Marias-rapazes. “A partir de agora serás Jane Calamidade, a Heroína das Planícies!”

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As mulheres do Velho Oeste eram duras como as Montanhas Rochosas. Lutaram como os homens pela vida, umas escolhendo o caminho do crime, outras viajando ao lado da lei. Num mundo tão enraizadamente masculino, várias ficaram para a História pela sua coragem e temeridade. Era um tempo sem piedade e sem espaço para famílias. No fundo, procuravam apenas sobreviver.

O velho Oeste americano pode ter sido um universo maioritariamente masculino, mas houve muitas mulheres que não quiseram ficar atrás dos homens. E se algumas ficaram para a História como exemplos de sobrevivência numa terra sem lei, outras viram crescer em redor das suas figuras impiedosas as lendas que se alimentam do pouco que se sabia sobre elas. Por exemplo, assim para começar: não se conhece grande coisa sobre o nascimento e infância de Martha Jane Canary, e se calhar há muitos que nunca ouviram esse nome. Mas se eu escrever Calamity Jane, o mais provável é algumas campainhas soarem no poço da vossa memória. As páginas mais fiáveis sobre essa mulher poderosa são as que ela própria escreveu – sim, foi autora de muitos livros de cordel no tempo em que andava enrolada com James Butler Hickok, conhecido por Wild Bill Hickok, o amor da sua vida. Uma dessas publicações para entreter viajantes e dar brilho às aventuras das personagens do faroeste selvagem era sobre si própria. Seria demasiado pomposo chamar-lhe uma autobiografia. Mas, segundo palavras suas, nasceu no dia 1 de Maio de 1852, em Priceton, no Missouri. A mais velha de seis filhos trazidos ao mundo por Charlotte M. Canary, uma desgraçada que teve de aturar o grande piancho e viciado nas cartas Robert Wilson Canary, um tipo que gastava mais do que ganhava e se estava nas tintas para que a família passasse fome desde que ele tivesse sempre à mão uma qualquer zurrapa alcoólica para beber. E assim sendo, ninguém se pode admirar por Martha ter começado muito cedo a trabalhar para ela e para os irmãos. E fez de tudo: lavou pratos, cozinhou, foi empregada de mesa e enfermeira, dançarina e condutora de carros de bois. E tornou-se dura como um penedo embora, mais tarde, tenha havido muita gente a sublinhar a forma piedosa como tratava os desfavorecidos, certamente vendo neles os problemas que foi obrigada a suportar na infância e na adolescência. Com 18 anos, segundo o que escreveu, arranjou um biscate como batedora – auxiliar das caravanas, indo à frente para reportar os escolhos dos caminhos –, embora se vendesse como prostituta para compor o graveto que faltava. Era valente. Vestia-se à homem. Era volumosa de carnes e músculos. Pudera!

Engajada pelo Exército Norte Americano, destacada para Little Goose Creek, no Wyoming, salvou a vida de um tal capitão Egan depois de este ter sido ferido a tiro. Basicamente, num movimento fulgurante de destreza equestre foi buscá-lo ao meio de uma escaramuça. O homenzinho terá ficado tão aliviado e tão reconhecido que ali mesmo a rebatizou: «A partir de agora és a Jane Calamidade, heroína das planícies». Percebe-se o exagero. Afinal tinha estado à beira de ser assassinado e espezinhado pelos cascos dos cavalos. Jane adorou a alcunha. Nunca mais a largou.

Algures no primeiro terço da sua atribulada existência de 51 anos (ou por aí perto, se consultarmos outras fontes que não ela própria) cruzou-se com Madam Dora DuFran, uma inglesa de Liverpool que abriu um bordel em Deadwood, no Dakota do Sul, em plena febre do ouro. No Oeste os nomes faziam parte da vida. E muitos e muitas tiveram vários. Dora começara a prostituir-se ainda criança, com 13 anos, e adotara o apelido de Amy Helen Bolshaw. Mais tarde, já dona do que chamava a sua cathouse, dedicou-se a escolher raparigas que tornariam os dias dos cowboys um tudo-nada mais aligeirados, se é que me faço entender. Era finória. Gabava-se de ter as moças mais belas que um homem poderia comprar._Mas isso não era absolutamente verdade. A seleção era um bocado, se não mesmo muito reduzida. A ponto de ter aceitado Martha que não era propriamente de uma beleza atordoante. Pelo meio de uma inclinada depravação, a rapariga deu de caras com o já mencionado Wild_Bill, um fulano que tinha sido soldado, vendedor de armas e apostador, famoso por levar a melhor num sem número de tiroteios. Enfim, um daqueles vultos dessa época em que sacar rápido era uma forma de sobrevivência. Em 1873 casaram-se. Três anos depois, Hickok foi morto com um tiro na nuca quando se dedicava a fazer batota ao poker no Nuttal & Mann’s Saloon de Deadwood. Jane lançou-se numa perseguição insana do assassino, um canalha chamado John McCall, ou Crooked Nose, ou ainda Broken Nose Jack. Não o apanhou, mas a justiça sim. Acabou enforcado. E Calamity resolveu mudar de vida. Comprou um rancho, nas margens do rio Yellowstone, em Miles City, Montana, abriu uma pensão, voltou a casar-se, desta vez com um campónio do Texas, Clinton Burke. Tal como o pai decidiu descobrir o que havia de interessante no fundo das garrafas e tornou-se uma bêbada famosa, sobretudo quando se ligou àquela espécie de circo criada por William Frederick Cody, o Bufallo Bill. A única coisa que encontrou no fundo das garrafas foi uma cirrose fatal.

