Os painéis de Almada Negreiros nas Gares Marítimas, que constituem o maior conjunto de pintura mural portuguesa do século XX, já estão disponíveis ao público. O Centro Interpretativo inaugurado na segunda-feira permite conhecer o contexto de construção destes cais, o trabalho do artista nos 14 painéis, a polémica em torno deles e os vários momentos políticos e históricos que se refletiram no funcionamento das Gares
Apresentava-se como um artista «total». Ou seja, tinha a ideia que o artista se apresenta sempre diante de um público e pode expressar-se de diferentes formas. Foi bailarino e coreógrafo, foi ator de cinema e teatro, escreveu poesia, ensaio, romance, contos, manifestos, teatros… Desdobrou-se por várias artes, sempre com a ideia de que cada expressão artística continha em si a «arte total». A palavra espetáculo era central no pensamento de Almada Negreiros. «Toda a arte é suscetível de espetáculo. E fazer uma obra que seja um espetáculo que todos consigam ver, é uma coisa muito séria», defendia.
E é precisamente isso que se sente ao entrarmos na Gare Marítima de Alcântara e na Gare Marítima da Rocha do Conde d’Óbidos, encomendadas pelo ministro das obras públicas de Salazar, José Duarte Pacheco, ao arquiteto Porfírio Pardal Monteiro nos anos 30 do século XX, com quem Almada Negreiros colaborou. A ideia vinha do século XIX, mas foi com Duarte Pacheco que se concretizou.
O objetivo seria fazer de Lisboa o cais da Europa, uma receção marítima para bens e pessoas e um destino turístico de eleição. A gare de Alcântara, receberia os passageiros de primeira classe. Almada Negreiros, um dos mais importantes artistas do século XX foi então convidado para fazer os painéis decorativos. Além destes, foi responsável pela concessão dos murais da Gare Marítima da Rocha do Conde d’Óbidos no extremo oposto do cais. Segundo o artista, este último foi o trabalho de que mais se orgulhava e aquele com que mais se identificava. Mas quem encomendou o trabalho não concordou. E já é possível conhecer toda a história tanto dos edifícios, como dos painéis, no Centro Interpretativo «Os Murais de Almada nas Gares Marítimas», um espaço dedicado à obra monumental do artista, inaugurado na segunda-feira, dia 7 de abril – data em que se celebra o nascimento daquele que é considerado um dos mais importantes modernistas do país.
«Pela sua obra plástica, que o classifica entre os primeiros valores da pintura moderna; pela sua obra literária, que vibra de uma igual e poderosa originalidade; pela sua ação pessoal através de artigos e conferências – Almada-Negreiros, pintor, desenhador, vitralista, poeta, romancista, ensaísta, crítico de arte, conferencista, dramaturgo, foi, pode dizer-se que desde 1910, uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa e uma das que mais decisivamente contribuíram para a criação, prestígio e triunfo de uma mentalidade moderna entre nós», escreveu Jorge de Sena in Líricas Portuguesas, sobre o seu colega de profissão.
Nascimento e organização do Centro
Nove meses depois da assinatura do protocolo deste projeto entre a Associação de Turismo de Lisboa (ATL), Câmara Municipal de Lisboa e Administração do Porto de Lisboa (APL), nasceu o Centro Interpretativo, que contou com a curadoria de Mariana Pinto dos Santos, investigadora do Instituto da História de Arte e especialista da obra de Almada Negreiros. O financiamento global de 8,2 milhões de euros foi repartido pela ATL (3,5 milhões de euros) e a APL (quatro milhões), a que se juntaram 700 mil euros da World Monuments Fund, de apoio ao restauro dos painéis.
Mariana Pinto dos Santos leva-nos, juntamente com o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, o Secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Espírito Santo e a Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, numa visita guiada pelo espaço. Na sessão de inauguração, marcaram também presença as netas de Almada Negreiros, Rita e Catarina Almada Negreiros.
O Centro Interpretativo encontra-se no piso 0 da Gare Marítima de Alcântara e conta com nove salas onde os visitantes «podem embarcar numa viagem pela história do Porto de Lisboa, a importância da construção das Gares Marítimas e o processo criativo de Almada Negreiros na elaboração dos murais, na década de 1940».
Nas salas «Cais», «Passagens», «Partidas» e «Chegadas» é nos apresentada a história da construção das Gares de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, bem como a passagem de alguns acontecimentos históricos pelas mesmas, como a II Guerra Mundial, a emigração, a Guerra Colonial e a subsequente descolonização e regresso dos portugueses das ex-colónias. As gares – que abriram pela primeira vez em 1943 e 1949 –, distam cerca de 800 metros e um transporte levará o visitante de uma a outra. «Basicamente, nestas salas, fala-se da vivência neste espaço. No que aconteceu historicamente aqui», afirma Mariana Pinto dos Santos.
