“Onde é que falhámos?”, interrogam os pais de Jamie Miller – numa cena comovente que tem abalado o mundo –, depois de perceberem que o seu filho de 13 anos matou uma colega de escola à facada. A crítica tem sido unânime: comovente, devastadora, desconcertante, brilhante, implacável, arrebatadora… Adolescência – a recente minissérie da Netflix com quatro episódios que estreou no dia 13 de março, inspirada em várias histórias reais e já foi vista por mais de 25 milhões de pessoas em todo o mundo – tem levantado questões fulcrais numa altura em que as redes sociais influenciam e constroem a personalidade dos jovens. Será que realmente conhecemos os nossos filhos? De que forma devemos protegê-los das novas tecnologias? Do que é que falam nos chats? Será que estar no quarto é sinal de estar seguro?
O drama realizado por Philip Barantini e escrito por Stephen Graham e Jack Thorne mergulha na história desse adolescente (interpretado pelo ator de 15 anos Owen Cooper), acusado de ter cometido um crime “inesperado” e violento, as causas que levaram ao homicídio e a forma como a família/ a escola e a psicóloga destacada para acompanhar Jamie, lidam com o caso.
A produção da plataforma de streaming destaca a cultura incel, uma junção das palavras celibatário e involuntário usada para descrever um homem sexualmente frustrado (ver pág. 4 e 5) e desvenda muitos dos significados dos emojis que os jovens utilizam nas suas conversas nas redes sociais (ver pág. 6 e 7).
O mundo dos jovens
“A série mostra de forma autêntica e muito crua os dilemas e vulnerabilidades dos jovens, o que permite que muitos pais e jovens se vejam representados. É importante porque dá voz a temas muitas vezes silenciados — como saúde mental, bullying, identidade e relações familiares. É um abrir a porta para o mundo dos jovens, o qual é muitas vezes inacessível aos pais que, vivendo na mesma casa nem sempre percebem o que se passa com eles. Aprendemos que os adolescentes precisam de escuta, compreensão e espaço para se expressar sem julgamento”, afirma ao i a psicóloga Catarina Lucas, acrescentando que os adolescentes de hoje cresceram num mundo mais digital e globalizado, o que os torna mais informados, mas também mais vulneráveis. “As redes sociais influenciam a autoestima e os relacionamentos, assim como expõem os jovens a uma multiplicidade de perigos. Apesar disso, há maior consciência sobre saúde mental e há uma visão mais aberta sobre identidade e diversidade, embora também sintam maior pressão para se definirem desde cedo. No essencial, continuam a enfrentar os desafios típicos da adolescência, mas num contexto muito diferente”, explica.
Para Maria João Faustino, investigadora, especialista em violência sexual, a produção da Netflix também mostra que a violência sexual baseada em imagens é “um problema crescente”, e há novas ferramentas que potenciam este universo de violência, que eram inexistentes há dez anos. “Por exemplo, a manipulação de imagens com recurso a inteligência artificial (normalmente chamadas deepfakes). Há várias apps que permitem a ‘nudificação’ das mulheres e raparigas, e estas apps são anunciadas em redes sociais, como o Facebook e o Instagram. A influência da manosfera (conjunto de sites, blogues, grupos e canais masculinistas, que propagam o ódio contra as mulheres e a supremacia masculina) e de figuras como Andrew Tate – influencer que que se autointitula como ‘misógino’ – também não têm paralelo com décadas precedentes. Contudo, a defesa da supremacia masculina não é nova”, lamenta. Como muitos jovens, em busca de pertença, acabam expostos a conteúdos que “reforçam modelos de masculinidade rígidos e violentos”, sem espírito crítico, “é essencial promover educação emocional e pensamento crítico desde cedo”, completa Catarina Lucas.
Os pais e a escola
Como é possível, afinal, tantos pais não conhecerem a real personalidade dos filhos? Isso acontece, diz a psicóloga, porque muitos adolescentes “começam a construir a sua identidade de forma mais reservada, com receio de julgamento ou por sentirem que não têm espaço seguro para se expressar”. “Além disso, há pais que, mesmo com boas intenções, ouvem pouco e falam muito, ou projetam expectativas nos filhos sem realmente os conhecerem”, lamenta. E, neste ponto, a série é “particularmente feliz, ao retratar o espanto dos pais pelo acontecido: pensavam que o filho estava ‘no quarto’, como se isso fosse uma garantia de segurança e proteção”, considera Maria João Faustino.
Além disso, continua a investigadora, há um fosso geracional entre pais e filhos na linguagem, nas redes usadas, nas figuras de referência e influência. “Se as diferenças geracionais sempre existiram, esse fosso agudiza-se com a cultura digital, onde a mudança é tão célere e alguns dos códigos, dispositivos e plataformas familiares aos nativos digitais parecem impenetráveis a muitos adultos”, sublinha.
A falta de literacia digital é um dos fatores que contribuem para a dificuldade que os pais têm em controlar a vida digital dos adolescentes. “Mas penso que é importante não colocar o ónus da prevenção exclusivamente nas famílias, tantas vezes sem recursos ou conhecimento para acompanhar estes processos. Também aqui a série Adolescência nos oferece pistas para reflexão. O papel das escolas é fundamental, de forma a garantir que todas as crianças e adolescentes são incluídas na prevenção”, defende.
Por isso, a educação e a regulação das plataformas digitais são as questões centrais. “A educação para a sexualidade deve abranger todos estes temas: o consentimento; o respeito pela vontade das outras pessoas; o direito a viver em liberdade; o direito à autonomia corporal; os impactos da violência sexual. O argumento de que a educação sexual é ideológica é falacioso: toda a educação é ideológica, a questão é que ideologia propagamos. A democracia, os direitos humanos, estão radicados num projeto ideológico que importa fazer cumprir”, garante a investigadora.
Regular as plataformas e dialogar nas escolas
Além disso, refere, é urgente regular as plataformas digitais, “que são largamente responsáveis pela propagação de conteúdos violentos e criminosos”. “As plataformas como o Telegram são cúmplices de crime: em Portugal, investigações jornalísticas expuseram a realidade de vários grupos de grande dimensão – um deles tinha cerca de 70 mil pessoas – onde são partilhadas imagens íntimas sem consentimento das mulheres e raparigas. Estas imagens são partilhadas por estranhos, parentes, colegas, companheiros, namorados e maridos”, denuncia.
Adolescência vai ser emitida pela Netflix nas escolas do Reino Unido. O anúncio foi feito pelo próprio primeiro-ministro britânico que, enquanto pai, também não lhe ficou indiferente. “Trata-se de uma iniciativa importante para encorajar o maior número possível de alunos a ver a série”, afirmou Keir Starmer, que viu a série com os filhos adolescentes. Segundo Catarina Lucas, seria muito positivo que algo semelhante acontecesse em Portugal. “A série oferece uma visão honesta e relevante dos desafios da adolescência, e poderia ajudar a sensibilizar alunos, pais e professores sobre temas importantes como saúde mental, identidade e relações. Exibi-la nas escolas poderia ser uma excelente ferramenta educativa para fomentar diálogo e compreensão”, afirma. “Todavia, o visionamento da série nas nossas escolas deverá ser acompanhado de uma sessão de discussão, debate e esclarecimento, sob pena de que os jovens interpretem livremente aquilo que veem sem garantia de que não interpretam de forma enviesada”, remata.