Sociedade sem alma

Precisamos de voltar a solidificar a modernidade, trazendo estrutura, vínculos perenes e mais cuidado à nossa relação com os outros.  

Todas as gerações enfrentam desafios à medida do seu tempo. A maioria das pessoas vive a sua circunstância num ritmo de normalidade, entre a superação diária e os pequenos sucessos. Espera-se sempre que o progresso social e económico alivie os desafios de gerações vindouras.

Essa normalidade, tendencialmente rotineira, é linear na forma como contribui para a harmonia das nossas comunidades. A possibilidade de constituir família, de viver com afeto e amor, de realização pessoal por servir uma profissão onde somos úteis e reconhecidos, de viver com dignidade, com saúde e com bem-estar parece tão simples e, na verdade, sabemos que é profundamente exigente.

Em contraste com uma vida dita ‘normal’, pontualmente somos surpreendidos pelas notícias que sempre nos trazem o inusitado. Muitas vezes essas histórias confrontam-nos com o choque perante a rotina quotidiana e despertam-nos para emoções com as quais nem sempre estamos preparados para lidar. É a angústia que nos assola, o horror que nos aterroriza, o medo que nos assombra, a revolta que nos impele.

A modernidade líquida de que Zygmunt Bauman nos falava continua a surpreender pelo caminho de superação gradual dos limites definidos. Será que caminhamos progressivamente para uma indiferença emocional face ao terror? Somos contemporâneos de uma geração que cresce com menos empatia e humanismo, com menos respeito pelo outro, com menos verdade e com menos cuidado com o semelhante?

Apesar de todos os alertas, do debate público, da Educação e da Formação, a verdade é que os vínculos sociais quebrados das comunidades, da crise das instituições, da Igreja, a apologia do ‘eu’ e da realização pessoal face ao desenvolvimento comum estão a dar sinais de gerações que crescem com patologias emocionais.

Tomámos conhecimento recentemente que, em Portugal, um grupo do Telegram partilhava conteúdo íntimo e não autorizado de mulheres. Esse grupo tinha mais de 70 000 utilizadores. Esta semana, foi noticiada a acusação de 4 jovens influencers que abusaram sexualmente de uma menina de 16 anos, tendo gravado essa agressão e divulgado nas redes sociais. Alegadamente mais de 250 000 pessoas assistiram: nenhuma denunciou esse crime público! São casos que têm, pelos vistos, tanto de espetacular como de indiferente. A modernidade liquida faz com que cada um dos ‘espetadores dos horrores’ que assistiu a estes conteúdos tenha ficado indiferente aos mesmos. Para eles, não teve importância.

Talvez haja conteúdos digitais que normalizam a violência, o discurso agressivo, a ofensa gratuita, o ódio cobarde que ganha coragem apenas na internet.

A minha convicção é que esta indiferença social perante o fenómeno que é tantas vezes digital – e líquido – tem consequências reais.

A aclamada minissérie recente da Netflix Adolescence dá conta de como o nosso silêncio e passividade face a estes fenómenos sociais extremos pode ter consequências dramáticas. Mostra-nos que, para lá das lágrimas derramadas, um caso particular ameaça o traumatismo de gerações inteiras. Desumanizando-nos.

Precisamos de voltar a solidificar a modernidade, trazendo estrutura, vínculos perenes e mais cuidado à nossa relação com os outros. Aos desafios que temos hoje, talvez seja tempo de despertar, somando uma ação coletiva e empenhada face às alterações climáticas, um combate pelas alterações empáticas. 

Eurodeputada PSD