A historiadora lembra que, antes de receber a encomenda para fazer as pinturas das Gares Marítimas, Almada Negreiros já tinha trabalhado com Pardal Monteiro em duas ocasiões: na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, na Avenida de Berna, em Lisboa (primeira igreja modernista construída no país no âmbito do movimento internacional renovador de arte cristã), erguida entre 1934 e 1938; e no edifício do Diário de Notícias, inaugurado em 1940 e que é um exemplo maior da arquitetura modernista no país. Por isso, não é improvável que tenha havido recomendação do arquiteto para a escolha do artista. «Depois disso, colaboraram muitas mais vezes, com Almada Negreiros a fazer pintura mural, mosaico, tapeçaria para uma série de obras de arquitetura de Pardal Monteiro», conta.
Mariana Pinto dos Santos aponta para um ecrã onde é possível observar várias notícias da época. «Através desta aplicação podemos ver várias primeiras páginas de jornais. Às vezes separa-se muito a história da arquitetura, ou da arte, do contexto histórico… E quando isto começa a ser construído estamos em plena Segunda Guerra Mundial», explica. «Portanto, há aqui várias primeiras páginas de jornais que dão conta do que se passa, obviamente com informação muitíssimo filtrada pela censura do Estado Novo, mas ainda assim, permite-se ver vários momentos, nomeadamente a notícia da morte de Duarte Pacheco», continua. Além dos jornais, há também revistas. «Esta revista em concreto, Mundo Gráfico, era financiada pelos britânicos e fazia propaganda pró-aliados. Portanto, também há aqui vários pormenores que podem ser explorados nesta aplicação sobre este contexto político», acrescenta a historiadora.
Passagens, Partidas e Chegadas
A sala «Passagens», lembra-nos que, com os projetos de Pardal Monteiro aprovados e o início da construção da Gare de Alcântara, começou o êxodo sem precedentes de gente em fuga da guerra da Europa. «As leis raciais dos regimes nazi e fascista da Alemanha e da Itália determinaram a perseguição a judeus nesses países e naqueles que ocuparam. Também os opositores políticos e etnias minoritárias foram perseguidos, bem como artistas modernistas e de vanguarda. Os que tinham meios ou conseguiam ajuda de redes solidárias e financiamento, tentaram escapar, muitos deles passando por Lisboa», encontra-se descrito nos textos explicativos. Nas gavetas de arquivo presentes neste espaço amarelo, encontram-se várias histórias de quem passou por estes cais durante e no pós-guerra, como Salvador Dalí, Marc Chagall e Marcel Duchamp.
Noutra sala, fala-se de três partidas importantes: a partida da emigração – que Almada «põe na parede»; as partidas para colonização dos territórios e as partidas dos soldados para a guerra colonial. «Faltava um espaço onde esta história fosse contada nesta zona. Porque de facto foi daqui que partiram ao longo de 13 anos de guerra 800 mil soldados com 500 mil africanos incorporados no exército português. É um trauma que ainda está por trabalhar», sublinha a especialista.
As chegadas foram outro dos momentos importantes que se encontram descritos no Centro Interpretativo. «Quando os soldados acabavam o seu serviço, voltavam. Isto afetou toda a juventude portuguesa dessa altura, quer daqueles que escapavam, se exilaram, quer daqueles que não tinham tido oportunidade de fugir e regressavam da guerra. Esses regressos eram quase sempre muito emocionados», conta, acrescentando que também chegavam a Gare os cadáveres e os feridos. «Estas eram feitas à noite, para não se ver, para não se ter conhecimento do lado negativo da guerra», revela. Figuras como Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, chegaram também a este cais para estudar na Casa dos Estudantes do Império, promovendo depois estudos sobre a cultura africana e criando uma resistência anti-colonial que depois vai levar ao processo de descolonização. «E as chegadas do retorno… Cerca de 500 mil pessoas voltaram para Lisboa no processo de descolonização, num momento muito difícil, muito traumático», acrescenta Mariana Pinto dos Santos.
Os murais
Já as salas «O que contam as paredes», «História mural» e «Diz que disse» são dedicadas às pinturas murais em ambas as gares, a todo o processo criativo que esteve por detrás das mesmas e às entrevistas e depoimentos de Almada durante e após a sua conclusão. Na sala do «Diz que disse», os visitantes podem atender os telefones fixos para conhecer o que se disse aquando da inauguração dos painéis. Além disso, têm acesso a pareceres, despachos e contratos sobre o projeto de Almada Negreiros.
