Kits de emergência: esperar o melhor, mas preparar para o pior

Num mundo em chamas, a comissão europeia seguiu o exemplo dos países nórdicos e começou uma campanha de preparação para um eventual cenário catastrófico. O objetivo é preparar e “evitar o pânico”. Ao longo da história, vários estados empreenderam iniciativas deste género

O mundo está perigoso. Desde 2020, quando a crise pandémica afetou todas as partes do globo, que o Homem se enfrenta com várias ameaças à sua segurança. Numa conjuntura ainda em ressaca da Covid-19, a Rússia de Vladimir Putin invade a Ucrânia, o Hamas, financiado pelo Irão, lança o mais devastador ataque contra o povo judeu desde o Holocausto, as tensões no estreito de Taiwan crescem e a Ordem Internacional Liberal, pautada pelo direito internacional, pela globalização e pelo multilateralismo parece ter chegado ao seu fim. A previsão do fim da história, popularizada pelo cientista político Francis Fukuyama no final da década de 1990, foi manifestamente exagerada e os acontecimentos recentes são prova disso. A história voltou e com ela ressurgem novas (e antigas) preocupações que levam à ação dos diversos players do sistema internacional.

 A reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos é talvez o acontecimento decisivo que dita o já mencionado regresso da história. É neste seu segundo mandato não consecutivo que as dinâmicas europeias, principalmente no que diz respeito ao setor da segurança e da defesa, se intensificam. A desconfiança quanto ao “guarda-chuva” americano, pilar sem o qual a aliança transatlântica se desmorona, levou os líderes europeus a encararem seriamente o rearmamento para, por fim, lograrem uma independência militar indispensável nesta nova conjuntura. No final de contas, a extremidade europeia de Leste serve de novo palco a um conflito que é o pior desde a II Guerra Mundial no Velho Continente, algo que tem provocado também reações, algumas justificadas, de alarmismo. A mais mediática tem sido a recomendação da União Europeia, endereçada aos seus cidadãos, para a preparação de um «kit de emergência de 72 horas para enfrentar crises». Será histrionismo ou uma medida prudente?

O kit europeu

As recomendações de Bruxelas, para além de um conjunto de produtos essenciais, incluem também três dezenas de ações que os cidadãos dos 27 Estados-membros devem seguir. E não se focam apenas na eventualidade de um conflito armado que pode escalar para o campo do nuclear, abordando também catástrofes naturais, industriais e até possíveis ataques no espaço cibernético.

«Na UE temos de pensar diferente porque as ameaças são diferentes, temos de pensar maior porque as ameaças também são maiores», foram as declarações que Hadja Lahbib, Comissária responsável pela ajuda humanitária e gestão de crises, deu aos jornalistas no passado dia 26 de março, data do anúncio. Independentemente da multiplicidade de desafios conjunturais, este apelo à criação de um kit de emergência que contem ferramentas para a sobrevivência, durante 72 horas, dos cidadãos em caso de privação dos bens essenciais básicos, «não começa do zero», disse Roxana Mînzatu, Comissária responsável pela preparação. «A pandemia da Covid-19 demonstrou que o valor acrescentado de agir em conjunto, de forma solidária e coordenada, no quadro da União Europeia, é absolutamente crucial», concluiu Mînzatu.

Vários Estados-membros já possuem avisos deste tipo. Por exemplo, a França, como avançou a Euronews, recomenda um kit que contém «alimentos, água, medicamentos, um rádio portátil, uma lanterna, pilhas suplentes, carregadores, dinheiro, cópias de documentos importantes, incluindo receitas médicas, chaves suplentes, roupas quentes e ferramentas básicas, como facas». Comparando com o kit anunciado por Lahbib, que o expôs num vídeo publicado na sua conta oficial da rede social X, chega-se à conclusão de que são praticamente idênticos.

No campo da coordenação entre os setores militar e civil, será posta em marcha a elaboração de documentos de avaliação de riscos, cuja tutela ficará entregue a um novo centro de coordenação de crises da EU. Mas, segundo a Euronews, o primeiro documento será apenas publicado no final de 2026. A justificação para a demora reside, segundo membros da comissão citados pela mesma agência de notícias, num processo «complexo» de articulação entre os vários Estados-membros. «Para reunir tudo isto, para analisar tudo isto e para produzir um documento que seja digerível e que traga valor acrescentado, é necessário algum tempo. É por isso que não gostaríamos de o fazer em algumas semanas, porque existe o risco de algo ser esquecido (…) e de faltarem alguns elementos de análise e informação», conclui o representante da Comissão que optou pelo anonimato. Mesmo perante esta morosidade, está previsto o lançamento de alertas e avisos ainda este ano.

