João César das Neves, professor de Economia da Universidade Católica, lamenta que o país esteja paralisado e que não discuta temas importantes para melhorar o crescimento económico. Fala ainda do PRR, considerando o programa como uma oportunidade perdida, assim como de dossiês que se vão arrastando há anos como o novo aeroporto. E faz um desafio: abandonar a fantasia pagã e adotar o realismo cristão.
Como vê a situação da economia portuguesa?
Não está mal, mas também não está boa. Primeiro, é uma economia rica, desenvolvida, mas é miserável. Segundo, é uma economia que está a crescer, tem alguma dinâmica, mas cresce pouchincho, sem criatividade, não estamos como devíamos. Se tivéssemos se calhar teríamos outros problemas porque as economias que estão a crescer muito têm mais tensões e mais dificuldades. Temos um país que está pacificado e a generalidade das pessoas está de acordo quanto ao essencial.
Estamos mentalizados?
O grande dinamismo e a grande transformação cria tensões e há pessoas que ficam de fora. Não faz sentido falarmos em mediocridade, mas há uma certa modorra: o investimento é baixo, o crédito é essencialmente para a habitação ou para o consumo. Não há grande criatividade tecnológica, nem financeira e toda a atenção está centrada nas corporações que dominam o sistema. Basta ouvir a campanha eleitoral que iremos agora assistir para percebermos que está tudo centrado nos pensionistas, nos médicos, nos professores que não são ladrões, nem são corruptos. Não vale a pena demonizar essas entidades, mas têm mais poder do que deviam e conseguem estrangular o dinamismo.
Porque dão mais votos…
Claramente e controlam praticamente tudo: da extrema-esquerda à extrema-direita. Temas como produtividade, competitividade, investimento, empresariado não têm lugar, não têm interesse, não ganham votos. E a cultura portuguesa também não é muito favorável ao patrão ou ao investidor, queremos salários, mas sem produtividade porque a produtividade é o capital e o capital é uma coisa horrível. Como se essas duas coisas não estivessem ligadas.
Os diagnósticos estão feitos, mas nada é feito. É falta de ambição?
Não é um problema de diagnósticos. Já estamos fartos disso. É uma coisa que tem acontecido ao longo da história de Portugal, em que o país está pacificado, está instalado, não levando ao dinamismo. Os outros países passam-nos ao lado, estão todos a crescer mais depressa e, embora estejamos neste cantinho mais ou menos pacífico, as ameaças estão a subir em todo o lado e é preciso pagar com crescimento económico mais acelerado, com mais competitividade, com mais produtividade. Culturalmente achamos que o negócio é insulto. Temos agora cartazes na campanha eleitoral a dizer: ‘A saúde não é negócio’. É melhor ser o Estado a prestar esse serviço? E vai tirar dinheiro a quem?
O Estado não é rico…
Exatamente. Certamente vai tirar dinheiro aos negócios, o que não faz sentido. Mais uma vez, não digo que a economia é um desastre, conseguiu um avanço extraordinário, mas é um bocadinho desanimante ver a tolice disto tudo porque os que estão a lutar pelos direitos dos trabalhadores estão a estragar a vida aos trabalhadores. Os trabalhadores dos outros países estão muito melhores do que os nossos e não têm os direitos que alegadamente temos. Os principais inimigos dos trabalhadores são aqueles que andam a dar cabo da Segurança Social porque não a tornam sustentável, porque andam a subir o salário mínimo e a estrangular as empresas que depois não conseguem pagar esses valores. São erros de palmatória, qualquer pessoa e não precisa ser formada em economia com o mínimo de pés e cabeça percebe que não é possível ter salários sem ter investimento.
Tem dito que o problema assenta nos salários baixos e num sistema bloqueado por leis laborais, impostos e interesses instalados…
Esse é um problema que não é de agora e não é só português. Há menos de dois anos estávamos com um Governo de maioria absoluta, éramos o único país da Europa nessa situação, de um momento para o outro, e ninguém percebeu bem como, caímos no sistema do tripartido. E de forma completamente inesperada saltámos do extremo da estabilidade política para o normal pântano de instabilidade que vive Espanha, França e Itália e, mesmo assim, o país continua pacificado. Isto quer dizer que o país anda satisfeito e, por isso, tenho alguma dificuldade em criticar. Quem sou eu para dizer que devíamos ter mais dinamismo quando os portugueses acham que não? Se calhar andar nesta modorra não é má ideia, num momento, em que o mundo anda completamente desorientado e a tecnologia, as empresas e economia não sabem o que é que vai ser amanhã.
