Há quase 40 anos, The Smiths cantavam:
«A dreaded sunny day
So I meet you at the cemetery gates
Keats and Yeats are on your side
While Wilde is on mine»
Morrissey acertava em cheio. Perante Wilde, eu estava mesmo do lado de Keats e Yeats. Mas, além da preferência pelos escritores, o que mais interessava era o local. Afinal, um cemitério era o sítio perfeito para um encontro literário, banhado pelo Sol, com uma melodia alegre. O reencontro com os nossos autores é uma celebração viva, mesmo com aqueles que já partiram. Como já escrevi noutro lugar, há uma relação entre a morte e a leitura que se acentua com a idade.
Há vários anos que visito tanto as casas como as campas dos meus autores de eleição e os cemitérios, ao contrário do ambiente tétrico com que amiúde são caracterizados, sempre me pareceram locais vivos e agradáveis.
Nesta Primavera, o bom tempo brindou Paris e, num fim-de-semana soalheiro, visitei pela primeira vez o cemitério de Montparnasse. A tarde estava quente e, à entrada, um grupo de pessoas rodeava a campa de Sartre e Beauvoir, em que se espalhavam vários objectos, entre os quais se destacava uma garrafa de champanhe. O aspecto desleixado destas homenagens reflectia o dos visitantes e, naturalmente, acelerei o passo.
Segui as indicações da minha lista e a primeira visita foi a Baudelaire, porque me fez todo o sentido começar pelo autor do Spleen de Paris. Quando planeava o resto do percurso, notei ao fundo da rua um funeral e a mancha negra que os trajes fúnebres dos presentes formava lembrou-me que neste local há também tristeza e saudade.
Por entre jazigos imponentes, verdadeiras obras de arte arquitectónicas, e campas rasas, há sepulturas em que se nota o abandono e outras bem cuidadas e recentemente decoradas com flores. Morte e vida, esquecimento e memória, numa cidade dentro da cidade.
Alterei a minha volta e passei por Chirac, por Gainsbourg e por pessoas que passeiam, outras que atravessam o cemitério como atalho ou ainda por algumas que, sentadas à sombra das árvores, conversavam. Até que cheguei a um dos nomes cimeiros da minha lista, cuja campa, curiosamente, foi a mais difícil de encontrar. Será que, como gostaria, Cioran é ali «desvairadamente livre»? Deixei-o à sua tão ansiada tranquilidade para visitar Dumézil, cuja obra tanto me inspirou. Não resisti à ironia parva de notar que o teórico da trifuncionalidade indo-europeia está numa campa com o seu pai e o seu filho, totalizando três pessoas.
Seguiu-se outro dos grandes, cuja sepultura está guardada por duas ameaçadoras serpentes de bronze oxidado. Pierre Schoendoerffer foi o «eterno soldado» e é um dos meus realizadores de eleição. Lembro-me da sua 317e Section, até porque o adjudant Willsdorff, aliás, Bruno Cremer, foi a próxima visita. Mesmo ao lado do actor está uma figura inesperada, Jacques Vergès, «o advogado do Diabo», conhecido por defender Klaus Barbie ou Carlos, o Chacal.
Ao fundo dessa rua admirei o cenotáfio de Baudelaire, uma bela escultura de José de Charmoy, com mais de um século, ao lado do qual um homem sentado descontraidamente desenhava a carvão no seu caderno de esboços.
O sossego foi interrompido pelo apito dos guardas do cemitério. Eram seis horas e foi anunciado o iminente fecho de portas. Parti sem completar todas as visitas pretendidas, mas penso que terminei como comecei, com Baudelaire, como se virasse a sua «ampulheta fatal». Saí ao entardecer e, lá fora, esperavam-me duas apresentações de livros para as quais tardava.
Em tempos li uma frase atribuída a Heidegger que nunca esqueci. Após uma conferência, em 1961, quando lhe perguntaram como podemos recuperar a autenticidade (Eigentlichkeit), teria respondido secamente que deveríamos passar mais tempo em cemitérios. Nunca consegui apurar a veracidade desta história, da qual desconfio, mas reconheço que se non è vera, è ben trovata…