Esgotada há vários anos, a tão esmerada e graciosa tradução de Fernando Pinto do Amaral da malévola obra-prima de Baudelaire regressou às livrarias numa edição que favorece a abertura dos seus tão intricados aromas. É uma oportunidade para ouvirmos a exalação dessas flores colhidas no inferno e com as quais o poeta franqueou o caminho para a modernidade, deixando-nos uma feroz profecia sobre a degradação que o progresso significaria para a alma humana.

Em toda a literatura, há apenas três ou quatro nomes que afloram à boca com o peso de verdadeiras blasfémias. Baudelaire é certamente um deles. Quem não reconhece o apelo escabroso da sua obra prova apenas que não está em condições de o ler. Num tempo dominado pela constante mutação, a condição humana dilui-se e apenas reflecte a inconstância, um vazio que a tudo se adapta. E este poeta pressentiu a carga odiosa de uma época em que, cada manhã, ao sair à rua, as suas vidas flutuantes que se misturam nas grandes cidades, saem acicatadas como quem pergunta: ontem à noite, quem morreu? “Celebramos todos um enterro qualquer”, anotou ele, e viu que a própria arte que se diz do seu tempo estava condenada, pois o tempo já não era uma ficção sustentável, e tudo agora se sobreporia, produzindo uma sensação de náusea da qual só nos libertaríamos pelo esquecimento. Seria, então, necessário conceber uma arte fora do tempo, e ele viu também que a solução para os espíritos fortes passava por tomarem a seu cargo a construção da sua própria natureza, distinta, adversa. Baudelaire foi o primeiro dos últimos, esse ser inesperado que nasce entre duas épocas, e limpa as lágrimas ao mesmo tempo que já escarnece da sua dor. O último dos clássicos e o primeiro dos modernos, ele foi um monstro, pela forma como encarnou o abismo entre duas realidades antagónicas, e que não o dilaceraram sem que ele tenha devolvido um grito exultante, que será ouvido pelos séculos, determinando o que possa ainda ser essa raça maldita dos poetas. Depois de si, todo o poeta teria de carregar essa fractura entre mundos, e ele, que na sua obra misturou como um veneno essa lucidez terrível da queda, não deixaria mais que o poeta estivesse em harmonia com o mundo. O seu exemplo e influência irão persistir até que se dê uma catástrofe que nos arranque aos delírios do progresso, e o tempo volte a ser uma medida cardíaca, ao invés de um impulso devastador. Com uma perfídia canora, ele soube cantar a agonia e a desolação de uma anterior época mítica e fecunda, redigindo não o seu testamento, mas uma espécie de maldição fabulosa dirigida ao futuro, encarando de frente os elementos rudes, a sua esterilidade e morbidez, captando novos motivos de enlevo, sugestões encantadoras pelo inesperado, e a génese de um outro fulgor, de uma condição de vida tão nervosa quanto frágil, sujeita à degradação dos ideais e de todo o heroísmo. Com o quotidiano das cidades, e de um horizonte dominado por esse “grande deserto de homens”, o poeta resistiria pela urgência em “tributar outros mundos e todos os tempos”, mas sem se recusar a descer à vida, a misturar-se entre as multidões, mesmo que apenas para sentir ainda mais intensamente a sua solidão e diferença. Ele era agora um absoluto estranho, e via a transformação do homem, envolvido por um ritmo que o dissolve, capturado pelo embalo de um tempo que lhe corrói o carácter, renascendo pelo avesso. Via esse ser refazer-se sem qualquer ideal, preservando-se pela hipocrisia, actuando em linha com uma corrupção que troça do passado, da pureza e da virtude, e, ao mergulhar de forma consciente em tudo isto, o poeta inventou um novo olhar, tornou-se um alquimista da dor, e em vez de ser conduzido ao luto, provou ser capaz de regozijar-se com as notas de podridão, extraindo uma qualidade de beleza imprevista a partir do Mal. Assim, acatou o apelo demoníaco, atirando à cara de Deus os sinais da sua criação inteiramente revirada, numa revolução puramente artificial, abrindo mão do culto da natureza, para devotar-se aos crepúsculos da cidade, a esse renascimento tenebroso. “Baudelaire tinha a estrutura interior de um místico, que procurou nos fenómenos o sobrenatural, e que encontrou uma segunda sensualidade sobrenatural, hostil à natureza, artificial, demoníaca”, refere Erich Auerbach, no conhecido ensaio que lhe dedica. Assim, o poeta reivindica a criação absoluta, enquanto uma construção inteiramente artificial, e, ao exprimir o seu ódio pela natureza nutre algumas das suas provocações de melhor quilate: “prefiro uma caixa de música a um rouxinol”… Num outro momento explica a sua aversão ao realismo: “Acho inútil e fastidioso representar o que existe, porque nada do que existe me satisfaz. A natureza é feia, e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade positiva.” De qualquer modo, as flores que ele arranca ao Mal não deixam de estar marcadas por um sinal de perda, e é daí que emerge esta capela sistina do desespero, com a sua amarga volúpia, o seu lamento que acaba por se consolar com esses motivos que o condenado pinta nas paredes do próprio sepulcro, recriando a sua paixão com traços de morbidez e sadismo, recorrendo a toda a paleta de tons, alternando, muitas vezes de forma abrupta, elementos ternos, reverentes, viciosos, sentenciosos, suplicantes, declamatórios, trocistas e insinuantes e encenando essas “instabilidades da fantasia tão centrais na paixão” (Jonathan Culler).  

