O Lawfere, a justiça para fins de destruição do adversário

Os ilícitos devem ser julgados e condenados, mas mais parece uma moda, quando alguém se torna politicamente incómodo, acabar invariavelmente perseguido, acusado e condenado. Trata-se de uma coincidência recorrente que merece ser questionada.

 Para os amigos, os favores, para os inimigos, a lei
Maquiavel

E se o poder judicial europeu estiver cada vez mais formatado por um determinado viés ideológico? E se esse poder já não for tanto uma ferramenta do Estado de Direito, mas um meio, mais ou menos intencional e manipulado, para enfraquecer ou até destruir figuras da oposição política? E se esse poder não servir apenas para proteger a ordem pública ou garantir que os culpados sejam responsabilizados, mas também para influenciar eleições e escolhas políticas?

Não está em causa o caráter e a isenção dos juízes, mas sim a importância e a necessidade de questionar um ambiente político e um modo de fazer política que se afasta do ideal democrático ao interferir no poder judicial.

Por exemplo, durante o salazarismo em Portugal, o poder judicial era composto, na maioria, por pessoas sérias e competentes; no entanto, esse poder estava politizado. O problema não está nos juízes, mas na instrumentalização do poder judicial.

Não estão sequer em causa questões intemporais sobre a diferença entre fazer-se justiça e cumprir-se a lei, que nem sempre coincidem, nem a questão de quem julga os juízes, pois estes não são como o motor imóvel de Aristóteles, que tudo move sem por nada ser movido. Tampouco se trata, embora fosse relevante, de questionar por que motivo uma conceção de justiça transnacional a nível europeu se sobrepõe, de modo impositivo e ideologicamente comprometido, à justiça de cada país.

Não estamos perante a judicialização da política, mas, diante de sintomas muito fortes, de algo tão ou mais grave: a politização da justiça. Atualmente, mais do que assegurar uma justiça transparente e imparcial, abundam evidências que se pretende, tanto no debate político quanto nos meios de comunicação do sistema, controlar e pressionar o poder judicial para serem destruídas e silenciadas figuras de destaque das verdadeiras oposições ou que representem um incómodo para a continuidade de quem controla o sistema político.

Embora essa situação não seja generalizada, ela torna-se cada vez mais recorrente, representando um dano letal para o sistema democrático. Essa tendência não se restringe à Europa, mas está presente em diversos países democráticos ao redor do mundo.

Vamos a factos – apenas alguns, entre tantos. Nos Estados Unidos, Donald Trump enfrentou dezenas de processos judiciais, nos quais se misturam acusações legítimas com outras que parecem autênticos golpes anedóticos, cujo objetivo era principalmente afastá-lo da corrida presidencial. No Brasil, Jair Bolsonaro é agora acusado de ter organizado um golpe de Estado para se manter no poder, algo demasiado forçado. O coletivo de juízes responsáveis por julgá-lo é composto por figuras diretamente ligadas ao seu arquirrival e atual presidente, Lula da Silva. Um exemplo claro é Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula. O actual presidente nomeou todos esses juízes para o Supremo Tribunal Federal, onde agora julgarão o seu principal opositor. Na Roménia, assistimos a um autêntico golpe de Estado, que dizem em parte gerido pela União Europeia. O candidato Călin Georgescu, que obteve mais votos na primeira volta das eleições presidenciais e não tem simpatia pelas elites políticas europeístas, foi impedido de concorrer à segunda volta. As razões? Acusações ideológicas e que alguém, supostamente da Rússia, teria investido 200 mil euros em propaganda nas redes sociais para influenciar os romenos a votar nele. Outra acusação contra Georgescu refere-se à sua suposta simpatia pela Guarda de Ferro, um movimento fascista e antissemita anterior à Segunda Guerra Mundial. Estamos em 2025. Em Itália, muitas das medidas do governo de Giorgia Meloni são sistematicamente barradas nos tribunais por razões claramente ideológicas. Na Alemanha, a AfD, um partido de direita, mas legítimo e democrático – e atualmente o segundo maior do país –, enfrenta tentativas contínuas de banimento por parte dos seus adversários, como a CDU e os Verdes, recorrendo a meios jurídicos. Em França, a recente condenação de Marine Le Pen é, em grande medida, um processo político, visando afastá-la da vitória nas próximas eleições presidenciais. Atualmente, ela lidera todas as sondagens. A condenação baseia-se na alegação de que o seu partido teria desviado fundos do Parlamento Europeu, destinados à sua força política, para pagar funcionários que trabalhavam no partido em França. No entanto, essa prática é comum nos mais diversos partidos e figuras políticas, resultando quase sempre em absolvições ou não imputação ao líder do partido, como foi o caso do atual primeiro-ministro francês, François Bayrou. O caráter instrumentalizado da decisão política fica evidente na aplicação imediata da medida que impede Marine Le Pen de concorrer às eleições. Este é um caso evidente de como a política deixa de ser decidida pelo voto e pelo debate, dando lugar a processos judiciais. Esse tipo de manobra não só compromete a necessária transparência e imparcialidade do poder judicial, mas também o instrumentaliza para fins políticos. Ora, essas práticas, se bem que podem garantir aos principais interessados a imposição de uma espécie de democracia de partido e pensamento (só são toleradas as oposições que são ligeiras variantes entre si) tendem a aumentar a polarização e a desconfiança nas instituições.

