Edição da E-Primatur publica pela primeira entre nós o escritor e diplomata mexicano que Borges considerou “o melhor prosador da língua espanhola de qualquer época”. O livro reúne todos os contos de Reyes, sendo estes harmoniosamente alicerçados numa atmosfera onde reina o fantástico, a diversão, a sensualidade e o mistério.
Nascido em Monterrey, filho de um importante general, que viria a morrer tragicamente num golpe de Estado contra o Presidente Medero, e de uma aristocrata, Reyes fundou com outros escritores mexicanos o Ateneo de la Juventud, a Casa Espanha no seu país, o Instituto Francês da América Latina e criou o conceituado Colégio do México. Com a morte do pai, teve de deixar cedo o seu país, e viajou para França onde chegou a ser ministro e secretário da delegação do México, depois mudou-se para Espanha onde viveu exilado por 10 anos. Aí trabalhou enquanto jornalista, colaborando com várias revistas, sendo colega de Ramón Menéndez Pidal e Ortega y Gasset, e continuou a publicar livros. Mas foi ao exercer o cargo de embaixador na Argentina, depois de ter passado antes pelo Brasil, que conheceu e se tornou amigo próximo de outros escritores célebres como Silvina Ocampo, Bioy Casares, Xul Solar, Octavio Paz, Paul Groussac e Borges. Com Borges jantava todos os domingos na embaixada do México em Buenos Aires, e chegou a publicar-lhe o livro “Cuadernos de Plata”. Tornaram-se de tal maneira próximos que Héctor Palacio considera que na obra de Reyes se “percebe de imediato um vínculo com o estilo ficcional fantástico de Borges”. Palacio chama a atenção para o facto de em “Aleph”, de Borges, o protagonista ser Reyes, e em “O Jantar” o protagonista ser Borges. Sem dúvida nenhuma que, de todas estas narrativas fascinantes aqui reunidas, “O Jantar” é um dos mais conhecidos, assim como o conto que dá o nome ao livro. Os dois são considerados cruciais e marcantes para a consolidação da literatura fantástica no México. Porém todos os outros são igualmente merecedores da máxima atenção.
“O Jantar” foi publicado pela primeira vez em 1912 quando Reyes era ainda estudante. Alfonso é convidado para um jantar por duas mulheres desconhecidas. Quando chega ao jantar não reconhece Amália, a mulher que lhe abre a porta, mas que o trata carinhosamente pelo nome. Também não conhece Dona Magdalena, a mulher mais velha que o espera na sala. Há um sem fim de pormenores estranhos que vão prendendo a atenção do narrador, bem como a do leitor que também se intriga com tudo. A cada momento, Alfonso vai analisando palmo a palmo as divisões da casa e do jardim. É um jardim que parece um pouco assustador e artificial. Nesse jardim irá decorrer algo estranho. As mulheres começam a falar-lhe de flores que ferram e beijam, e de caules que trepam como serpentes até ao pescoço. Meio perdido, o protagonista vai alucinando ao som da voz daquelas mulheres. As vozes femininas vão-se confundindo com o seu delírio. Quando dá por si, Alfonso repara que as duas mulheres, entretanto, começaram a flutuar à sua volta e não têm corpo. Só cabeças. Abismado com tudo, tenta em vão entender o motivo do convite para jantar, até porque a certa altura elas o começam a ignorar falando de coisas que ele desconhece, como se não estivessem na sua presença. Falam de um capitão jovem e deslumbrante que ficou cego durante uma explosão. A determinada altura, acabam por levá-lo em braços para dentro de casa e mostram-lhe um retrato. É aí que ele se dá conta de que a figura do retrato é ele próprio, e que a assinatura e a letra da dedicatória a figurar no rodapé da imagem era a mesma do convite anónimo que tinha recebido para jantar. Estarrecido, e sob o olhar piedoso das duas, desata novamente a correr pelas ruas e ruelas por onde tinha passado até regressar a sua casa. “Sobre a minha cabeça havia folhas; na minha botoneira, uma florinha modesta que eu não cortei.”