O grande nariz de Kate

Estava ali em cima a escrever sobre o nariz de McCall e lembrei-me logo de Mary Katherine Horony Cummings, ligeiramente mais velha do que Calamity Jane – nasceu em 1849 – à qual chamavam de Big Nose Kate. Terrível! Era natural de Nové Zámky, na Hungria, e o pai, médico, Mihály Horony, resolveu na infância dela trocar a Europa pela América. Já instalado em Davenport, no Iowa, enfiou as duas filhas num convento da Ordem de Santa Ursula. Dois anos depois de ter desembarcado em Nova Iorque, o doutor estava morto. E a sua mulher também. Mary pôs-se a milhas das irmãs Ursulinas e mergulhou de cabeça na prostituição, uma profissão não assim tão desprezada no Oeste, a ponto de muitas mulheres saírem diretamente dos bordéis para o casório. Aos 20 anos instalou-se em St. Louis, no Missouri, acolhida por Madam Blanche. As mulheres da vida andavam muito de terra em terra. Uma forma de não se apegarem muito aos sítios. Kate seguiu para Fort Griffin, no Texas. Tal como aconteceu com Jane, conheceu o homem da sua vida, John Henry Holliday, Doc Hollyday, amigo favorito do incorruptível Wyatt Earp, xerife temido de Dodge City, Deadwood e Tombstone, nos arredores da qual se deu o famoso tiroteio de O. K. Corral, no ano de 1881, e valeu um filme de estalo realizado por John Sturgis, com Burt Lencaster, Kirk Douglas e Jo Van Fleet, respetivamente nos papéis de Earp, Doc e Kate.

O casal era dado a discussões intempestivas. Sobretudo porque Hollyday preferia jogar e beber do que tomar conta do seu consultório de dentista. Gostos são gostos, mas Kate não gostava dos gostos do companheiro. Ainda assim aturou-o por uns anos. Até ele morrer de tuberculose em 1887. Depois não perdeu tempo e entrou em segundas núpcias com George Cummings, um ferreiro irlandês de_Aspen, Colorado, que lhe deu o apelido. Andava verdadeiramente de beberrão em beberrão. E este era um bandalho do pior e dedicava-lhe grandes cargas de porrada. Sobreviveu até à bonita idade de 91 anos. O cinema fez-lhe a honra de ser interpretada por Faye Dunnaway no filme Doc (1971), por Joanna Pacula em Tombstone (1993) e por Isabella Rossellini em Wyatt_Earp (1994), atrizes de narizes perfeitos. Teve mais sorte do que Calamity Jane no filme do mesmo nome de 1953 – calhou-lhe a Doris Day.

As histórias das mulheres do Velho Oeste são duplamente encantadoras. Phoebe Ann Mosey, ou Annie Oakley, já dominava os colts em 1872, com 12 anos. Tinha uma pontaria espaventosa. Ficou rica à conta dela. Com o marido, outro mestre do disparo, Francis E. Butler, fazia números circenses – apagava-lhe o cigarro a tiro – no Sells Brothers Circus e depois no Buffalo Bill’s Wild West que percorreu a Europa deixando o Kaiser Guilherme II tão espantado com a sua habilidade que lhe pediu para apagar o cigarro dele.

Mary Fields, Stagecoach Mary, ou Black Mary, nasceu escrava. Os índios chamavam-lhe Corvo Branco. Sintomático. Tornou-se respeitada ao garantir ao U.S. Postal Service que o correio passava intocado pelo meio dos terrenos rochosos de Montana graças ao peso da sua 38 Smith & Wesson que apavorava bandidos e lobos. Pearl Emma Taylor nasceu no Canadá mas foi para os Estados Unidos assaltar diligências. Admirava Annie Oakley e ansiava disparar como ela. Tornou-se Pearl Hart por casamento e Lady Bandit pelo que fazia, acabando por desembocar num fim desconhecido depois de passar uns anos na Prisão Territorial de Yuma. Laura Bullion fez parte do Wild Bunch de Butch Cassidy. Simone Jules, aliás Eleonore Alphonsine Dumant, aliás Madame Moustache, era uma apostadora profissional que abriu um casino em Nevada City, Califórnia, o chupador de dinheiro alheio Vingt-et-Un. Charlotte Parkhurst, One-Eyed Charley ou Six-Horse Charley, por seu lado resolveu viver mesmo como um homem, com nome de homem e vestindo-se como eles. Bebia como uma esponja, mascava tabaco e tornou-se uma temível segurança das diligências Wells & Fargo apesar de um coice de cavalo a ter deixado cega de um olho. Myra Maybelle Shirley Reed Starr, Belle Starr, optou por uma carreira no crime. Foi íntima de Jesse James, casou com um cherokee Sam Starr e juntos formaram um bando que aterrorizou o Arkansas entre 1882 e 1886. Lillian Frances Smith foi a grande rival de Annie Oakley em shows de mira afinada. Pear de Vere foi a patroa do grande bordel de Cripple Creek no Colorado – The Old Homestead. Uma noite podia ir até ao exagero de 250 dólares num tempo em que era habitual cobrar-se três dólares. Passeava-se com pose sobre tapetes magníficos e sob candelabros requintados. Era uma ruiva voluptuosa.