Trump 2.0: foi mesmo isto que escolheram?

Uma eleição não serve apenas para escolher o melhor, demasiadas vezes escolhe-se o menos mau. Talvez Kamala Harris não fosse boa, mas era Trump o menos mau?

Há um vídeo a circular na internet, com diversas intervenções da candidata do partido democrata nas últimas eleições nos EUA, Kamala Harris, avisando que a vitória de Trump e o aumento de taxas e tarifas representaria, na prática, a criação de um imposto sobre o consumo para todos os norte-americanos. Isto é, quem estava atento sabia o que estava em preparação.
Nessa mesma campanha eleitoral, nos debates e fora deles, Donald Trump disse que os estrangeiros estavam a comer os ‘cães e os gatos’ dos habitantes de Springfield (no Ohio). Avisou também que ia deportar estrangeiros em massa.


Ainda que em uma ou outra questão o Presidente dos EUA esteja a ir mais longe do que o avisado, como na ingerência em assuntos internos ou na vontade de anexar territórios de estados terceiros, curiosamente em ambas as situações de países aliados, a generalidade das políticas que vêm sendo postas em prática foram temas de campanha. Muito provavelmente, muitos dos eleitores norte-americanos ou não levaram a sério os riscos ou, levando, acreditaram que Trump era a melhor solução para o seu país.
Disse durante a campanha, sobretudo em privado, que, se fosse norte-americano, votaria em Kamala Harris. Todavia, um estrangeiro, particularmente chinês ou russo, estaria desejoso da vitória de Donald Trump. A questão reside na forma como Trump aborda os problemas (sobretudo económicos) dos EUA e, substancialmente, a transição sistémica em curso.


Já aqui escrevi que, na ânsia de querer equilibrar essa transição com aproximação à Rússia, procurando afastá-la da China, desbarata a rede de alianças que constitui o centro o poder internacional dos EUA. Veja-se como o primeiro-ministro do Japão, após o anúncio das tarifas, já propôs à China e à Coreia do Sul um diálogo com vista a uma zona de comércio livre na região. Em menos de 100 dias, Trump conseguiu o que ninguém tinha conseguido em séculos: aproximar aqueles três países.
Para além de desbaratar alianças que demoraram décadas a construir, e que tinham subjacente a ideia de que os EUA eram a ‘nação indispensável’, enquanto ‘potência benigna’, caindo um elemento central do seu ‘soft power’.


Também neste tempo, a nova administração pareceu alinhada em querer enfraquecer a União Europeia – é neste quadro que podemos colocar a recorrente ingerência em assuntos internos de aliados, com o vice-presidente a servir de agitador de serviço (o escândalo das mensagens mostrou, em privado, a aversão dos membros da administração aos aliados europeus). A sua dificuldade em gerir quadros multilaterais, pela sua própria lógica confrontacional e transacional, leva-o a querer tratar sempre com os líderes nacionais, cujo ego cede à racionalidade e tendencialmente mordem o isco, Trump, em diplomacia de bazar, divide para conquistar.


Nestes primeiros meses de nova administração, os EUA ficaram mais fracos, o dito ocidente alargado ficou mais fraco e o mundo aproximou-se vertiginosamente de um sistema internacional multipolar e multicivilizacional. Este último ponto é uma novidade absoluta na era moderna. A aceleração para um mundo pós-ocidental já tem a marca de Trump, as potências revisionistas estão certamente mais gratas do que confessam.


Duvido muito que fosse tudo isto o desejado pelos eleitores dos EUA. Mas uma eleição não serve apenas para escolher o melhor, demasiadas vezes escolhe-se o menos mau. Talvez Kamala Harris não fosse boa, mas era Trump o menos mau?