A certa altura, a narrativa impõe um ritmo alucinante de descrições e sensações, e o leitor vai-se sentindo tão alvoraçado como o protagonista. Tudo o deixa em sobressalto. O tom, a imprevisibilidade, a fantasia, a cadência, o êxtase. À parte este texto, “A Mão do Comandante Aranda” é um outro excelente exemplo a comprovar a coesão da sua unidade temática dos contos. Escrito em 1949, ou seja, 37 anos depois de “O Jantar”, temos a história de um Comandante que perdeu a mão direita em combate. A certa altura a mão começa a ganhar vida, a disparatar a torto e a direito, a revelar-se diabólica. “Sucede que a mão, assim que se conduziu sozinha, tornou-se ingovernável, temperamental. Podemos dizer que foi nessa altura que ‘pôs as unhas de fora’. Ia e vinha a seu bel-prazer. Desaparecia quando lhe dava na gana, voltava quando lhe apetecia. Erguia castelos de equilíbrio inverosímil com as garrafas e os copos. Dizem até que se embebedava, e, em todo o caso, tresnoitava. Não obedecia a ninguém. (…) O Comandante observava-a e sofria em silêncio. A esposa tinha-lhe um ódio irreprimível e era – claro está – a sua vítima preferida. Enquanto passava a outros exercícios, a mão humilhava-a dando-lhe algumas lições de lavores e cozinha.”
Esta mão causava tantos transtornos que a família começou a desmoronar-se. O Comandante ficava cada vez mais deprimido, os filhos cada vez mais revoltados e a mulher muito assustadiça e com a mania da perseguição. Não havia empregado que quisesse trabalhar para eles, e todos os amigos e parentes desertaram. A polícia desconfiava que era Aranda o autor de todos os furtos da cidade. Ninguém acreditava que fosse a mão a fazer os roubos, os quais se propagavam como uma peste de dia para dia. Até que, estranhamente, sem que Aranda suspeitasse, a mão acalmou e mudou de forma radical o seu comportamento. “Uma noite, porém, a mão empurrou a porta da biblioteca e mergulhou na leitura. E deu com um conto de Maupassant sobre uma mão cortada que acaba por estrangular o inimigo. E deu com uma bonita fantasia de Nerval, na qual uma mão encantada percorre o mundo fazendo primores e malefícios. E deu com umas notas do filósofo Gaos sobre a fenomenologia da mão … Céus! Qual será o resultado desta pavorosa incursão pelo alfabeto? O resultado é triste e sereno. A orgulhosa mão independente, que se julgava uma pessoa, um ente autónomo, um inventor da sua própria conduta, convenceu-se de que não passava de um tema literário, um assunto fantasioso já muito abordado pela pluma dos escritores. Com tristeza e dificuldade – e diria que derramando lágrimas abundantes – dirigiu-se à vitrina da sala, instalou-se no seu estojo que antes pusera cuidadosamente entre as condecorações de campanha e as cruzes da Constância Militar e, desenganada e pesarosa, suicidou-se à sua maneira, deixou-se morrer.” Depois desta retirada a paz voltou a reinar na família do Comandante Aranda. Tudo voltou a ser como era. “– Atenção, firmes! Aos seus lugares! Clarim, toque a alvorada de vitória!”
A grande maioria dos personagens destes contos move-se no plano dos sonhos e da fantasia, e quer o mundo terreno como o fantasioso, mesmo com os seus traumas e dilemas, é ao fim e ao cabo repleto de brandura, mesmo que dotado de um fatalismo cómico e trocista. É como se pelo anedótico Reyes tentasse construir o mais divertido e leve de todos os mundos possíveis. Não é que não existam episódios de disputas ou fortes desavenças, como é o caso dos livreiros Dom Benjamín e o seu ajudante Vicente, mas Reyes narra-os de modo a mobilizar todas as más intenções, tornando a maldade em algo desnecessário, ridículo e altamente cómico.
A descrição destes personagens é um exemplo de que nunca é a maldade ou o sombrio a saírem como protagonistas de uma história sua. A maldade, o sombrio, nunca dominam uma cena. Antes acabam por se revestir de luz em todos os finais. É, por isso, bastante gracioso o modo como o autor tenta desatar os nós de tantos problemas da vida doméstica, da natureza humana, da sua ambiguidade, mas na verdade, a mesquinhez e a mediocridade estão sempre numa situação de dívida para com o prazer e a festa.