«Foi a primeira vez que me despediram e disseram realmente que o motivo era eu ser uma mulher trans. Normalmente as pessoas camuflam os motivos», começa por contar ao Nascer do SOL Íris Redol, de 26 anos. Não tem dificuldade em arranjar entrevistas de emprego, porque se enviar o currículo até a chamam. «A partir do momento em que apareço é que começa o problema. Mesmo que as pessoas não me digam diretamente o motivo para não me contratarem, eu vejo no olhar. Vais notando certas deixas, certas social causes. Às vezes as pessoas ficam desconfortáveis. Não que eu faça qualquer coisa que leve a isso. É só mesmo pelo facto de existir», continua.
Começou a trabalhar como assistente de camarim no Teatro Maria Vitória, no espetáculo E Ninguém Vai Preso?, no dia 21 de março – uma sexta-feira –, para substituir Camila Fernandes, uma amiga que conseguiu outra oportunidade de emprego e teve de abandonar o projeto. «Ela ficou de arranjar uma substituta e lembrou-se de mim. Sabia que eu estava desempregada e que tenho um curso profissional de design de moda», revela. O trabalho era vestir o elenco do espetáculo, fazer arranjos nas roupas, pregar botões, fazer bainhas, arranjar alguma coisa que se rasgasse ou rompesse, fazer ajustes… «Tudo trabalho que para mim é básico porque eu sei coser», frisa.
Quando Camila sugeriu o seu nome, fez questão de informar a produção que Íris era uma mulher trans. «Falei com um produtor do Teatro sobre isso, porque já sei como é o senhor Hélder Costa. Tem uma personalidade forte e é preconceituoso de várias formas. Por isso, fiz questão de avisar que era uma pessoa trans, mas completamente competente. Disseram-me que sim, que ela podia ir e que o que mais importava era ser de facto boa profissional. O senhor Costa foi avisado que eu ia sair e ia entrar uma nova pessoa no meu lugar», afirma Camila Fernandes. Infelizmente, as coisas não correram como gostaria.
‘Tiraram-me o tapete’
Íris começou então a formação. «Fiz sexta, sábado e domingo. Estive três dias lá e fiz cinco sessões. A Camila esteve a dar-me formação. O objetivo era ficar autónoma», afirma. A jovem assegura que estava tudo a correr bem até que no domingo entrou no camarim do ator Paulo Vasco para vesti-lo e estava lá o dono do Teatro. «Fiz o que tinha a fazer e sai. O Paulo era a pessoa que eu mais ajudava a vestir durante a peça. Fiz quase todas as trocas dele e ele nunca me tratou mal», garante.
Na terça-feira era necessário fazer a lavandaria e ficou de ir com Camila para aprender. «Liguei-lhe e ela estava muito atrapalhada e disse-me que afinal não era para ir. Estranhei, mas não dei muita importância», admite. No entanto, parecia prever o que vinha a seguir. Segundo Camila, nesse mesmo dia, ligaram-lhe da produção a dizer que tinha havido uma situação com o senhor Costa que «estava a bater o pé e a dizer que não a queria lá». «O meu sangue ferveu. Não sabia como lidar. Liguei para a Íris e nem sabia como lhe devia dizer. Não quis falar logo o que se passava. Não conseguia. Quando cheguei ao Teatro fui falar com a produção. Asseguraram-me que o senhor Costa não a queria lá por quem ela era», exalta.
No dia seguinte, Íris foi contactada por um membro da produção a dar-lhe a notícia. «Disse-me mesmo que o dono do Teatro não queria que eu trabalhasse ali por ser trans, que não aceitava que eu era uma mulher, que se recusava a tratar-me pelo meu nome», lamenta. Segundo a jovem, o membro da produção em questão estava muito atrapalhado e envergonhado pela situação. «Só me pedia desculpa dizendo que era contra os seus valores. Eu fiquei sem resposta. As coisas estavam mesmo a correr bem, as pessoas estavam a gostar do meu trabalho, eu estava feliz por finalmente conseguir trabalhar na minha área. Tiraram-me o tapete», desabafa.
