O Matuto está familiarizado com o “jeitinho Brasileiro”. Aqui na ‘Casa das Pontes’ o jeitinho funciona para resolver tudo: a infiltração de água, o motor recalcitrante da piscina, a passarada teimosa, a fuga de gás, a porta torta e até o calor insuportável.
Há dias o Matuto foi tratar de um papel qualquer num balcão público. Tinha senha, documento, paciência e “chapéu na mão”. Esperou. E esperou. E desesperou. E continuava a esperar, quando um rapaz lhe disse com naturalidade tropical:
— Isso aí não anda sem jeitinho, sénhô. Tem que conversar… O Matuto arregalou os olhos. Conversar ele sabia. Mas ali, “conversar” vinha com piscadela, cotovelo e um certo ar de quem troca favores no escuro. Não era suborno, que isso é feio — era só um ‘jeitinho’.
Neste país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio o pessoal estaciona onde não deve, mas deixa um bilhete a pedir “compreensão”; ‘arrumam-se’ carteirinhas falsas para entradas grátis; compram-se atestados para faltar ao trabalho; e até se arranjam ímanes para impedir o contador da electricidade, de rodar. Tudo com um sorriso maroto e boa disposição. É a arte de dobrar a regra sem quebrá-la — ou, se quebrar, pelo menos que não faça barulho.
O Matuto falou no assunto com a Belinha, a visitante conservadora das ‘Pontes’. “Isso é coisa de povo sofrido, que aprendeu a contornar o sistema porque o sistema nunca funciona” – foi a réplica. O Matuto entendeu. Mas também percebe que, muitas vezes, o jeitinho serve a quem já tem a vidinha feita. O rico dá o jeitinho de não pagar impostos, o político dá o jeitinho para livrar o comparsa… Até o Presidente deu um jeitinho para sair da prisão. E o pobre… fica com o jeitinho de cabeça baixa, olhando para o chão, a ver se sobra alguma coisa.
O Matuto, que veio da terrinha onde o fiscal é primo do presidente da Junta, e onde corruptos ex-primeiros-ministros andam à solta, e onde pseudo-intelectuais da esquerda bacoca dissertam majestosamente sobre a ‘desconstrução da história’ e sobre ‘epistemologias do Sul’, enquanto passam uma mão boba pelas pernas das investigadoras estagiárias, não ficou chocado. Afinal – pontua o Matuto – os males do mundo nunca foram exorcizados por citações vagas de Foucault. O Matuto nada entende da “epistemologia do Sul”. Mas sabe bem quando lhe querem vender vento por ar fresco. De certas coisas o Matuto entende: ele sabe que ‘o jeitinho Brasileiro’ é como açúcar a mais no café: disfarça o amargo, mas estraga o sabor.
O Marcello, a visita reacionária, das ‘Pontes’ sugeriu que o Matuto se naturalizasse Brasileiro. “Como assim!” – espantou-se o Matuto. “Você já vive aqui há 16 anos, já bebe cachaça como nós, joga truque e adora a nossa feijoada. Em vez de saber o Hino Brasileiro, você apresenta o seu jeitinho em resolver uma situação moderadamente enrolada” – argumenta o Marcello. Com esta, o Matuto recorda a avô Guida a dizer, “regra que se dobra demais, acaba virando um nó”. E no Brasil ninguém “dá ponto sem nó”, transformando o país num imenso “nó cego”. É isso aí mano – acena o Matuto – o jeitinho resolve tudo, menos o país. No país do jeitinho, até a honestidade parece improvisada.
Entretanto, o Matuto fez uma visita ao Rio de Janeiro. Ia ver o mar, ouvir o sotaque e tentar perceber como é que uma cidade pode ser tão bonita e tão desgovernada ao mesmo tempo. Ficou hospedado num prédio antigo, daqueles com varal na janela, elevador com alma (ou almas) e vizinhos socialmente dinâmicos. Uma tarde, enquanto tomava café com dona Laura — moradora do 502 e senhora de saber e língua solta — ouviu uma história que o deixou a matutar. Havia um vizinho lá no oitavo andar, homem simples, sorriso fácil, dado a churrascos e a queixas sobre o preço do gás. Um dia, resolveu aplicar o que por ali se chama “um jeitinho”: puxou um cano do vizinho de cima e fez um “gato” de gás. Um arranjo discreto, no telhado do prédio, feito com fita isoladora, cola quente e uma meia velha para disfarçar o cheiro. Durante meses, cozinhou arroz, moquecas e até feijoada com gás roubado. Era o que se pode chamar um chef patrocinado. O vizinho lesado, vendo a conta a engordar como porco antes da matança, chamou a companhia. Veio o técnico, subiu ao telhado e encontrou a obra de arte. Tirou fotos, chamou a polícia e ainda comentou, a rir: — Esse aí é jeitinho gourmet. Vem com tempero do alheio. Quando os agentes chegaram — famintos e de má disposição — o artista tentou explicar:
— Mas doutor… é que o gás está pela hora da morte! O caso deu em multa, humilhação e fama no prédio: passou a ser chamado “o masterchef clandestino”. O Matuto, com um sorriso discreto, concluiu: O jeitinho sobe ao telhado, mas a conta desce para o vizinho.