Literatura, mentiras e o belo estilo da vingança

Hoje a mentira come e bebe à nossa mesa, mas é uma mentira degradada, que se limita a distorcer ou inverter os elementos da narrativa geral, para enganar ou iludir. A invenção literária traduz-se nessas ficções ou personagens capazes de uma libertação da moral quotidiana.

A mentira é o nexo mais extravagante e ao mesmo tempo mais subtil do exercício de expansão e recriação que tributamos ao intelecto humano. Em grande medida a cultura significa essa fronteira a partir da qual o homem se reclama o seu próprio inventor. Desgarra-se da natureza, em algum momento cava um fosso face a ela, e à menor oportunidade conta e reconta-se introduzindo seja o que for de maravilhoso, às vezes exagerando alguns pormenores, outras vezes toda uma saga de façanhas que levam ao limite a nossa crença como se tivesse por obrigação salvar-nos da seriedade em si mesmo burocrática em que damos uns pelos outros caídos, desusados, vítimas dessa cobarde corroboração factual que nos obriga a atermo-nos aos elementos que mais nos mortificam. Todos sentimos um súbito desejo de nos libertarmos quando damos por um desses tipos que palra e divaga sem freio, e nos causa aquele arrepio da vida em bruto, deixando-nos as ideias todas desarranjadas e o corpo em carne viva. Entre o arsenal e as infinitas possibilidades e usos das mentiras, contam as convenientes e piedosas, as delicadas, as decorativas e as que servem apenas para um tipo se camuflar na paisagem, depois há aquelas que servem para dizer a verdade, mas não de chofre, e há as que dão mau nome aos mentirosos: as traiçoeiras, essas mentiras que arrancam o chão debaixo dos pés de alguém, o bluff, os enredos trapaceiros, as burlas, todo o género de falsidades. Como se sabe, a mentira vende.