Benjamin diz-nos que “o encantamento do citadino é o de um amor, não tanto à primeira como à última vista”. Todas as fantasias de que ora em diante o homem se vê possuído são de ordem fugitiva, escapam-lhe, frustram-no. O mundo passa a ser apercebido na contradição com as paixões íntimas, os desejos já se inclinam e parecem cedências, e o poeta é aquele que revela a sua habilidade ao captar essas coisas fugidias, aproveitando-se da lição que aprendeu em Balzac, que preconizava uma “visão rápida, cujas percepções trazem à imaginação, em veloz alternância, as mais díspares paisagens da Terra”. Baudelaire admite que tenha chegado uma época que poderá dar-se ao luxo de livrar-se dos artistas, bastando-se com o feitiço da técnica, com o elemento de catástrofe que esta introduz, fazendo o mundo exterior submergir inteiramente o interior, e aos artistas que ainda venham a surgir só lhes resta virarem-se para esse novo sol da Morte, aceitando que seja a sua luz dolente a fazer desabrochar as últimas flores da mente. O poeta introduz uma nota de suspeita face à existência, um receio permanente de ser dominado, e, se Sarte nos diz que “ele adorava ‘a vida’, mas a vida acorrentada, contida, tocada levemente, e que esse amor impuro nascia, como uma flor do mal, no húmus do horror”, essa sua timidez e reserva ficou expressa na relação amorosa que manteve com Apollonie Sabatier, a “cortesã e musa de artistas, conhecida como La Présidente, que mantém um dos mais famosos salões de Paris na década de 1850, onde Baudelaire conhece Flaubert”, como refere Jorge Fazenda Lourenço no excelente ensaio biográfico que fez para a Imprensa Nacional sobre o poeta – O Essencial sobre Charles Baudelaire. “Baudelaire rompe com Apollonie Sabatier, por carta, datada de 31 de agosto de 1857, depois  de ela se lhe ter entregado carnalmente, uma única vez, na véspera. Ele tem medo da paixão (‘j’ai horreur de la passion – parce que je la connais, avec toutes ses ignominies’, diz a carta), de perder o controlo de si próprio, de se entregar a outra pessoa, de se perder enquanto sujeito, enfim, de a relação amorosa, na sua exigência de reciprocidade, transformar ao mesmo tempo o objecto em sujeito e o sujeito em objecto.”

A sua diferença está nesta sua religião defensiva, de um ser que se acrisola, e acaba por encarar a atracção sexual como um vil martírio, e a relação entre os amantes como algo que leva ao aturdimento e à dissipação das forças íntimas. Por isso, a sua obra é tão rica em contradições, e demonstra uma tão perversa obstinação da parte de Baudelaire, que entendia que a posteridade dos seus versos não dependia de um vigor exaltante, que a sua arte mnemónica não se imporia pela capacidade de enriquecer as gerações por vir, mas que estas a procurariam para recolher nela uma adversa perturbação, levando o futuro leitor a sentir-se “obrigado a tomar parte num abominável enredo” (Auerbach).