Mas até lá, as tais reformas necessárias vão sendo adiadas…
Isso é indiscutível, mas não foi possível fazer porque o partido que estava no poder queria, mas o que estava na oposição não e bloqueava e quando mudava o partido no Governo, a história repetia-se. Esta tolice criou o tripartidarismo que não sei quanto tempo vai durar.
As sondagens mostram o mesmo cenário…
A única vez que tivemos esta democracia de tripartidarismo foi em meados dos anos 80 com o PRD que nasceu mais ou menos do nada, rapidamente tornou-se o terceiro partido, mas rapidamente desapareceu e acabou por dar duas maiorias a Cavaco Silva. Não sei se esse tripartidarismo vai acabar nas próximas eleições, não estou a fazer previsões eleitorais, o que estou a dizer é que é muito difícil manter três partidos que se bloqueiam.
A crise política poderá comprometer algumas metas, nomeadamente económicas?
Ainda temos muito o vício de achar que a economia se trata no Ministério da Economia e das Finanças, o que é tonto. É claro que a incerteza e a instabilidade política não é boa para a economia. Por outro lado, muitas das decisões dos empresários não são tomadas a contar com o Governo e a não ser que haja disparates gigantescos que não se prevê não é fácil ao Governo estragar a economia. Podia facilitar se fizesse as tais reformas, mas essas reformas já se falam há tanto tempo e nem sequer foram feitas com a troika que foi uma situação excecional e quando havia uma pressão brutal. Nessa altua, a grande reforma que foi feita foi a lei laboral e, mesmo com a saída da troika, todos os partidos, sobretudo de esquerda, que criticaram imenso não voltaram para trás. Porquê? Se tivessem voltado, o desemprego voltaria para os 18%. Tivemos recentemente uma maioria absoluta que foi completamente desperdiçada. Tinha meios para fazer essas reformas, mas o Governo não as quis fazer porque não estava interessado em enfrentar muitas forças hostis. Por outro lado, ninguém quer fazer o que está a ser feito nos Estados Unidos que, em vez de irem com um bisturi vão com uma motosserra e iremos ver a desgraça que vai ser. Neste momento, a administração americana vive num cenário da Netflix e isso não é razoável.
A ideia de contas certas é para continuar?
É um fenómeno extraordinário porque aparece com a extrema esquerda no poder, não formalmente no Governo, mas apoiando-o. Até aí, era Salazar que falava nisso por causa do descontrolo completo da Primeira República e, embora tivesse sido o Partido Socialista a criar o buraco que nos atirou para o colo da troika foi o PS a dizer que era preciso acertar as contas para não cairmos, outra vez, debaixo da troika. E o povo acreditou e aceitou. Neste momento, temos todos os partidos, esquerda e direita a invocar uma lógica que nunca tinha sido usada na nossa democracia desde o princípio do século XIX. Pelo contrário, o sucesso era dar a este, dá aquele, corta impostos, etc. É muito importante ter as contas certas e isso só foi possível porque havia a magno das Finanças, o Ronaldo das Finanças que dizia corto no défice, nos impostos e, ao mesmo tempo, aumento as despesas. Esta política das contas certas foi uma fraude, conseguiu baixar o défice, cortou algumas despesas públicas, mas aumentou brutalmente os impostos.
Nos impostos indiretos…
Aumentou nos impostos que as pessoas não notavam e que realmente davam dinheiro, cortando sobretudo no investimento. Na próxima vez que houver um tropeção e todos sabemos dessas possibilidades – tarifas e outras brincadeiras – podem gerar uma situação económica mais difícil e tudo isto vai cair como um cartel de cartas. Nessa altura, quase de certeza que as contas certas vão pela janela.
O investimento está agora a ser feito à custa do PRR…
O PRR foi um desperdício, em termos da economia não terá efeito nenhum e vamos ver para onde realmente irá. Uma coisa é para onde se diz que vai, outra é para onde vai realmente. Estamos perante uma situação que não é sustentável face às pressões orçamentais que irão aumentar devido às pressões militares, ambientais e demográficas. As contas certas continuam a ser, alegadamente, o dogma, o que é extraordinário porque na frase seguinte diz-se que querem aumentar as pensões. Então as pensões aumentaram, os salários também e vamos cortar os impostos? Não dá. Por enquanto, a economia tem estado a crescer o suficiente para conseguimos fazer umas manipulações que não têm sido muito graves, mas claramente há aqui uma fraude.
