O Rui de Azevedo Teixeira, que foi Comando na Guerra de África e professor universitário, sempre alinhou na perfeição o eixo da Guerra e da Literatura, como o demonstrou em O Elogio da Dureza, obra-prima em que a realidade ultrapassa a ficção. Conhecemo-nos há mais de uma década, quando publicou a sua biografia de Jaime Neves, que muito apreciei. Sem surpresa, tornámo-nos amigos e, pela sua mão e com muita honra, fui convidado para a sua «comandita». A Guerra e a Literatura não se resumem ao plano teórico, como o Rui, que as viveu, sabe melhor que ninguém. São coisas de homens, que seguindo a tradição se reúnem para trocar histórias vividas. Afinal, foi assim que nasceu a História. Nestes almoços há encontros aparentemente improváveis, mas que fazem todo o sentido. Há homens à esquerda e à direita, de diferentes gerações, há antigos combatentes e jornalistas, há professores, editores e tradutores, há até alguns em que tais etiquetas se acumulam.
Foi num destes encontros que o Rui me apresentou ao Carlos Matos Gomes e a aproximação foi cautelosa, mas sempre respeitosa. Até que um dia, saía eu da saudosa Livraria Campos Trindade, e vi que o Matos Gomes, como eu o tratava, subia a Rua do Alecrim, com o seu passo largo e demorado. Cumprimentámo-nos e disse-lhe de onde vinha, ele respondeu na mesma moeda, ia para a editora rever as provas do seu último romance. Começámos então uma conversa sobre autores e leituras, em que nasceu uma cumplicidade. Eram os livros, fossem eles velhos ou por nascer, que nos uniam.
Não eram as suas incursões na História militar ou os seus ensaios políticos que me interessavam, mas a ficção, que publicava como Carlos Vale Ferraz. Primeiro, o seu Nó Cego, que o Rui de Azevedo Teixeira tão bem classificou como um «clássico moderno», mas também Os Lobos Não Usam Coleira, cujo título assentava como uma luva ao autor e que seria levado com mestria ao cinema pelo António-Pedro Vasconcelos, como Os Imortais.
Nunca as nossas posições políticas, diametralmente opostas, impediram as tantas e boas conversas que tivemos, sobre livros e não só. Esta afirmação parece desnecessária e até absurda, mas os tempos obscuros em que vivemos obrigam-me a deixá-lo bem claro.
Para os que insistem em ver no Matos Gomes apenas um «capitão de Abril» ou um «homem de esquerda», recordo as corajosas posições que tomou há vinte anos, aquando dos motins em França.
No final de 2005, assinando com o seu pseudónimo literário, não alinhava com razões de ordem social para estes conflitos e escrevia no Diário de Notícias que «o problema não é a falta, em França e em muitos dos mais ricos países europeus, de subsídios a empregos e a cursos de formação, não é a falta de habitações sociais, ginásios e centros culturais, não é a falta de polícias de proximidade e de animadores que procuram integrar jovens das segundas gerações de magrebinos, designados por beur, e africanos à deriva, nem se resolve, por isso, atirando-lhe dinheiro e bons conselhos. O problema é muito mais complexo e profundo que a conversão dos jovens delinquentes em respeitadores cidadãos e a sua resolução ultrapassa em muito o âmbito das operações de reposição da ordem, isto porque o problema é de identidade e de referências». Sobre a tão apregoada integração, era categórico: «A crença de que é possível a integração, de que é possível a uma comunidade esquecer ou abdicar da sua identidade histórica, genética e cultural para assumir uma outra, surge assim como uma mentira permanente, uma grosseira hipocrisia exposta e sentida tanto pelos estrangeiros como pelos autóctones.» Pensando no futuro, concluía que «não é possível constituir novas realidades nacionais e europeias com aqueles que rejeitam as suas matrizes culturais, o seu ordenamento jurídico, os seus valores, a sua visão do mundo. Com aqueles que são estrangeiros ao processo histórico que fez da Europa aquilo que ela é. Com aqueles que procuram, mesmo inconscientemente, uma vingança histórica contra o que os europeus lhes fizeram nos últimos mil anos, das cruzadas à escravatura e ao colonialismo. Para que a convivência seja possível e pacífica devemos saber que para ter as portas abertas temos de manter levantadas as paredes que as sustentam.»
Ler estas linhas na era do chamado wokismo é a demonstração de que o Matos Gomes era, de facto, um espírito livre.
A última vez que o vi foi em Outubro do ano passado, num belo almoço, em que ficámos lado a lado, num grupo heterodoxo de amigos que, pese embora tantas diferenças, defendem Portugal.
Como lhe escrevi na dedicatória que lhe fiz quando ofereci o meu primeiro livro ao Matos Gomes, aqui lhe deixo um abraço de quem está «do outro lado da barricada, mas que às vezes é o mesmo».