“Coloquei neste livro atroz, todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio”, admitia o poeta numa carta a um amigo. Isto explica a paixão e essa sórdida volúpia que J-K Huysmans bebeu nestas páginas, sendo porventura o mais formidável dos seus leitores, alguém que soube prosseguir estas experiências, gozando até ao pavor aquelas “substâncias finas e poderosas, levadas a um grau de destilação vertiginoso, exalando aromas novos, novas embriaguezes”. Em Ao Arrepio, este romancista e crítico literário francês oferece-nos algumas das páginas que melhor celebram esse mistério doloroso, exprimindo a terrível influência e o culto que a obra de Baudelaire inspirou. “Expôs, em magníficas páginas, amores híbridos exasperados pela impossibilidade de encontrarem verdadeira realização, bem como as perigosas imposturas dos estupefacientes e dos narcóticos aos quais se recorre para enganar a dor e iludir o enfado. Numa época em que a literatura atribuía quase exclusivamente o mal de viver aos enguiços de amores não correspondidos ou às ciumeiras de adultérios, ele não prestou qualquer atenção a essas maleitas infantis, antes provou as feridas mais incuráveis, mais vivas, mais profundas, que são infligidas pela saciedade, pela desilusão, pelo desprezo, em almas em ruína torturadas pelo presente e repelidas pelo passado, cheias de terror e desespero pela iminência do futuro.”

Em 1849, o escritor e jornalista Auguste Vitu apresentava Baudelaire como “um poeta estranho e grandioso, que tem como ponto de honra permanecer inédito”. Não era que lhe fosse inteiramente alheia a ânsia de dar a conhecer a obra que o ocupava há anos, e a verdade é que foi aliciando os leitores fazendo sair nos jornais várias das suas composições, mas preferia retardar o enfrentamento decisivo, dando sinal desse desmesurado grau de ambição que punha na sua obra poética, e a verdade é que apenas nos deu dois livros de poesia. O primeiro deles, foi uma espécie de canto de cisne do romantismo, infundindo nele uma força monstruosa que marcava um desejo de revirar de vez o ideal e a sujeição da beleza ao despotismo do bem e da sua moral. O livro foi condenado, em 1857, por “ofensa à moral pública e aos bons costumes”, e se este tipo de processos se tinha tornado recorrente no Segundo Império (Napoleão III), e meses antes Madame Bovary, de Flaubert, fora também alvo de perseguição judicial, neste caso o romancista fora ilibado das acusações. Na altura, um artigo anónimo entre os tantos que vieram desancar As Flores do Mal, declarava que Madame Bovary, “esse romance medonho”, era “uma leitura devota quando comparado com As Flores do Mal”. O livro de Baudelaire despareceu, voltando quatro anos depois, expurgado de seis poemas, as tais peças incriminadas e que a sentença de tribunal considerou que conduziam “necessariamente à excitação dos sentidos através de um realismo grosseiro e ofensivo do pudor”. Entretanto, Baudelaire acrescentara várias outras composições. Na altura em que o livro foi condenado, um dos sinais de maior encorajamento que o poeta recebeu veio do exílio, uma carta saída da pena de Victor Hugo a 30 de agosto de 1857, em que este o felicitava: “Uma das raras condecorações que o regime actual pode conceder, acabou você de a receber. O que ele diz ser a sua justiça condenou-o em nome do que ele diz ser a sua moral. Ostente-o como uma coroa.” Não lhe valeu de muito. Apenas seis anos depois morria, e se o julgamento foi uma espécie de apogeu na sua carreira artística, permitindo-lhe saborear o gosto da fama, ou da infâmia, pelo menos, deixou-o enrascado, tendo-se enchido de dívidas com os editores e vendo-se rejeitado pela Academia francesa. E se em Paris chegou a residir em dezenas de moradas, de modo a esquivar-se aos credores, em 1864, escapuliu-se para a Bélgica, um país que detestava, e onde, debilitado pelo vício e pela sífilis, na sequência de um derrame deu por si afásico. Em 1867 morreu na mais absoluta miséria, e numa relativa obscuridade, com 46 anos. 

