A sua afável e desarmante generosidade fez dele uma figura muito querida num território marcado por hostilidades surdas, inexplicáveis. Ele pairava com o seu sorriso discreto, e mergulhando no sábio autismo da sua condição de erudito, não se permitindo ficar de castigo nas intrigas próprias de um meio literário que dos livros só retira aquele burburinho, em que confluem unidas e distintas, como num coro, as vozes de personagens que se foram tornando irrelevantes pela inconsequência dos seus propósitos. Nele, pelo contrário, não havia aquela pose medíocre da cabotinagem, mas um interesse pelos movimentos que captam as palavras, na condensação de tempos diversos, com o passado que volta a ser, aos retalhos, presente, e esses objetos e figuras que regressam na sua inquietante plenitude. Fernando J.B. Martinho era o professor, alguém que vivia comprometido com esse desenvolvimento narrativo dos elementos de vigor da história literária, assumindo aquele ar de cumplicidade quotidiana, desafetada, com uma serenidade que não deixava de estar impregnada de concisa e melancólica poesia da vida e do seu fluir, apaixonado umas vezes, outras desolado e fugaz.
A par das suas aulas, esteve sempre comprometido como ensaísta e um estudioso da poesia contemporânea, e intervindo enquanto crítico literário num sem número de publicações periódicas, sempre atento, sempre curioso, assumindo um papel decisivo nessa permanente mesa-redonda que, por ter à sua volta tantos que apenas parecem comprometidos com os seus esquemas de promoção, precisa de contar com uns quantos que manifestam aquela integridade e compromisso com os tais valores tão apregoados pelos outros.
Fernando J.B. Martinho morreu esta terça-feira, aos 87 anos, e o tal coro afinou nas breves notas em que se recordava a sua cordialidade, delicadeza, bondade. De um certo modo, passou ileso. Veio e encontrou essa salvação da vida que é a poesia, tendo reconhecido em Fernando Pessoa um mestre, um figura polar, tendo-lhe sido dada a possibilidade de viver essa entrega na academia, tendo sido o homem que produziu um imenso saber enciclopédico, e não sentiu a necessidade de outras seduções dolorosas, mantendo-se leal à constelação pungente de uma tradição largamente ignorada.
Nascido em Portalegre em 1938, licenciou-se em Filologia Germânica e doutorou-se em Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde lecionou no departamento de Literaturas Românicas e criou a cadeira de Teoria da Literatura e Estudos Pessoanos. Foi leitor de Português nas universidades de Bristol, no Reino Unido, e de Santa Barbara, na Califórnia, onde trabalhou com Jorge de Sena. Além da poesia contemporânea portuguesa, dedicou-se também às literaturas africanas de expressão lusa. Deixa uma imensa obra dispersa, além de uns quantos títulos reunindo ensaios que formam uma perspetiva informada e lúcida dos grandes sobressaltos que foram proferidos ao ouvido desta língua. Dele fica-nos a impressão de um homem que ficou ocupado com esse jogo sacro a que nada falta, mesmo se os deuses estão ausentes. Fica-nos a luz do seu desapego, dessa serenidade no julgamento, que é, no fim de contas, uma das melhores características humanas.