Na passada semana queria falar aqui sobre Michael Koolhaas e acabei por desviar-me do assunto. Por isso gostaria de regressar ao livro de Heinrich von Kleist (1777-1811), que merece mais do que uma referência passageira.
A história passa-se no século XVI e inspira-se num caso verídico. O protagonista é Michael Koolhaas, um abastado comerciante de cavalos – bom cristão, bom marido, bom pai, bom vizinho, um «dos homens mais honrados e mais terríveis da sua época». O pano de fundo é a Saxónia do século XVI, o território onde nasceu e cresceu, pela mão de Martinho Lutero, a Reforma Protestante.
Um belo dia, Koolhaas dirige-se a uma feira para vender os seus animais, «bem alimentados e de pelo brilhante». Vai ele feliz da vida a pensar em que vai gastar a bela maquia obtida com o negócio, quando lhe sai ao caminho o alcaide de um castelo. ‘Mas que brincadeira é esta?’, pensa contrariado.
‘Não sabia? Sem um livre-trânsito não poderá seguir’, diz-lhe o alcaide. Enquanto discutem, chega com a sua comitiva o senhor do castelo, von Tronka. Só o seu nome basta para deixar o leitor com os pêlos um tanto eriçados… A conversa não leva a lado nenhum e os cavalos acabam por ficar retidos. Koolhaas deixa um criado de confiança a guardá-los, enquanto se dirige a Dresden para obter o tal papel em falta.
Ao chegar a Dresden, porém, confirmam-se as suas suspeitas: não existe papel nenhum. Foi enganado, vítima de uma brincadeira de mau gosto. E regressa ao castelo de Tronka para recuperar os cavalos. Encontra-os num estado miserável. O criado que ficara a tomar conta deles, o seu homem de confiança, foi espancado.
Aqui chegados, ficamos a achar que Michael Koolhaas é um livro sobre o abuso do poder. Mas seguem-se acontecimentos tremendos – que de certo modo ecoam as convulsões sociais e religiosas da época.
Os vários apelos de Koolhaas vão, um após outro, esbarrando em sucessivos obstáculos. Von Tronka tem uma teia de altas ligações a protegê-lo. O comerciante de cavalos poderia simplesmente desistir da sua demanda, seria o mais sensato. Mas está disposto a empenhar tudo o que tem, e não é pouco, para obter justiça. Se não lha concedem, terá de ser ele a fazê-la pelas suas próprias mãos. Etorna-se líder de um bando de salteadores que roubam, matam e pegam fogo a aldeias inteiras. Ocastelo de Von Tronka é a primeira vítima.
A páginas tantas, passadas muitas peripécias, os famigerados cavalos voltam a aparecer. Atados a um carro, avançam num passo incerto, «esqueléticos e a tremer» (na minha edição espanhola lê-se «esqueléticos y temblorosos»). Os populares na praça escarnecem do triste espetáculo. Alguns de nós conhecemos de memória as suas expressões grotescas: vimo-las nas pinturas de Bruegel, o Velho. O mesmo se pode dizer dos cavalos famélicos: conhecemo-los d’O Triunfo da Morte, com os ossos tão pronunciados que neles daria para pendurar um casaco.
Mas afinal, pergunta-se, foi por causa daqueles animais patéticos que se criou tamanha confusão? A Koolhaas, «o que menos importava eram os cavalos…», diz-nos o narrador.
Não foram portanto os cavalos, nem o despeito, nem a humilhação. Nada disso. De certo modo, foi a virtude levada ao extremo, um sentido de justiça que roça o fanatismo, que acabou por cegar o nosso herói, desviá-lo do caminho reto e conduzi-lo ao precipício.