Foi o maior poeta-crítico da época, uma influência decisiva na rebelião estética que as artes operaram na modernidade, mas se extraíra da vulgaridade os seus elementos de encanto, com intensidade dos seus versos produziu um néctar inaudito, cujo travo amargo, arrancado à visão de uma humanidade decaída, soube ainda gerar um novo êxtase na confluência entre elevação e danação.

Erich Auerbach assinala como a violência visionária de tais combinações se tornou decisiva para a poesia posterior, vincando como além de um novo e estranho sabor estas flores “pareciam ser a expressão mais apropriada quer da anarquia interior, quer de uma nova ordem, ainda escondida, mas prestes a despontar. A nudez da existência mais universal e concreta de uma época foi expressa numa forma consumada e inteiramente nova por este poeta, cujo ser e cuja vida eram tão peculiares”. Ele reflecte assim a crise da nossa civilidade, que então estava ainda latente, mas que nos nossos dias assumiu aquele grau de paroxismo e de selvajaria que induz em todas as paixões um elemento de paródia, e isto leva este crítico a reconhecer que uma leitura crítica desta obra não deveria deixar que a admiração a conduza ao louvor, mas antes reconheça o elemento perigoso dos feitos literários de Baudelaire, apreendendo verdadeiramente o elemento terrível das suas Flores do Mal, sendo esta uma colectânea que, nos seus momentos mais odiosos e desesperados, prestigia as tentativas fúteis e absurdas de se aturdir a si mesmo e de se pôr em fuga. Perante a visão a terra inteira feita um destroço, o poeta limita-se a gozar a perspectiva. Mas a verdade é que Baudelaire não é propriamente um cínico, nem um profeta da desgraça, na verdade ele está empenhado em resgatar o fervor estético e aquela sensibilidade clássica, procurando desenhar ainda uma via para a exaltação, mesmo que seja através da embriaguez, dos paraísos artificiais, o que for preciso, para transmitir ainda “este soluçar que passa de era em era”. E se o poeta deve inventar a alternativa, mas está condenado a pertencer a essa “imensa minoria” que trafica pelos fundos as suas noções quiméricas, então resta-lhe acatar a indignidade a que a época o condena, mas preservar-se, e “acertar no alvo, místico e oculto”. “Em conluios subtis gastaremos a alma”, e iremos adaptar os motivos voluptuosos, e mesmo no inferno poderá ainda ver-se alguém a rabiscar uns versos, acatando essa atracção que agora desponta em nós pelas coisas execráveis, repulsivas, esse impulso em direcção ao elemento de horror e aos sórdidos gozos das eras declinantes. Entre a linguagem do universo e o universo de uma linguagem, há uma ponte, que é a poesia, diz-nos Baudelaire. O poeta assume o papel desse tradutor universal, concebendo a linguagem poética como “uma espécie de feitiçaria evocatória”, que permite impor as correspondências entre o mundo sensível (exterior) e o mundo inteligível (interior), e, por essa razão não pode negar-se à realidade que o envolve, mas deve preservar o efeito da sua adesão apaixonada, que lhe dá o alimento para o seu poder de transfiguração.

