas?
Eu ia dizer ‘por correspondentes femininas’, mas na verdade tenho de usar o singular, ‘correspondente’. Tanya ficou embasbacada que Marjorie, a correspondente do Daily Mirror, tinha dois casacos – isto era uma coisa inaudita -, e pôde emprestar-lhe um para o casamento. Não conseguiu foi encontrar ninguém que lhe emprestasse uns sapatos… Tenho a certeza de que se eu fosse mulher ela me teria contado sobre todas as operações terríveis e os abortos que teve de fazer. Além disso, eu era demasiado jovem para perguntar. Ela nunca se arrependeu de deixar a União Soviética e conseguiu construir uma nova vida. Não era daqueles russos que estão sempre a chorar com saudades da pátria. Era uma pessoa rija, olhava sempre para a frente e arranjou maneira de reconstruir a vida, apesar do homem com quem casou não investir muito no casamento. Na Tunísia, ela seguia a política local muito de perto e dava uns belos jantares na sua casa em Sidi Bou Said, em que juntava pessoas da política e da cultura. Quando já era mais velha, desaparecia às nove da noite e dizia às pessoas para trancarem a porta quando estivessem fartas. Era uma mulher notável.
Estes correspondentes estrangeiros do Ocidente nunca tiveram a oportunidade de conversar com colegas repórteres russos?
Nem por isso. Nunca foram acreditados no exército, apenas no Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo que não se encontraram com jornalistas soviéticos na frente de combate (para onde só iam depois de a batalha já ter avançado). Puderam falar com Ilya Ehrenburg, escritor e jornalista, que também não os ajudou. Disse-lhes a célebre frase: ‘Em tempo de guerra, todo o repórter objetivo deve ser fuzilado!’.
Quando era correspondente estrangeiro em Moscovo, também teve de se debater com essas limitações, essa dificuldade de entrar em contacto com a vida dos russos comuns?
Não como em tempo de guerra. Pude conhecer russos comuns e ir às suas casas em segredo, embora fosse perigoso usar o telefone – apenas os telefones públicos da estação de metro. Não podiam ir ao escritório – a equipa soviética iria denunciá-los. Da minha experiência, a punição por falar com jornalistas estrangeiros era ser convocado ao KGB para uma advertência, a menos que o amigo soviético estivesse envolvido em trabalho secreto a sério. Uma vez, fui convidado para uma peça de teatro por uma amiga russa e ela disse-me que tinha de usar as ligações de alguns ‘patrões’ para conseguir os bilhetes, que não se podiam simplesmente comprar na bilheteira. Infelizmente, os ‘patrões’ decidiram vir à peça e sentaram-se ao nosso lado, o que foi no mínimo embaraçoso.
As bebedeiras parecem ser um traço permanente da vida russa. Deu-se bem com isso quando esteve em Moscovo?
Não sei como é em Portugal, mas na Grã-Bretanha beber muito também fazia parte do quotidiano dos jornalistas. Quando comecei, a maior das pessoas que trabalhavam no turno da noite passava pelo menos a primeira hora no pub. Esse era um dos critérios que ditavam o sucesso de um jornalista: tinha de conseguir escrever uma história que fizesse sentido depois de ter bebido umas quantas canecas de cerveja. No meu caso, depois da minha primeira experiência como estagiário na Rússia, deixei praticamente de beber vodca. Acho que o meu organismo não consegue processar grandes quantidades de álcool. Mas na Rússia, se somos homens e queremos ter uma amizade próxima com outro homem, temos de a selar com uma bebida forte.
É verdade que na Rússia quanto mais aguentamos a bebida, mais nos respeitam?
No exército, sim. Na política, não. Boris Yeltsin deitou por terra essa tradição. Yeltsin era um político nato, mas chegou tarde e na altura já estava a beber demasiado. E uma das razões para Putin ser respeitado é não beber. Pode beber pontualmente, mas não é um grande bebedor. E por causa da bagunça em que o país se meteu no tempo de Yeltsin, e de que as pessoas mais velhas não se esqueceram, e suponho que as de meia-idade também não, e se calhar nem as novas. Nessa altura os salários não eram pagos, os professores não recebiam, o lixo não era recolhido, não se conseguia receber tratamento hospitalar sem subornar os médicos, etc. Essa é considerada uma época vergonhosa. Putin aparece como alguém sério, trabalhador e muito bom a controlar a sua língua. Nunca diz nada que não queira dizer. Isso faz parte do treino do KGB, que lhe tem sido muito útil. Vi conferências de imprensa intermináveis e filmes e filmes de entrevistas com ele, e ele pode literalmente falar durante horas sem dizer nada de relevante ou memorável. Ao contrário dos políticos ocidentais, que se espera que apareçam com regularidade na televisão, ele só fala quando quer. Controla a língua e controla tudo. Só aparece quando quer e as pessoas ouvem.