Ora, nos nossos dias, fala-se muito de mentira para qualificar comportamentos imorais, as fabricações de gente pouco escrupulosa, que nunca consegue elevar-se além do nível da deturpação dos factos. No entender de Oscar Wilde, esse tipo de vigaristas não só dá mau nome como desmerece inteiramente ser colocado na mesma categoria do verdadeiro mentiroso, esse que também não se fica por simples lérias, mas extrai a condição lendária da pura invenção, mente de forma franca e orgulhosamente assumida, “com a sua irresponsabilidade soberba, o seu natural, saudável desdém por toda a casta de provas”. Então comecemos por aqui: “Afinal, o que é uma boa mentira? É a que não esconde a própria evidência. Se um homem for suficientemente desprovido de imaginação para produzir evidências a partir de mentiras, acaba por não distinguir a verdade da oratória. Não, os políticos não sabem mentir. Quando muito, são capazes de pequenas trapaças de tribunal.” Assim, a mentira é uma condição da verdadeira autenticidade, ao contrário daquilo que se pensa. Não se trata apenas de puxar um brilho à realidade, ou colori-la, é um desacato mais profundo, uma revolta mais empenhada. Se a maior parte das vezes a mentira parece ser o atalho mais curto para nos livrarmos de uma série de obrigações ingratas, a mentira que vence o estupor que a realidade nos provoca atinge o estado de coisa na sua raiz. Como sabemos, a ficção está repleta de mentirosos memoráveis. Um tipo mete-se pelas fábulas da infância e já se depara com um Pinóquio, ou o Pedro que andava sempre a dar com o lobo em todo o lado. Mas um tipo cresce e começa a dar-se conta de que, porventura, não beneficiou das condições mais favoráveis, a lotaria não lhe sorriu, e então um dia depara-se com um Tom Ripley, um Jay Gatsby, algum Quixote capaz de exercer alguma moderação sobre o seu espírito ou um desses astuciosos Ulisses modernos, o género de figuras memoráveis que entendem a verdade e o logro como elementos variáveis, conceitos flexíveis. Se um tipo se encanta de uma Bovary também tem de alimentar as suas ilusões caso queira enveredar pelos prazeres da luxúria sem dar cabo das fantasias que sustentam as efabulações de ordem romântica. Na ficção, as mentiras cumprem uma infinidade de operações, servindo para montar conflitos, estabelecer o caráter das personagens, a sua fiabilidade ou o desvaria da narrativa interior, e gerem o próprio quadro dessas tensões, os diferentes planos em que aquelas figuras se cruzam. Oscar Wilde vai ao ponto de defender que “a única gente real é a que nunca existiu, e se para um romancista a vida basta como ponto de partida das suas personagens, nem por isso deve deixar de pretender que elas são criações”. Mas, nos nossos dias, tantos escritores são elogiados por se limitarem a produzir cópias, e isto leva-nos na própria vida a ficarmos sem saída, como “uma raça degradada, que vendeu o património a que tinha direito por uma salgalhada de factos” (Wilde). Ora, no entender de Fernando Pessoa, “o mundo conduz-se por mentiras”, e “quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que criou”. E se Wilde, adianta que uma das principais causas da trivialidade que pode ser apontada à maior parte da literatura da nossa época é sem dúvida o declínio da Mentira enquanto arte, ciência e prazer social, Pessoa lembra a importância dos mitos nacionais, da própria história das nações, “uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação”. E a certa os dois começam um diálogo, e parecem estar de acordo ao notar como, “de instinto, a humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível”, diz Pessoa, ao que Wilde assente, e lembra como os historiadores antigos nos deram magníficas ficções em forma de factos, ao passo que os modernos ficcionistas se limitam a apresentar-nos factos sensaborões mascarados de ficção. É neste ponto que vale a pena medir-se olhando para as estantes, vendo a proporção de mentirosos face a esses pequenos traficantes que se limitam a distorcer ligeiramente as narrativas que a época engorda e com que nos enfarta, reforçando o regime da reportagem universal, e um realismo que apenas produz documentos cretinizantes, grassando ali toda a sorte de lugares-comuns, banalidades de base, dogmatismos serôdios, os quais fatigam as inteligências e as torturam na roda do hábito e da rotina. Deste modo o relatório tornou-se rapidamente o ideal e o método de tantos narradores, que pescam os seus enredos entre os jornais e as experiências pessoais, levando a ficção a atingir o ponto mais baixo em séculos. Por esta razão, sempre que se avalia o talento de um narrador, deveria ter-se em linha de conta se ele está sempre a sentir necessidade de se segurar ao corrimão da Vida, sendo este, no entender de Wilde, o dissolvente que corrói a Arte, “o inimigo que lhe ocupa e devasta a casa”. E não basta apimentar a geral tagarelice nem retocar tudo isso com algumas balelas, mas deve haver um esforço consciente e deliberado no sentido do engano, do erro, do descaminho e da falsidade. E isto porque esse exercício significa conseguir controlar os seus impulsos, não estar dominado pela geral sensibilidade do esfíncter moral, mas subverter os códigos, mergulhar nessa região onde a mentira não se enche de vertigens, nem receia ver-se associada à ideia de pecado, perversidade, premeditação. Wilde entende que o ato de contar belas coisas não verdadeiras, é o propósito exclusivo da Arte, e que esta é realmente uma ocupação suspeita, temível, uma espécie de partida pregada à natureza e a Deus, uma criação ilícita do homem. Cada um de nós, aqueles que se interessam por este desafio à ordem natural das coisas, deveria ir desenhando um diagrama para ir avaliando a sobreposição entre mentirosos fictícios, desde os espiões, falsificadores e burlões, gurus disto e daquilo, políticos, porta-vozes oficiais e qualquer outra pessoa cujo sustento dependa de alterações abundantes da verdade, e perceber como a vida está cheia de narradores não fiáveis. Assim, só resta à arte mergulhar a fundo e desdobrar estas possibilidades, aceitar os exemplos à sua volta como material bruto, mas sem se entregar à condição de um mero detetive, médico legista ou a de um comichoso articulador de teorias conspirativas. A arte apenas colhe uma sugestão, deixa-se engravidas, mas depois vai recriar a vida em novas formas, inventa, imagina, abusa e sonha, sem deixar de vigiar a fronteira entre si própria e a realidade, preservando essa barreira intransponível, a qual pode ser erguida através de um estilo formidável e alérgico à vulgaridade em que a vida constantemente recai. O perigo é deixar-se contaminar excessivamente, acatar as urgências que tanto lhe batam à porta, sejam elas de cariz social, político ou moral. A arte troça de tudo isso, e vinga-se como pode.