“O tédio dá-te alma cruel”, vinca ele. Há um elemento venal na grande poesia, e a transformação não deve dominar inteiramente o espírito. “Paris transforma-se! Mas nada da minha melancolia se dissipou. Novos palácios, andaimes, quarteirões, bairros antigos: para mim, tudo se torna alegoria e as minhas recordações mais preciosas pesam como pedras”, anota Baudelaire. Assim, e como assinala Jean Starobinski a propósito de Baudelaire, “quando o real é incapaz de valer como tal, torna-se necessário desdobrá-lo num segundo sentido para impedir a sua dispersão”. As Flores do Mal são esse esforço de insuflar ainda um vigor épico e arrancar a beleza, por mais amarga que seja, de uma nova era. E torna-se, por isso, um testemunho avassalador do génio que, confrontado com a matéria mais degradada, sentindo que tudo à sua volta ruía, ainda assim concebe essa visão magnífica e impetuosa, aberta ao porvir, e com um poder e uma graça expressiva que ainda hoje nos provoca vertigens, mesmo se do ponto de vista formal preservou o rigor formal da poesia romântica, com versos laboriosamente medidos, rimas apertadas, e uma toada que nos devolve ao período áureo das convenções de salão. Se ele se sente exilado, um ser indigno, deformado e sublime, saberá exaltar a forma perdida das séculos, e absorver a novidade de tudo aquilo que consegue antecipar, assim, os seus dois livros de poesia, este em verso clássico, e o outro, O Spleen de Paris, com os pequenos poemas em prosa, já livres de quaisquer constrangimentos rítmicos, ilustram as inúmeras possibilidades desse seu novo estilo, misturando o vil e o desprezível com o sublime, e aproveitando a ênfase de um horror realista de forma a alimentar o repertório simbolista.

A tradução de Fernando Pinto do Amaral revela não só um enorme escrúpulo, mas aquele grau de devoção que se exige a quem irá arbitrar um confronto ou cópula entre dois idiomas, espelhando a longa preparação e apuro que nos serve o elemento hieroglífico de uma escrita que soube “fixar com uma estranha vitalidade expressiva os mais flutuantes dos estados mórbidos que afectam espíritos exaustos e almas tristes” (J-K Huysmans). Ora, essa exploração só está ao alcance de quem eleva a preguiça a uma forma de elegância, aquele rigor próprio da indolência, esse estudo que se faz por meio de uma longa letargia, decompondo a realidade, consumindo-a, como o verme, esse fantasma que atravessa a existência, alterando-lhe a substância. Tudo isto significa uma forma de atenção que não reprime os seus impulsos, e com tantas voltas, num esforço concentrado, se mostra capaz de levar as coisas até ao limite. Assim, mesmo o que poderá ter nascido de uma agitação febril, estéril, com o embalo dos versos e aquela lucidez impiedosa, alcança essa potência selvagem e ardente, originando poemas que tomam a forma de litanias infernais. Se anterior edição tinha um formato mais agradável, e uma capa negra com um maior apelo evocativo, depois a mancha textual mal respirava, e o livro parecia mais um missal de bolso, não ajudando a libertar e expandir os odores daquela noite de trovoada.