Uma atitude ‘inadmissível’
Tal como ele, quase toda a equipa do espetáculo ficou indignada com o sucedido. «Tudo o que sei foi-me passado pela produção. Houve um dia – penso que foi no sábado – que chegaram ao pé de mim e disseram: ‘Olha Marta, o senhor Costa veio perguntar quem é que era este homem que anda por aqui vestido de mulher’. Eu achei que seria uma coisa que iria passar», releva Marta Gil, que faz parte do elenco do espetáculo. «Nos poucos dias que lá esteve, a Íris foi súper competente, não falhou em nada. Esteve sempre ali com um sorriso na cara e a querer aprender», garante a atriz que fez questão de, nessa segunda-feira, enviar uma mensagem à produção a perguntar como estava a situação. «Ninguém me respondeu. Quando lá cheguei na quinta-feira disseram-me que ela tinha sido despedida. Tive uma discussão com um dos atores do Teatro, onde lhe disse que isto era crime. Não se pode despedir alguém por discriminação. Respondeu-me que como o Teatro é do senhor Costa, que ele pode fazer o que quiser. Não, não pode! Nós podemos despedir uma pessoa porque é incompetente, não porque é transgénero», afirma Marta Gil.
«Com isto tudo, temos a certeza que o despedimento foi baseado no género da Íris. Não há aqui dúvida nenhuma em relação a isso!», continua. A atriz refere ainda que o despedimento aconteceu no Dia Mundial do Teatro. Portanto, num dia em que o espetáculo era «importantíssimo». «Pôs em causa o próprio espetáculo. Porque a assistente de camarim é uma pessoa importantíssima. Se falha aquilo pode mesmo correr mal. Ele pôs em causa isso tudo, porque diz que aquilo é uma casa de respeito e que as casas de respeito não podem ter pessoas como estas a trabalhar», acrescenta indignada. «Se eu soubesse que ele ia levar mesmo isto para a frente, o que eu teria feito era juntar quem eu sei que poderia juntar e dizer: ‘Se você despedir esta pessoa, nós amanhã não estamos cá!’. Por isso é que fui perguntando à produção como estava a situação. Quando soube já ela tinha sido despedida. O Teatro deve ser um sítio de inclusão e liberdade! E nesta situação, não foi!», defende.
Miguel Sousa, também ator no espetáculo, pensou mesmo em despedir-se. «Um dia cheguei ao Teatro e circulava esta informação de que a Íris tinha sido despedida por ser trans. Ou seja, recebi a informação da forma mais cruel possível… Lidei muito mal com isso. Passaram-me várias coisas pela cabeça, inclusive demitir-me», admite. «Nunca foi fixe acontecer e, hoje em dia, com tanta informação, uma pessoa que está à frente de um Teatro a celebrar 60 anos de carreira fazer isto, não é justificável. Se há um sítio que deve ser seguro para toda a gente, é este, o núcleo das artes. E não foi isso que aconteceu. Isto deixa-me muito triste», revela.
Da mesma forma, uma das cantoras do espetáculo (que prefere não revelar o nome), estava no seu camarim quando lhe chegou a informação. «Um dos colaboradores partilhou comigo que estava muitíssimo chateado porque o senhor Hélder não queria aceitar o facto de ter alguém trans a trabalhar lá. Inicialmente, fiquei a saber que ele tinha ficado chateado por não terem avisado que iria uma pessoa substituir a outra assistente de camarim. Depois, fiquei a saber que a questão era outra», partilha. Mas na verdade, segundo Marta Gil e Camila, não é habitual que isso passe pelo senhor Hélder. «Ele também não me conheceu», garante Camila. «Quando eu entrei no Teatro em Dezembro, falei somente com um membro da produção. Vi o anúncio e tive uma entrevista muito breve com essa pessoa. Conheci o Sr. Costa três dias depois de ter começado a trabalhar lá», frisa.