Como está o Metropol atualmente? Continua a ser um sítio da alta sociedade, um lugar para ver e ser visto?
Em finais dos anos 80 ou já no princípio dos 90 foi transformado num hotel de primeira categoria. Obviamente é um monumento, um belo edifício histórico, em especial no exterior. A entrada foi um pouco mexida e todos os quartos passaram a ter casa de banho privativa. Até 2017 manteve-se igual a si próprio. Os pisos dos quartos tinham corredores extraordinariamente largos, onde poderia literalmente passar um tanque de combate, o que em qualquer hotel moderno seria um desperdício de espaço. Mas contaram-me que tem sido gradualmente reconvertido – os quartos estão maiores e os corredores mais estreitos, ou seja, está a perder, aos poucos e poucos, o seu estilo antiquado. E o salão de jantar tem uma célebre fonte – podia-se pedir uma carpa ou algo do género que tiravam de lá e levavam para cozinhar. Aparentemente houve um projeto para a retirar, porque se podia pôr muito mais mesas se a fonte lá não estivesse. Mas muitas pessoas ficariam bastante chateadas, porque a fonte sempre fez parte do cenário e nos tempos soviéticos, mesmo que a comida não prestasse, pelo menos podia-se dançar à volta da fonte ao som da orquestra. Ainda lá está, mas parece-me que o hotel tende a modernizar-se. Hoje, apesar das sanções, ainda se consegue fazer uma reserva online para um quarto no Metropol a partir do Norte de Chipre.
Trabalhou em Moscovo antes e depois da queda da União Soviética, não foi?
Sim, estive lá entre 94 e 98, durante o período de Yeltsin, que foi completamente caótico. E depois continuei a ir com alguma regularidade, porque a minha mulher criou uma instituição de caridade para apoiar as instituições do Estado – chamam-lhes orfanatos, mas na realidade são para crianças abandonadas, porque todas elas têm pelo menos um dos pais vivo.
Se fosse russo, teria preferido viver durante o tempo de Gorbachov ou de Putin?
[risos] Se fosse russo, e tivesse a idade que tenho, pensaria: ‘Putin tornou a Rússia forte’. O nome de Gorbachov está na lama. Ninguém tem uma palavra simpática para dizer sobre ele. Ou, se têm uma palavra simpática, provavelmente já deixaram o país. Entre meio milhão e um milhão de russos que não gostam de Putin saíram do país. E ele está muito satisfeito com isso. Diz que quer que esta ‘escumalha’, como lhes chama, seja varrida. E portanto quem fica são os russos que se voluntariam – ou melhor, são bem pagos para se voluntariar -, os soldados temporários que estão a combater na linha da frente. Acho que o segredo é esse: a prosperidade nunca se ter estendido muito para lá das grandes cidades, Moscovo e S. Petersburgo. É aí que as pessoas têm uma boa vida. No resto do país não vivem muito bem, e se se é pobre e não se tem grandes perspetivas, a oportunidade de ganhar uns quantos milhares de dólares num ano é muito sedutora. É por isso que Putin não tem dificuldade em obter os recrutas de que precisa. Não se ouve falar de homens de Moscovo ou de S. Petersburgo mortos. São os da província, para quem ir para a guerra é uma boa opção.
Winston Churchill descreveu a Rússia como «um enigma envolto em mistério dentro de um enigma». E você, conseguiu decifrar o enigma da Rússia?
Creio que estas palavras de Churchill resumem os seus sentimentos sobre os russos enquanto europeus com um sistema político asiático. Para mim, o enigma decorre do facto de a Rússia ser um enorme império terrestre, sem fronteiras defensáveis (exceto as montanhas do Cáucaso) e com muito pouco acesso ao mar aberto. Assim, os governantes do Kremlin sempre sofreram de angústia sobre a capacidade de defender o Estado. Para Estados com menos desafios geopolíticos – nações insulares (como o Reino Unido) ou países sem inimigos vizinhos (como os EUA) ou antigos impérios com antigas colónias além-mar – esta angústia é um pouco enigmática. A situação agravou-se no início do século XX, quando o partido bolchevique se viu no poder, sem apoio dos camponeses, que eram a maioria, e a precisar de esmagar as aspirações de nações reprimidas, como a Ucrânia. A única forma de se manter no poder era através do terror, o que significava que os desenvolvimentos políticos que definiram a Europa nunca se consolidaram na Rússia.