O caso da violação de Loures – uma jovem de 16 anos que quis conhecer os seus ídolos, três influencers que, freneticamente, postavam conteúdos no TikTok e prometiam dinheiro e sucesso – vem confirmar o que há anos venho dizendo e escrevendo a respeito da brutalização da vida dos adolescentes em Portugal. Muitos escreveram já sobre aquilo que, só a reboque deste caso, é agora óbvio: a desumanização crescente das relações entre os adolescentes. Acrescento: e crianças também.
Muitos começam a perceber agora que há uma relação direta entre os casos de violência que se vão multiplicando um pouco por todo o país e o consumo desenfreado dos conteúdos digitais. A relação de causa-efeito é, com mais este caso de Loures, sintoma de que vivemos numa sociedade profundamente doente. O RASI (Relatório Anual de Segurança Interna) atesta do crescimento dos crimes de natureza psicológica e física (atentado à saúde emocional e física, desde as mais pérfidas formas de bullying às práticas efetivas de ataque à vida do outro) entre os mais novos. Como já se diagnosticou em França e noutros países europeus e também nos Estados Unidos, é precisamente a ditadura digital a causa direta dessa violência e dessa brutalização da vida adolescente. E, acrescente-se, da vida adulta. Para muitos especialistas (Michel Desmurget, Nicolas Carr, Byung Chul-Han, Bruno Patino) a revolução digital criou uma geração – a Geração Z – que, pela primeira vez tem um QI inferior aos dos pais; uma geração que, como diz Bruno Patino em A Civilização do Peixe-Vermelho não consegue reter informação e não tem memória. Uma geração que, nascida e criada em plena ‘revolução digital’, não concebe o seu quotidiano sem tecnologia (o tecno-fascismo, como quero afirmar) e que, em contexto escolar e familiar, não imagina as relações sem o intermediário: o ecrã. Geração, portanto, que passa milhares de horas em contacto com essa arma de destruição maciça do pensamento e da sensibilidade: o computador, o tablet, o TikTok, o Instagram, o Twitter, a profusão de plataformas onde a superficialidade, a pornografia, a coscuvilhice, a maldade, a mentira são o único interesse e o único produto a consumir.
São muitíssimos os livros, os estudos, as estatísticas que provam à saciedade – sem que o Governo português tome medidas concretas que impeçam a bestialização de crianças e adolescentes – a relação mortal entre esse consumo dos conteúdos digitais e uma forma de existir que, entre os nossos adolescentes, é inimiga de uma vida saudável. Os pais – tantos também brutalizados nas relações de trabalho por este mundo digital, assético, incolor, inodoro – ainda não compreenderam que os filhos estão vivendo uma verdadeira guerra entre a vida e a morte.
Nas escolas como nas universidades, no mercado de trabalho como nas relações íntimas, é de vida e de morte que teremos de falar se quisermos compreender bem a natureza deste hediondo crime perpetrado por três influencers. Note-se: influencers: aqueles que, vivendo da ingenuidade e até da estupidez de uma larga fatia dos adolescentes, são, eles próprios, a encarnação da estupidez e da boçalidade, do oportunismo e da preguiça. Temos de perguntar: que poder está a ser dado a esta massa de gente ignara, malformada, cujo único interesse é fazer dinheiro – os ditos influencers? Que estudam, que leem, que valores transmitem às crianças e adolescentes que os seguem? A rapariga de 16 anos que os quis conhecer – e que foi violada na arrecadação de um prédio e filmada (para que todos possam consumir a desgraça alheia num sadismo monstruoso!!!) –, é ela culpada de ter sido violada? Quer dizer: quem perpetrou o crime de a levar para uma arrecadação (e mesmo que tenha havido consentimento, não acredito que tal consentimento previsse a violência de tal encontro!) é desculpado pela sociedade civil? Podem ser desculpados por qualquer juiz digno desse nome? Há um dado fundamental a ter em conta: muitos terão visto as imagens da violação – milhares ao que parece – e não terão denunciado esse crime. Devemos perguntar-nos também se não há uma ideologia da morte a corroer a nossa vida coletiva. E mais do que todos, pais e Governo – o Estado que deve zelar pelo bem comum (a República!) –, professores e demais sociedade civil, temos de nos olhar ao espelho e dizer: sim, os culpados da atual alienação e culto da morte entre os adolescentes – os culpados somos nós!!
A adolescência está corrompida por nós: pais e governantes, empresas e ideologia do dinheiro. A única coisa que verdadeiramente tem sido dada na bandeja de ouro das facilidades àqueles que têm hoje entre os 12 e os 22, 25 anos, é o acesso à banalidade, à mais nefanda vida que gira em torno do consumismo acrítico de tudo quanto este sistema demoliberal (demoníaco e liberal, apetece dizer), oferece.
Quando milhares veem as imagens que três adolescentes põem a correr nas redes sociais e nada fazem, então o Presidente das Selfies, os adeptos do digital nas escolas e universidades, deveriam pôr a mão no peito e dizer se o que defendem faz sentido. Quando (como se vê pelos programas televisivos, pelo que acontece no TiTok, como se vê nos grupos de WhatsApp e demais plataformas onde o humano pensa que existe) as redes sociais e os comportamentos violentos determinam o ritmo da vida escolar (e a universitária) no nosso país, então temos de nos perguntar: que é a escola, hoje? E mais: que é a família? E mais: para que serve o Governo? Lembro, a propósito das ‘praxes do Meco’, um cerimonial mórbido e mortal para estudantes universitários e que causou a morte, em 2013, a seis jovens submetidos a essa praxe, o que, há 12 anos era já claro: um país não se faz com ecrãs, mas com livros, com cultura, com pensamento. Oiço os meus alunos. Vou dizer-lhes o que me dizem sobre este caso e sobre este tempo: «A educação não existe. A educação serve um capitalismo de vampiros»; «Como estará a Célia?». E este debate tem de ser feito no país – nas escolas, nas famílias, pelo Estado. O acesso total às redes sociais mata. Mata a democracia, mata o resto de humano que ainda temos.