Uma das pressões diz respeito às tarifas dos EUA?
A economia mundial vai mudar. Os Estados Unidos estão claramente a desmantelar a sua influência internacional, estão-se a destruir de uma forma desmiolada como potência central e a deixar o campo aberto para outros. A pouco e pouco e, até os mais próximos – estou a falar do Canadá, do México, mas também da Europa – vão para outra freguesia. É uma catástrofe o que está a acontecer nos EUA, não é um acontecimento inesperado, mas é uma doença interna na sociedade norte-americana que está completamente rachada ao meio, onde ninguém se ouve e toda a gente grita, alterando o jogo e a sociedade americana vai perder a hegemonia. Felizmente, o mundo é muito grande. Temos de arranjar um outro modelo que pode ser melhor ou pior.
Ir para a Ásia?
Por exemplo, parece ser o sítio que, neste momento, é mais razoável. Os chineses estão a ganhar com isso todos os dias, estão a faturar à maluca, apesar de terem gravíssimos problemas internos. Mas a China não é a Ásia e há muito mais alternativas. A África tem a possibilidade de ter um papel importante no dia em que deixar de olhar para dentro e começar a olhar para fora e a América Latina também é muito importante. E para um país pequeno como Portugal, qualquer uma dessas alternativas, incluindo a Europa, chega e sobra. Também é certo que os EUA nunca tiveram uma grande importância para a economia portuguesa.
E em relação à Alemanha?
Também está doente, felizmente, muito menos grave do que qualquer uma das que falámos até agora, mas tem claramente uma situação de paralisia. Sempre se centrou muito na indústria de topo e nas exportações e as duas estão muito frágeis. A economia alemã tem de fazer uma reestruturação, mas é uma economia extraordinária. As tolices governamentais são parte da explicação desta queda, não são a totalidade. As eleições deram três partidos, mas sensatamente dois antes deste novo Parlamento começar a funcionar chegaram a acordo para encontrar uma solução estrutural, o que mostra uma sensatez que, em Portugal, não é possível.
Falta maturidade?
Falta maturidade na nossa economia e na nossa sociedade. Houve um bloqueio estrutural que foi eliminado e estou relativamente otimista em relação à Alemanha.
Há pouco falou do PRR. O Banco de Portugal aponta para um abrandamento assim que o PRR terminar…
Em primeiro lugar, somos um beneficiário líquido. Houve países que gastaram mais do que receberam, enquanto nós recebemos mais do que gastámos, mas é dinheiro que estimulou artificialmente a economia. Há um aumento da procura que ajudou muitas empresas que se aproveitaram disso para fazerem as suas coisas. Isso foi visto como um sucesso, não é. É droga, é só inalar para ver se consegue estar mais animadito. A segunda razão por a economia cair é porque esse dinheiro que entrou não foi implantado na economia, não foi para criar capacidade produtiva que permita o empurrão. Estamos durante uns tempos todos contentes com um bocadinho de droga, mas não vai permitir as intervenções cirúrgicas para o doente começar a crescer mais.
Houve falhas no programa?
O plano é tonto, mas é tonto desde o princípio. Ficámos orgulhosos de sermos os primeiros a apresentar o plano, mas porque é que os outros não o apresentaram? Provavelmente estavam a fazer um plano a sério, enquanto nós estávamos a brincar, de tal maneira, que contratámos um senhor, mesmo que seja um génio e que seja brilhantíssimo era só um senhor. O cérebro daquela personagem com os seus colaboradores próximos próximo ira planear o país até 2030? Também estou convencido que não foi necessariamente um disparate porque entregar um papelinho em Bruxelas não significa nada e pensámos que, de qualquer maneira, iríamos fazer com o dinheiro o que nos apetecesse. Estou convencido que foi sempre essa a ideia. António Costa aproveitou imediatamente o benefício político do dinheiro que vinha, em termos pessoais, mas sobretudo, pensou que não iria gastar as verdadeiras forças do Governo para fazer um papelucho porque quando viesse o dinheiro logo se veria. Não se fez uma coisa séria. Também é preciso dizer que o próprio PRR – e estou agora a falar de União Europeia – era tonto desde o princípio. Foi orientado para duas coisas que não são más: descarbonização e digitalização, mas são teóricas. São coisas inventadas por uns especialistas em Bruxelas. Foi um dos melhores golpes de génio porque, de repente, de um dia para o outro, a Europa que estava pessimamente a lidar com a pandemia passou para ser a estrela porque tinha feito uma coisa gigantesca que todos ficaram a admirar. Em termos políticos, foi ótimo, em termos económicos foi um disparate.