Os ilícitos devem ser julgados e condenados, mas mais parece uma moda, quando alguém se torna politicamente incómodo, acabar invariavelmente perseguido, acusado e condenado. Trata-se de uma coincidência recorrente que merece ser questionada.

É escusado pensar que este fenómeno tem apenas uma coloração, embora uma das cores pese mais. Tudo o que se afaste do liberalismo progressista é submetido a um ataque massivo, regra geral iniciado pelos meios de comunicação do sistema.

Podemos também considerar os casos de Lula ou, por cá, de José Sócrates, que podem ser responsáveis por muito do que lhes é imputado. No entanto, o modo como decorreram muitas ações policiais e judiciais, assim como a abordagem mediática tendenciosa, recorrendo frequentemente a autênticos ataques ad hominem, são profundamente antidemocráticos e pouco dignos do Estado de Direito – um pilar fundamental da democracia. (Aliás, há dois pilares essenciais nas democracias: o Estado de Direito e a liberdade de expressão).

Nas democracias verdadeiras, e não apenas formais, é determinante a separação dos poderes e a independência do poder judicial relativamente ao poder político. Mas imagine-se um cenário em que o poder judicial se torna ideológico e passa a servir, prioritariamente, os interesses do poder político.

Como vimos, este tipo de prática não é um exclusivo da “direita” nem da “esquerda”; trata-se de uma perversão da democracia – e está cada vez mais presente.

Há um conceito que caracteriza esta realidade presente na destruição das verdadeiras democracias, e que surge a partir de dentro da própria democracia: o lawfare.

O significado da palavra associa o conceito de “lei” (law) e “guerra” (warfare). Nos casos que referimos, significa o uso também dos processos legais como uma forma de guerra política. Desse modo, o direito é utilizado principalmente para atacar e limitar ou mesmo destruir a credibilidade de políticos que representam uma ameaça a determinados interesses instalados.

O conceito é conhecido desde a década de setenta do século XX, e ganhou popularidade no seu uso aplicado ao contexto militar e internacional, principalmente a partir de 2001 quando surgiu num ensaio do general norte-americano Charles Dunlap Jr., intitulado “Sobre o uso da lei como uma ferramenta militar”. Nele, Dunlap analisa precisamente a instrumentalização do direito como uma arma complementar ao arsenal militar para vencer contendas. Atualmente, o uso de manobras jurídico-legais é de facto cada vez mais comum, substituindo, em muitos casos, o recurso à força armada, seja para obter vitórias na política externa e na segurança nacional, seja, internamente, para destruir adversários políticos.