Exemplo nórdico

Mas isto não é nada de novo. Em novembro do ano passado, os países nórdicos conduziram campanhas de sensibilização, avisos e recomendações na eventualidade de uma escalada militar no conflito ucraniano que colocasse em xeque a segurança do conjunto de países geograficamente mais próximos da Rússia.

A Suécia, por exemplo, distribuiu cerca de 5 milhões de panfletos informativos com o título «Em caso de crise ou de guerra», tendo publicado também um comunicado oficial onde se lê o seguinte: «Vivemos em tempos de incerteza. Atualmente, no nosso canto do mundo, estão a ser travados conflitos armados. O terrorismo, os ciberataques e as campanhas de desinformação estão a ser utilizados para nos minar e influenciar. Para resistir a estas ameaças, temos de nos manter unidos. Se a Suécia for atacada, todos devem fazer a sua parte para defender a independência do país e a nossa democracia. Todos os dias, juntamente com os nossos entes queridos, colegas, amigos e vizinhos, criamos resiliência. Neste panfleto, aprende a preparar-se e a agir em caso de crise ou de guerra. Faz parte da preparação global da Suécia para situações de emergência». No caso de ataque nuclear, as autoridades suecas indicam que «os abrigos» são a melhor «proteção». «Após alguns dias», continuam, «a radiação diminuiu significativamente».

Para além da Suécia, também a Noruega e a Finlândia apelaram, na mesma altura, à acumulação de mantimentos alimentares e médicos, como os comprimidos de iodo, por exemplo. A União Europeia segue assim o exemplo nórdico, amplificando particularmente as recomendações de Sauli Niinisto, ex-Presidente finlandês.

Assim, a estratégia da Comissão Europeia, tem feito soar os alarmes e tem despoletado preocupações – algumas extremas, outras mais moderadas –, mas o seu objetivo, segundo Lahbib, é precisamente o oposto: «Saber o que fazer em caso de perigo, imaginar diferentes cenários, é também uma forma de evitar que as pessoas entrem em pânico».

Exemplos históricos

Puxando a fita atrás, vários foram os momentos em que os Estados empreenderam campanhas de sensibilização como este da União Europeia, ainda que em contextos ligeiramente diferentes.

Na II Guerra Mundial, durante a campanha de ataques aéreos nazis contra o território – o famoso Blitz –, o governo de Sua Majestade distribuiu panfletos, máscaras de gás, apelou à construção de abrigos e à acumulação de mantimentos essenciais e ainda ao “black out”, ordenando o corte da luz e a cobertura das janelas com tinta e cortinas pretas.

Também no conflito que marcou a segunda metade do século XX, a Guerra Fria, vários foram os exercícios e avisos levados a cabo por ambos os lados da barricada. A União Soviética promoveu a construção de bunkers e fomentou práticas de evacuação. Nos Estados Unidos foi publicado o icónico “Duck and Cover” (Abrigue-se e Proteja-se, numa tradução livre para português), um panfleto vermelho da Administração Federal da Defesa Civil (FCDA) em 1951, cuja mensagem foi adaptada à sétima arte e à rádio. Segundo o website Oregon History Project, «Os esforços federais para educar o público sobre os riscos de um ataque atómico e as estratégias de sobrevivência assumiram muitas formas, incluindo a promoção e distribuição de curtas-metragens, programas de rádio, artigos noticiosos, cartazes e panfletos.  Ao promover a prontidão face a uma guerra atómica, os administradores da FCDA esperavam alertar o público para os perigos da guerra atómica, alarmando-o o suficiente para participar nos programas de defesa civil, mas não o suficiente para entrar em pânico ou se tornar fatalista».

Outros exemplos históricos podem ser encontrados em Israel durante a Guerra do Golfo no início da década de 1990, onde, segundo contou uma fonte israelita à LUZ, a população se fazia acompanhar de máscaras de gás. Os ataques às Torres Gémeas a 11 de setembro de 2001 também obrigaram o Governo americano a tomar medidas excecionais.

Assim, vemos que estes alertas são uma constante ao longo dos tempos e que o objetivo nunca foi causar o pânico, esperando o melhor, mas preparando a população para o pior.