O novo clero laico: a elite cultural e mediática

Este pensamento homogéneo, que se afirma liberal e progressista, revela-se afinal como uma forma de pensamento único.

Ligamos a televisão e percorremos os canais tradicionais — SIC, TVI/CNN, RTP, Now — e deparamo-nos com o mesmo desfile: comentadores profissionais, políticos reciclados em analistas, figuras públicas convertidas em especialistas, jornalistas que se dizem escritores e escritores que se apresentam como peritos. Os rostos mudam, mas o discurso mantém-se. Por vezes lá surge um “especialista” que é professor ou técnico com selo académico para justificar o consenso, porque este convoca todo e qualquer oficiante. O debate público tornou-se uma encenação previsível, onde a divergência autêntica é evitada e a pluralidade reduzida a variações dentro da mesma ortodoxia.

Será que o certo e o errado, o bem e o mal, se tornaram tão evidentes que apenas um louco ou criminoso ousaria contestá-los? Este pensamento homogéneo, que se afirma liberal e progressista, revela-se afinal como uma forma de pensamento único.

O filósofo Byung-Chul Han descreve essa uniformização não como imposição autoritária, mas como resultado de mecanismos subtis de controlo simbólico. Estes atuam sobre o prestígio e a reputação, articulando-se com as dinâmicas das redes sociais e do mercado para definir os limites do discurso público.

O novo progressismo exerce uma hegemonia discursiva que, embora se diga inclusiva e libertadora, tende a excluir vozes dissidentes. Em temas como identidade de género, alterações climáticas, imigração, raça ou política global, o dissenso é frequentemente moralmente condenado — rotulado como “negacionismo”, “discurso de ódio” ou “retrógrado”.

O problema não está nos ideais progressistas em si, mas na sua transformação em dogmas inquestionáveis, usados para censurar ou patologizar qualquer divergência.

Raramente as elites culturais exerceram um poder simbólico tão uniformizador — nem mesmo em regimes totalitários. A homogeneização dos discursos “aceitáveis” é evidente, sobretudo nos meios académicos e culturais, onde a dissidência é deslegitimada como “inaceitável”.

Este fenómeno não nasce de uma conspiração, mas de um sistema liberal-progressista incapaz de lidar com o dissenso genuíno. A elite cultural impõe um consenso ideológico que trata o pensamento crítico como populista, reacionário ou extremista.

Jean-Claude Michéa descreve este processo como um “monopólio da virtude”: as elites progressistas reclamam para si a exclusividade da racionalidade e da legitimidade moral, excluindo tudo o que não se ajusta ao seu enquadramento ideológico.

Sob o pretexto da neutralidade técnica e da razão ilustrada, o discurso liberal converte-se numa dogmática que, em nome da democracia, da tolerância e da liberdade, impõe um novo moralismo e uma ortodoxia simbólica excludente.

A hegemonia progressista transformou a pluralidade num simulacro e a dissidência numa heresia contemporânea. Impôs limites rígidos ao pensamento divergente e passou a controlar o alcance da discordância — inclusive por via judicial. A censura de discursos considerados ofensivos tornou-se prática habitual. Professores, jornalistas e investigadores são silenciados; partidos críticos do status quo são rotulados como extremistas.

Um exemplo nacional é o tratamento mediático e académico dado à figura de André Ventura e ao seu partido. Notícias destacam a sua alegada hostilidade no Parlamento, mas ignoram episódios semelhantes de outras bancadas. Não é necessário partilhar as ideias do Chega para reconhecer o padrão: a rotulagem sistemática como “fascista” ou “ameaça à democracia” antecede qualquer debate substantivo.

Essa excomunhão simbólica estende-se também a quem analisa criticamente este partido — como no caso de Ricardo Marchi — sendo imediatamente associado a um extremismo inaceitável.

Esta lógica, típica da cleresia laica, resulta num controlo rígido do discurso sobre temas como segurança, imigração, família, identidade nacional ou euroceticismo. Estes assuntos tornaram-se rodeados por tabus ideológicos. Questioná-los é interpretado como sinal de intenções suspeitas. A elite assume o papel de guardiã da virtude e do progresso.

Um exemplo recente: uma notícia insinuava que o governo Trump queria controlar universidades portuguesas por enviar um questionário com perguntas sobre “ideologia de género” e simpatias por grupos terroristas. Na verdade, o inquérito visava apenas apurar como estavam a ser usados os fundos americanos. A distorção dos factos é frequente, desde que sirva para desqualificar qualquer ameaça à narrativa dominante.