Na «História Mural», os visitantes podem apreciar a obra do artista João Fazenda. «Tentámos colocar num painel um resumo da história da pintura mural. O desafio foi encontrar alguns dos momentos mais emblemáticos: pré-história; época romana, idade média, os traços barrocos, toda a cultura sul americana, os muralistas mexicanos, as pinturas do lunda, o Almada e depois as pinturas murais políticas do PREC, acabando hoje em dia na street art», descreve o ilustrador português.
«Esta sala é dedicada às pinturas murais. Temos várias fotografias do Almada a trabalhar e depois temos uma ampla informação sobre todos os estudos que o artistas fez», diz Mariana Pinto dos Santos ao chegarmos à ampla sala «O que contam as paredes». «Por exemplo, este estudo é muito curioso para a Gare Marítima de Alcântara, porque se percebe que Almada pôs uma imagem de pobreza de uma mulher a pedir esmola. E as imagens de pobreza obviamente não eram bem vindas. Esta não chega a integrar os painéis, mas há outras que sim», descreve ao apontar para o estudo em questão. Segundo a especialista, todo este contexto tem a ver com a pobreza, a segunda Guerra Mundial e, na Rocha do Conde d’Óbidos, já no pós-guerra, com a emigração e a colonização.
Uma afronta ao regime
Apesar de existir a ideia comum de «espetáculo» entre o regime, ao encomendar a obra – o Estado Novo queria dar a ideia a quem chegava a Lisboa, de que esta era uma cidade moderna –, e o artista – que a pensou e realizou –, o resultado final não agradou Salazar. À época houve uma grande polémica com o resultado final, «distante dos objetivos propagandísticos da ditadura».
O artista escolheu a Nau Catrineta, lengalenga popular que falava das desventuras dos marinheiros numa travessia marítima para evocar os Descobrimentos; ilustrou o milagre de D. Fuas Roupinho salvo à beira do abismo; retratou o Portugal rústico e a Lisboa ribeirinha, com varinas de corpos robustos e pés descalços, saltimbancos pobres, pescadores e marinheiros em primeiro plano.
«Não era isto que se esperava numa encomenda como esta. Estavam à espera de ver representados os grandes heróis da narrativa nacionalista do Estado Novo», garante a historiadora. «Neste painel – ano 49 pós-guerra –, podemos ver uma partida de emigrantes. As pessoas estão-se a despedir, com um ar consternado. Estas pessoas que partiam nesta altura, tem que ver com uma política do Estado Novo de estímulo à colonização. Eles estão a partir, quase de certeza para África», detalha.
De acordo com a especialista, é interessante entender, no meio de tudo isto e apesar do descontentamento, que sobre os painéis da Gare de Alcântara, há muita informação. Os da Rocha, que foram muito mais polémicos, foram feitos «com silêncio total».
Almada Negreiros esteve mesmo em risco de perder a segunda parte da encomenda. Foi António Ferro, diretor do Secretariado Nacional da Propaganda, com quem já havia trabalhado noutros projetos que garantiu a Oliveira Salazar que esta era obra de «inquestionável qualidade». E o artista continuou o projeto. Desta vez, ainda mais «provocatório». Os painéis em Alcântara tinham ligação temática à História de Portugal. Já no extremo oposto do cais, na Rocha do Conde de Óbidos, o foco foi mesmo colocado nos que sofriam.
Já seria de prever que o regime o levou como uma afronta e a sua destruição chegou a ser pensada. Mais uma vez, houve quem intercedesse. Desta vez, foi o diretor do Museu de Arte Antiga, João Couto, que convenceu os ministros de Salazar que aquela obra «era o melhor cartão de visita que Lisboa podia ter no seu ambicioso e moderno cais da Europa».
Por fim, as salas «Almada em Lisboa» e «Almada Negreiros, artista» mostram alguns dos principais momentos da vida e da obra de Almada Negreiros, bem como locais em Lisboa onde as suas obras podem ser encontradas.
Recorde-se que o restauro dos 14 murais das Gares foi finalizado recentemente, através de um financiamento garantido pela World Monuments Fund, uma organização sem fins lucrativos que tem como missão a salvaguarda de património cultural insubstituível em todo o mundo, com um programa bianual designado World Monuments Watch que a cada edição seleciona 25 lugares em diferentes geografias com notória relevância histórico-artística.