No plano interno, o combate político para ser genuinamente democrático deve ser leal e baseado no debate de ideias e projetos, e não num vale-tudo para eliminar o adversário. No entanto, as acusações que o poder judicial é usado para fins políticos não são apenas retóricas. Muitas vozes referem que legislação é utilizada como instrumento para assegurar ou reprimir direitos e para legitimar estratégias políticas e sociais, nas quais determinados grupos e práticas são perseguidos ou absolvidos conforme estejam alinhados com o poder vigente ou sejam oposições. A lei passa, então, a ser utilizada como um prolongamento da guerra e da destruição do adversário por outros meios – uma arma política para derrotá-lo. Nessas circunstâncias, os procedimentos legais e os direitos dos indivíduos considerados “inimigos” passam a ter menos valor do que os de qualquer outro cidadão.

O lawfare manifesta-se em expressões como ativismo e assédio judicial, transformando a lei numa ferramenta para alcançar objetivos específicos político-sociais e descredibilizar ou aniquilar adversários políticos. Esse tipo de prática precisa manter a aparência de normalidade legal e depende, em grande medida, da cumplicidade de determinados meios de comunicação.

Orde Kittrie, na sua obra de 2016, “A Lei como Arma de Guerra”, distingue três dimensões do lawfare. Aqui, destacamos as duas mais impactantes na sociedade ocidental: A escolha estratégica da legislação – A seleção específica de leis para serem instrumentalizadas visando destruir adversários políticos. As externalidades – O uso da imprensa, da média e das redes sociais para criar um ambiente de guerra de informação planeada, funcionando como uma forma de guerra psicológica.

São várias as estratégias estudadas no lawfare. Algumas das mais comuns incluem: A escolha de juízes e tribunais mais suscetíveis a aceitar teses jurídicas lesivas ao adversário político. A utilização de leis que melhor sirvam para causar danos ao alvo, ao menos manchando a sua reputação. A criação de um clima de guerra ou de crise nacional, que justifique essas práticas. O uso estratégico da média e de técnicas de propaganda para conquistar uma parcela da sociedade e tornar tais práticas aceitáveis. Sem o papel dos meios de comunicação, ficaria comprometida a criação do ambiente de aceitação e legitimação da perseguição jurídica de um indivíduo, grupo ou partido político. O adversário é transformado num fora da lei, um criminoso, alguém que não merece ter uma vida como qualquer outro cidadão – nem sequer os mesmos direitos.

Nas últimas décadas, tem-se observado uma produção legislativa considerável por parte de instâncias supranacionais europeias, muitas vezes imposta às jurisdições nacionais com o efeito de enfraquecer adversários políticos. Conceitos como desinformação, fake news e discurso de ódio têm sido utilizados como armas para neutralizar opositores, misturando verdadeiros crimes com estratégias de destruição política.

O uso estratégico e seletivo de leis e processos para obter vantagens políticas, consolidar uma supremacia incontestável ou demonizar determinadas conceções políticas – mesmo democráticas – tem, em alguns casos, amparo legal. O adversário é rotulado como perigoso e radical, uma ameaça à ordem pública.

É cada vez mais comum a ideia de que apenas a democracia liberal é aceitável, enquanto outras formulações democráticas são consideradas inaceitáveis. Esse fenómeno leva a uma definição peculiar de democracia, na qual se impõe uma ideologia dominante e um modelo político único, ainda que com algumas variações.

São tempos sombrios para a democracia, e não apenas devido ao que se considera o “perigo para a democracia”. Torna-se notícia ‘slogans’ como “Queime um Tesla e salve a democracia”, sugerindo que qualquer cidadão comum que possua um carro dessa marca pode vê-lo destruído sob a justificativa de proteger o sistema democrático. Nos EUA, vemos novamente setores liberais e de esquerda defendendo deportações para a África, com frases como “Deportem Musk para a África”.

Quando ocorrem ataques atribuídos à extrema-direita, há verdadeiros sobressaltos nacionais e internacionais. No entanto, quando atos semelhantes são cometidos por indivíduos sem associação a essa ideologia, eles são frequentemente minimizados ou até descriminalizados.

Se aplicamos critérios distintos para os mesmos atos, dependendo da cor política ou das nossas simpatias ideológicas, e se consideramos injustiça aquilo que aplaudiríamos caso ocorresse com o adversário, então estamos a regredir a formas primitivas de tribalismo.