O fim de mais uma loja com história no coração de Lisboa

A Ginjinha Sem Rival abriu portas em 1890 e, desde então, o negócio tem saltado de geração em geração. Agora, corre o risco de fechar pelo proprietário do edifício onde está instalado não querer renovar o contrato de arrendamento. O gerente fala em falta de sensibilidade e pede aos portugueses que ‘lutem’ pela loja.

O dia está soalheiro. A primavera chegou há pouco tempo, mas parece que as pessoas já arrumaram os casacos. Estamos no Rossio, um dos centros nevrálgicos da capital. Já passou da hora do almoço, a Praça D. Pedro IV está cheia e o que é que cai bem depois da refeição? Uma bela ginjinha. Aliás, esta é a zona perfeita para degustá-la, numa das três casas mais conhecidas de Lisboa: A Espinheira, no número 8 do Largo São Domingos; a Rubi, no número 27 da Rua Barros Queirós e a Sem Rival, no número 7 da Rua das Portas de Santo Antão. À porta de cada uma delas, uma enchente de pessoas deliciam-se com o licor lisboeta.

Os portugueses vão ao balcão e bebem-na de um só trago, como se fosse xarope. Nem precisam de fazer o pedido. Assim que entram, o copo é colocado na mesa. Já os estrangeiros, trazem-no para a rua e deleitam-se molhando os lábios aos poucos, como se quisessem fazer perdurar a experiência.

«É realmente maravilhosa!», afirma Jack, em frente à Ginjinha Sem Rival. «É uma coisa tradicional e este era sem dúvida um ponto obrigatório», continua o inglês que está de passagem pela cidade. «É forte, mas muito doce», aponta. Em pé, perto da porta, Maria e os seus três amigos já acabaram o seu copo. Vieram da Galiza. «O meu pai trabalhou aqui em Lisboa. Era caixoteiro e viemos morar para Portugal durante uns anos. Ele vinha aqui tomar a sua ginjinha. Eu vinha com ele desde pequeninita», afirma com o seu sotaque galego. Há dois anos que não visitava a Sem Rival e, infelizmente, esta pode ser a última vez que encontra a casa aberta já que o espaço centenário fundado no final do século XIX está em risco de fechar.

Matar um lugar histórico

Segundo Nuno Gonçalves – um dos dois gerentes da loja e bisneto do fundador João Lourenço Cima –, o proprietário do edifício comprado há sensivelmente um ano e meio quer fazer obras no hotel e não pretende renovar o contrato de arrendamento da loja. «Os outros meios de comunicação têm dito que o prédio foi vendido para se fazer um hotel e que temos uma ação de despejo. Não! O hotel já existe. Nós é que recebemos uma carta a opor-se à renovação do contrato. De facto, o proprietário pôs um processo na Câmara Municipal de Lisboa, para alterações no hotel, mas continuará com o mesmo nome e o mesmo dono», esclarece.

A família ficou bastante surpresa e transtornada com a notícia. «Não estávamos mesmo nada à espera. Pensávamos que os conflitos com senhorios eram águas passadas, mas pelos vistos não», lamenta.

O gerente confidencia que o proprietário do prédio é alemão e vive em Tenerife. Quase nunca vem a Lisboa. «No início até trocámos um email e ele foi muito simpático. Disse que estava encantado por me conhecer e que quando estivesse por aqui, teria todo o gosto em conversar comigo. Nunca aconteceu. Aliás, um dia soube que ele estava no hotel e tentei falar com ele. Recebeu-me, mas de uma forma muito agressiva. A conversa não demorou nem dois minutos. Disse-me que estava determinado em não renovar o contrato porque queria fazer as tais obras,  que a situação ‘é o que é’ e que não queria ter inquilinos», detalhou. «Não tem qualquer sensibilidade. Deve ser um senhor que só vê números à frente, mas acho que está a ir pelo caminho errado. Os hóspedes que ficam no seu hotel vêm cá precisamente para verem coisas únicas e identitárias da cidade de Lisboa. Acho que estes negócios só podem beneficiar os hotéis que se instalam nesses edifícios, e nunca prejudicar», garante, acrescentando que nunca houve problemas de clientela. Aliás, todos os anos, são cada vez mais as pessoas que procuram pelas casas de ginja.

De acordo com Nuno Gonçalves, o espaço é tão importante para a cidade como os outros dois «que estão praticamente na mesma situação». «Só que com um espaço temporal mais dilatado. Nós é agora, eles será num futuro muito próximo. Esta lei, como está, está a arrasar completamente o comércio tradicional», defende.

Rumo à Assembleia

Para si, não existem instrumentos legais para proteger o comércio local e histórico de investidores imobiliários. Por isso, o gerente da Sem Rival criou uma petição pública pela manutenção e reforço da proteção dos estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local que já conta com mais de 900 assinaturas. «Queremos chegar à Assembleia da República para que haja uma alteração legislativa que, por exemplo, possa permitir estes pequenos comércios de comprar a loja onde estão localizados às vezes há mais de 100 anos. Uma coisa é termos o direito de preferência sob um negócio milionário por sermos inquilinos, outra coisa é, quando transacionam o imóvel, termos a hipótese de comprar uma fração autónoma (só a loja)», explica. «Sou a quarta geração de fabricantes de licores. Este negócio funciona desde 1890», lembra.

Nuno Gonçalves diz ainda que é importante desfazer o mito de que «o comércio tradicional e antigo, como inquilinos, vive muito à custa dos senhorios por pagarem rendas baixas». «Não é o nosso caso. A nossa renda foi atualizada em 2014 com o novo contrato e nós pagamos um valor muitíssimo acima do mercado. Temos uma loja com 12 metros quadrados e pagamos cerca de 2600 euros por mês. Muitas pessoas acham que pagamos, por exemplo, 50», revela.

E garante: «Neste momento estamos a tentar resolver tudo a bem, com bom senso e com ajuda da Câmara Municipal de Lisboa que pode ter um papel fundamental na continuação do negócio, para que não tenhamos de ir para tribunal». «Gostaria que a autarquia – é sobre isso que estamos a conversar -, promovesse uma reunião com o proprietário para o chamar à razão. O hotel pode continuar a funcionar e nós mantermo-nos lá. Eles sabem que Lisboa não pode prescindir deste tipo de lojas que são uma raridade, porque não há em mais parte nenhuma no mundo», frisa.

Os funcionários da Ginjinha Espinheira estão solidários com os colegas. «É uma vergonha e não há justificação. É zero! Cada vez fecham mais casas com história», exalta Fernando Protelada que trabalha no espaço que já tem quase dois séculos, há 43 anos. Interrogado sobre o futuro da casa, admite que «não sabe de nada». «Isto são homens com muito dinheiro que só querem fazer dinheiro. Acha bem fecharem tudo o que é português?», interroga.

Nuno Gonçalves concorda: «O que me entristece mais é o estado a que está a chegar a cidade de Lisboa. O comércio está completamente arrasado. Cada vez é mais monocromático e monofuncional… As mesmas lojas, as mesmas multinacionais e ao lado lojas de souvenirs normalmente de imigrantes que sabemos que não vendem nada, mas que pagam milhares e milhares de euros de renda. Ninguém faz nada, toda a gente acha isto perfeitamente normal. Se é a cidade que querem, é a cidade que vão ter», remata.