Há quem diga que há projetos podem ficar num impasse com a queda do Governo…
O Governo continua a funcionar e está convencido que vai ganhar. É verdade que quando entra um Governo novo tem sempre a tendência de deitar abaixo o que os outros anteriores fizeram e tentar genialmente fazer as coisas do princípio. Mas isso cria muita entropia, muita confusão, muita instabilidade. Isso já aconteceu quando caiu o Governo anterior e se calhar acontece outra vez se mudar, no entanto, já estamos na parte final, apesar de ainda termos muito dinheiro em jogo.
E como vê o impasse de dossiês, como o novo aeroporto e a TAP?
Não precisava de ser tão cómico, nem tão ridículo. É aqui que se sente a ausência do existe, por exemplo, na Alemanha, para quando chegarmos às grandes questões nacionais, os partidos responsáveis apresentarem-se com coerência, estudarem os problemas e apresentarem uma solução técnica. Não podemos dizer que o aeroporto e a companhia aérea nacional sejam problemas de uma dificuldade estratosférica. São coisas banais. Já fizemos dezenas de estudos e não tem sido possível chegar a uma solução há 50 anos. Não acho que seja um problema grave. É sobretudo um sintoma da falta de nível das entidades, em particular dos dois partidos: PSD e PS que são incapazes de assinar por baixo uma decisão que fica no colo do outro, mas isso tem a ver com o interior do partido. Provavelmente o líder até quer, mas em baixo há uma enorme quantidade de entidades que só ganham no meio da lama.
Defende que o Estado deve ficar com a maioria do capital?
As companhias aéreas não têm um serviço público significativo e o mercado aéreo internacional não é composto por grandes empresas públicas. Já o foi e as pessoas não tiveram pior serviço, pelo contrário. Não vejo nenhuma razão significativa, embora conheça bons economistas que dizem o contrário, para Portugal estar a fazer isto, a não ser por causa do poder extraordinário que os lobbies à volta da TAP têm. A quantidade de funcionários tem um peso muito grande, uma influência muito grande e manifesta-se nisto. Não querem estar com concorrência e preferem estar à sombra do Estado. Foi isso que levou à nacionalização e depois à privatização. O mais dramático disto é o ridículo porque o ridículo à volta do aeroporto e da TAP alimenta o extremismo. Quando o centro governador do país se cobre de ridículo, a extrema-esquerda e a extrema-direita sobem. É isso que os alimenta.
Daí já ter dito que é preciso abandonar a fantasia pagã e adotar o realismo cristão?
O que chamei de fantasia pagã é a ideia de que os nossos adversários são monstros, zombies, sem nenhuma lógica, completamente acéfalos e monstruosos. Já vem desde a Odisseia de Homero, por isso, chamei pagã. Estamos em guerra contra pessoas que são horríveis, que são os nossos adversários e nós somos as vítimas. Esta visão do mundo é uma visão destruidora da humanidade. Chamei de realismo cristão à luta entre o bem e o mal, mas dentro de mim. Eu sou bom e sou mau e os meus adversários têm razões válidas para fazer o que estão a fazer e tenho de perceber a sua verdade. Continuam a ser meus adversários, estão a dizer disparates, mas tento compreender e dialogar. Devemos ter perante esta realidade uma atitude de humildade, de respeito, de compreensão e que o mundo é muito maior do que posso controlar, não sou dono do mundo, nem tenho a solução mágica. Isso leva a que estejamos indignadíssimos por causa do aeroporto e de não conseguimos sequer tomar uma decisão porque há uma enorme quantidade de interesses, mas os chefes dos dois partidos diferentes devem-se juntar, tomar uma decisão estrutural e levá-la até ao fim. Quer dizer que Portugal é mal governado? Não, mas parece. O ridículo à volta disto desmantela a credibilidade de um sistema que não é mau.