Censura, marginalização de partidos e criminalização de opiniões dissidentes tornaram-se práticas comuns. O discurso da “salvação da democracia” justifica agora atos antidemocráticos. As elites culturais produzem ideias que moldam o senso comum, operando como uma cleresia secular que substitui a moral religiosa por uma moral performativa.

Este progressismo não ameaça as estruturas do poder económico; antes as legitima sob aparência de justiça social e inclusão. Apresenta-se como emancipador, mas mantém o status quo. Define unilateralmente o que é válido pensar, dizer ou questionar.

Neste novo absolutismo, os agentes culturais — jornalistas, académicos, escritores, influenciadores — tornam-se sacerdotes seculares, detentores do saber autorizado. Tal como o clero detinha o monopólio da verdade e da moral, esta cleresia reclama para si a razão, a ciência e a ética do presente.

Se o progressismo se tornou uma religião secular, então absolutizou-se como ideologia. Eric Voegelin alertava para o perigo de ideologias que, ao abolirem a transcendência, se erguem como religiões políticas totalizantes. É precisamente isso que se instalou: uma estrutura com sacerdotes, inquisidores, fiéis e hereges.

Não precisamos de novos cleros, nem de dogmas travestidos de racionalidade. Precisamos de cidadãos livres, críticos e intelectualmente responsáveis. Contudo, tudo aponta para o reforço de estruturas de controlo ideológico disfarçadas de tolerância e pluralismo.

Esta elite recorre a conceitos como liberdade e progresso para justificar uma ordem tecnocrática e elitista, cada vez mais distante das aspirações populares. Hostiliza as reivindicações reais dos cidadãos, promove utopias desencarnadas e fragmenta o tecido moral da sociedade. Quem ousa questionar é ostracizado — nas universidades, nos tribunais ou na comunicação social. Esta elite assume o papel de árbitro moral e epistemológico, decidindo o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso — sobretudo em temas como género, raça, clima, imigração, Israel ou União Europeia.

Quem desafia esses dogmas é cancelado, marginalizado, patologizado ou criminalizado. Apesar de se apresentarem como defensores da liberdade e da diversidade, os agentes desta ortodoxia promovem um pensamento único. O controlo simbólico está hoje nas mãos de intelectuais, jornalistas, ativistas e influenciadores que definem os valores universais aceitáveis. Esta elite cultural é o novo clero de uma religião secular, intolerante e dogmática — agora sob a bandeira do progresso, da diversidade e da racionalidade.

Esta nova casta é funcional ao capitalismo global: substitui os antigos valores morais por uma ética de consumo, diversidade performativa e resignação ao status quo — tudo sob o disfarce de rebelião progressista.

A sua função simbólica é decisiva: controlar o debate público, fabricar consenso, distribuir o saber legítimo. Exemplos disso são os gurus da DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), ideologia dominante nas universidades anglo-saxónicas que se espalha pela Europa.

Isto não implica rejeitar os princípios de liberdade, igualdade ou inclusão, mas questionar como têm sido instrumentalizados por elites que, sob aparência de pluralismo, exercem dominação simbólica. A democracia exige dissenso, conflito e debate real. Quando a dissidência é criminalizada ou ridicularizada, está em causa não só a liberdade de expressão — mas a própria vitalidade do regime democrático.

O progressismo hegemónico não é revolucionário; é útil à ordem vigente. Confere aparência benévola a um sistema estruturalmente desigual. Se queremos preservar a liberdade e o espírito democrático, é fundamental garantir um debate público plural, com espaço para a contestação — sobretudo a que desafia os dogmas do nosso tempo.

A crítica ao progressismo dominante não é um ataque à justiça ou à inclusão, mas uma defesa da abertura, da humildade intelectual e da democracia autêntica. Criticar esta cleresia laica não é negar a ciência, a diversidade ou os direitos humanos — é afirmar que até os princípios mais nobres podem ser pervertidos quando apropriados por elites dogmáticas. Um verdadeiro progressismo abraçaria o debate, a crítica e a pluralidade — reconhecendo que a dissidência é condição essencial da liberdade. Só assim escaparemos ao novo absolutismo ideológico travestido de emancipação e poderemos resgatar o ideal democrático de uma sociedade viva, plural e aberta ao outro.