Val Kilmer. O verdadeiro Maverick nos céus de Hollywood

1959-2025. Acamado há anos, sucumbiu a uma pneumonia.

«O que há de errado com este tipo?». É apenas um dos muitos títulos que ao longo da carreira de Val Kilmer exprimiam a enorme perplexidade perante um ator que reconhecidamente podia ter o mundo a seus pés, se ao menos estivesse disposto a colaborar. Mas, com todas as suas seduções e apesar de tanto lhe ter suplicado para não arranjar problemas, ele sentia uma estranha comichão, e reconheceu cedo que o sucesso não faria nada pelos seus demónios. Bastava-lhe entrar numa sala, e a sua beleza era tudo menos vulgar, tinha uma qualidade etérea, e ao mesmo tempo ferina, era um ator que passava bem por estrela de rock, e o facto é que Hollywood tem um problema com os seus atores, que tudo fazem pelo sucesso, deixando sempre a sensação de que não passam de aspirantes, enquanto ele tinha aquele ar de um anjo acorrentado a um poste no inferno. Naturalmente, os primeiros papéis que vieram na sua direção faziam uso destes atributos. A estreia no grande ecrã deu-se em 1984, no filme de espionagem da Guerra Fria Top Secret!, em que encarnava um cantor americano em Berlim, que causava sensação com movimentos de ancas ao estilo de Elvis, cujo fantasma interpretaria mais tarde, e que se via engolido por uma conspiração da Alemanha de Leste para reunificar o país.

E se raras vezes surge um desses atores que deixa toda a indústria pelo beicinho, é natural que a sua resistência, tenha levado causado bastante ressentimento. Ele chegou a reconhecer que o problema é que era o tipo de ator que tem mais a dar a essas extravagantes personagens secundárias, mas estava preso no corpo do típico protagonista de Hollywood. Este desencontro levou a que o arco da sua carreira fosse insistentemente narrado com base nessa deceção. Mesmo na despedida, não faltaram títulos a lamentar o ator que podia ter sido maior. Além disso, tantas das suas escolhas são dessas que provocariam um ataque cardíaco a um agente. Francis Ford Coppola queria-o em The Outsiders, mas ele preferiu estrear-se na Broadway numa peça de que hoje ninguém se lembra. David Lynch queria-o em Blue Velvet, e ele recusou. Em meados dos anos 1990, aceitou o papel que era suposto dar-lhe o nível de projeção que parecia estar-lhe fadada. Substituiu Michael Keaton como o vigilante noturno de Gotham, em Batman Forever, um filme que não se humilhou nas bilheteiras, mas foi recebido com frieza pela crítica por ter abdicado da visão mais negra de Tim Burton a favor de um registo mais apatetado, em linha com a série televisiva dos anos 60. A Warner Bros ainda lhe ofereceu a sequela, mas Kilmer já não quis. E se ele seria o primeiro a reconhecer que não seguiu o roteiro do sucesso, com o tempo foi ficando claro que andava em busca de si mesmo nos seus papéis.

Apesar de todos os caminhos que não seguiu, Kilmer emergiu com um corpo de trabalho que era quase desafiadoramente seu. Daí a natureza da sua carreira, essa indagação sobre as possibilidades que tem um artista de testar as suas capacidades, e, hoje, voltando atrás, mesmo se os filmes não se aguentam, no meio de toda a pompa vemos um tipo que está realmente comprometido, e que luta com as convenções para exprimir o lado absurdo mas também essa candura de quem quis transmitir algo de profundo.

Este ator, nascido e criado em Hollywood, morreu na terça-feira em Los Angeles, aos 65 anos. A causa foi pneumonia, de acordo com a sua filha, Mercedes Kilmer. Em 2014, tinha-lhe sido diagnosticado um cancro na garganta, que acabou por lhe roubar a voz, e, entretanto, emergiram relatos de fontes próximas de Kilmer de que este passou os últimos anos acamado, tendo ficado severamente debilitado na sequência dos tratamentos que foi obrigado a fazer. Na última semana, o seu estado de saúde piorou, e Kilmer acabou por sucumbir a uma pneumonia. Fora visto pela última vez em público em 2019, na gala Thespians Go Hollywood. Contudo, a sua última aparição no grande ecrã foi uma verdadeira homenagem, tendo uma breve mas memorável participação no filme Top Gun: Maverick, de 2022, em que voltou a contracenar com Tom Cruise, tendo sido possível contornar a ausência da fala com recurso à Inteligência Artificial.

Todos os envolvidos pareciam estar conscientes de que a cena seria um canto do cisne para Kilmer. E por mais breve que seja, é comovente por ser fiel ao tipo de ator que ele era, alguém que claramente nunca teve receio de fazer escolhas inesperadas e parecia sempre ansioso por provocar as audiências, dececionar e, ao mesmo tempo, reconquistá-las.

Há o seu inesquecível desempenho como Jim Morrison em The Doors (1991), de Oliver Stone, em que quis cantar ele mesmo e ao vivo as canções, e ao encontrar resistência da parte do realizador, fez com ele uma aposta: Kilmer cantava, e se Stone não desse pela diferença, então faziam como ele queria. Mas não foi por isso que deixou a fasquia muito alta para os atores que vieram depois fazer este género de biopics. Kilmer pareceu realmente ter ressuscitado Morrison, e se o filme não impressiona assim tanto, não conseguimos tirar os olhos dele, e sentir que ele trouxe de volta aquele grau de abandono, de perigo e de energia sensual e psicadélica que fez com que o líder daquela banda parecesse um xamã num ritual tão drástico, cativante e catártico. Negar o absoluto génio daquela performance é passar ao lado de uma interpretação que excede inteiramente a lógica da representação.

É claro que, para isso, precisamos de estar na presença de um tipo muito invulgar de artista, e o outro lado dessa paixão deixou um rastro de conflitos que acabou por dominar a sua reputação. Embora não faltem exemplos de atores difíceis, e havendo até alguma tolerância para esses abusos temperamentais, sempre vigorou na indústria uma espécie de omertà, em que, a favor do sucesso do produto final, as birras e bulhas nos bastidores deviam ficar em segredo, sendo o privilégio que se reconhece a artistas com tanto a perder. Mas Kilmer parecia não fazer reféns, e nem reforçar as suas defesas a nível de relações públicas, deixando que o clima azedasse e que outros viessem lavar roupa suja em público. Parecia estar-se nas tintas para o efeito que isso pudesse ter na sua carreira, sendo ele o verdadeiro Maverick, alguém tão confiante nas suas capacidades que se podia dar ao luxo de gozar com o programa de treino e ensaiar as acrobacias mais temerárias, como se o próprio génio se alimentasse desse risco de deitar tudo a perder.