Contactado pelo Nascer do SOL, Hélder Costa, garante que a base do despedimento esteve no facto de não ter sido consultado sobre a contratação de Íris. «O patrão só serve para pagar? Não! Tem de saber quem anda nos bastidores!», diz. No entanto, não deixa de descrever a primeira vez que viu Íris, dizendo ter sido «confrontado com uma pessoa nos camarins com voz de homem». «Um dia cheguei ao camarim do Paulo Vasco – diretor de cena – e vejo uma pessoa quase com dois metros de altura, forte (…) Entra assim uma pessoa, anda ali daquela forma? Isto é um teatro onde trabalharam as maiores figuras do nosso país. Isto não é uma palhaçada. Se é homem tem de dizer que é homem, se é mulher tem de dizer que é mulher», afirma (ver texto ao lado).
O que diz a lei?
«Se foi exatamente assim que se passou, manifestamente há aqui uma situação de assédio e discriminação», garante o advogado Tiago Marques, apontando para o artigo 24 nº1 do Código do Trabalho que refere expressamente que «o trabalhador (…)_não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, etc. (…)».
«Isto é uma clara violação deste artigo. Havendo aqui uma situação de assédio, esta pessoa tem direito a impugnar o despedimento considerado ilícito no prazo de 60 dias e de reclamar a sua reintegração ou o pagamento da devida compensação, além do eventual processo de assédio laboral gritante que aqui está em causa», explica. «A empresa – entidade patronal – normalmente está aqui perante uma contraordenação muito grave. A aplicação desta coima está dependente da faturação da empresa. Paralelamente, pode estar o pedido de indemnização e é uma questão de se quantificar», remata.
Hélder Costa, Dono do Teatro Maria Vitória: “Nem toda a gente serve para estar nos camarins”
Vários membros da equipa do espetáculo que está em cena no seu Teatro acusam-no de transfobia. O que se passou?
Estou com 84 anos e já me poupo. Não vou ao Teatro sempre. Vou na maior parte dos dias em que há espetáculo. Desde a pandemia que passei o escritório para minha casa e estou a minutos do Maria Vitória.
Um dia, fui confrontado com uma pessoa nos camarins com voz de homem. Cheguei ao camarim do Paulo Vasco – diretor de cena – e vejo uma pessoa quase com dois metros de altura, forte e que diz ao Paulo: «Então vamos vesti-lo?». Eu fiquei: «Então mas o que é isto? O Carnaval já passou». Deixei-o sair dali e perguntei ao Paulo quem era. Foi aí que ele me disse que era a nova assistente de camarim. Mas com autorização de quem? Eu sou o patrão e só sirvo para pagar?
Então o problema foi não ter sido consultado ou a identidade de género da colaboradora?
Não permito uma coisa dessas. Não entra aqui qualquer pessoa. Nos bastidores de qualquer teatro, não entram pessoas sem o patrão saber. As bailarinas podem estar despidas. Se se despem têm de ter confiança com quem cá está. Entra assim uma pessoa e anda ali daquela forma? Isto é um teatro onde trabalharam as maiores figuras do nosso país. Isto não é uma palhaçada. Se é homem tem de dizer que é homem, se é mulher tem de dizer que é mulher.
Isso quer dizer que tem algum problema com o facto da Íris ser trans…
Não! A base é eu não ter sido consultado. Em segundo, como disse nem toda a gente serve para estar nos camarins. Os camarins têm valores. O Paulo Vasco nem sabia quem ela era. Disse-me que era a primeira vez que a via. Qualquer dia estão-me a atacar e a dizer que eu tenho aversão aos que não são heteros? Eu trabalho no teatro há 60 anos e pela minha mão já passaram milhares de pessoas. Hoje em dia, no teatro, muita gente é homossexual. Isso nunca foi um problema. Tenho imensos amigos que o são.
Não estamos a falar de orientação sexual…
Isto foi feito de propósito para me atacar, mas eu não entro nisso. O que me interessa é a competência da pessoa. E sou eu que vejo isso! Se um bailarino quiser colocar lá o namorado, claro que me vai dizer que é competente. Eu não a quero lá! Estava uma pessoa estranha no meu teatro e eu não quero! Já lá está outra pessoa da minha confiança. Qual é a importância desta pessoa para se estar a levantar esta questão? A tempestade passa e depois vem o bom tempo.