O poder hipnótico da sua escrita tem um efeito cumulativo, e exige uma leitura demorada, que possa operar uma metamorfose nas percepções do leitor, de modo a levá-lo a reconhecer esses detalhes e sugestões a que, habitualmente, viraria o rosto. “Nas dobras sinuosas das velhas capitais,/ Onde tudo, mesmo o horror, vira um encantamento”, é para aí que ele nos dirige os sentidos. “Já respiraste alguma vez, leitor,/ Com gula, embriaguez, lento desejo,/ Os ares de incenso que enchem uma igreja,/ Ou o esquecido almíscar de uma bolsa?// Profundo encanto, a ir-nos exaltando/ Quando o presente restaura o passado!/ Assim num adorado corpo o amante/ Colhe a flor mais selecta da saudade.// Dos cabelos espessos, tão elásticos,/ Turíbulo de alcova ou de bordel,/ Subia um cheiro indómito e selvagem”… Com uma subtileza aprendida em diversas artes, nos seus versos Baudelaire falava de fel, retemperava a nudez com elementos de horror e podridão, cantava os elementos até ali considerados indignos, com uma sofisticação na forma, numa linguagem esplendidamente talhada, em versos tensos, sombrios, que não podiam deixar de impressionar, de infectar com as suas sugestões, imprecações e blasfémias a memória do leitor. Melífluo, ele operou assim uma revolução fundamental no sistema lírico, tanto na eleição dos temas, como nos modos, com esse deslumbramento que nos mexe no fundo das entranhas. Mesmo que se possa deplorar os motivos, as cadências conquistam-nos com os seus rompantes bruscos, a inspiração e o inusitado das suas imagens e analogias, a sua deliciosa ironia, conseguindo transmitir os arroubos desses raros momentos de ânimo, sendo fiel aos vícios e prazeres clandestinos onde o homem sensível hoje busca refúgio, gozando a distância e a dissolução, defendendo-se pela consciência trocista da ruptura moral. Deixando-se vencer pelos elementos de podridão, em vez de se enganar e se deixar exaurir pelo compasso massacrante da existência, consagra-se à madraçaria, ao deboche, às mais estranhas fanfarras. “Neste mundo de tédio aparece o poeta”, esse ser capaz de inverter a ordem das coisas, e obter alguma vingança, um resto de consolo frente a uma realidade desgostante. No seu prefácio, Pinto do Amaral cita Julia Kristeva para quem “o amante das lésbicas frígidas e das negras patéticas, das velhas cadavéricas e dos paraísos perfumados (…) não é senão a face exaltada do deprimido. Mas essa face leva a melhor quando a cabeça inclinada do desgosto se inverte – se perverte – numa jubilação sem dúvida negra, mas afirmativa e poética”. E Jean-Pierre Richard adverte-nos que “o devaneio baudelairiano visa embrenhar-se cada vez mais longe no mistério, mas não existe nele qualquer termo ou paragem; por isso não atinge nenhum saber último, e o real permanece, para ele, em suspenso”. O tradutor vinca ainda como Baudelaire, considerando-se um “aristocrata do espírito e do gosto, a sua vontade era a de sentir a diferença que o separava daquela massa de burgueses que no Segundo Império (Napoleão III) tinham encontrado uma estabilidade que os tornara mais prósperos, mas retirara às suas vidas quaisquer laivos de encanto ou de heroísmo”. Para Amaral, se o satanismo de Baudelaire não passa de um décor, ao mesmo tempo exprime também a sua revolta “face a uma religião que vê dominada por fariseus – e de cuja prática a noção do absoluto parecia ter-se afastado”. Assim, como assinala Yves Bonnefoy, “Baudelaire amava o mal como um sobressalto do absoluto”.

 Furor e paciência, é essa a receita da suculência aperfeiçoada daqueles versos, a sua incomparável tensão e aquela atmosfera de vício, provocação, de quem desceu cada um dos degraus, o mais fundo, até à sensação mais revoltante, compondo “este miserável dicionário de melancolia e de crime”. É daí que emana a sua estranha melodia, e, como sugere Bataille, é a interminável agonia o que nos revela a autenticidade da sua poesia, essa paixão que, no mais elevado grau, rasga toda a existência no seu fracasso em encontrar algo que console o vazio no seu coração. “Ele era um desses que têm em si uma força tremenda, mas que a dedicam inteiramente ao sofrimento”, anota T.S. Eliot. “Não podia escapar ao sofrimento nem transcendê-lo, por isso atraiu tanta dor para si mesmo. Mas aquilo que foi capaz de fazer, com toda essa força passiva e aquela sensibilidade estupenda que dor nenhuma poderia estiolar, foi dedicar-se ao estudo do seu sofrimento.”

O mal era, assim, essa natureza que emerge por exaustão, um testemunho odioso de um desconsolo terrível, por ter buscado tanto, com uma tão grande ânsia, e em toda a parte só ter encontrado a desolação e o tédio. “Por mim, é tão pouco o gosto que nutro pelo mundo vivo que, como essas mulheres sensíveis e ociosas que, segundo dizem, enviam por correio as suas confidências a amigos imaginários, eu de bom grado escreveria apenas para os mortos”, confessou Baudelaire.

Os mortos, os que deixaram de respirar, e que por fim são envolvidos por essas flores que lhes bebem as memórias e lhes reservam ainda um último tumulto, o prazer de olhar a vida com toda a frieza, de se libertarem de todo o pudor, mergulhando no além, nesse sonho depravado do que a vida poderia ter sido se os homens não estivessem dominados por esse perfume de um Bem que os deixa a falar sozinhos. A queda diz-nos que toda a consciência é sentida como uma vertigem. O Diabo é o rosto trocista de Deus se realmente tivesse encarnado, comovendo-se e degradando-se entre os homens.