Tom Whalen. Moscas num olho de vidro

Proust dizia que o terrível engano do amor era de nos fazer brincar com uma mulher não do mundo exterior, mas com uma boneca dentro do nosso cérebro. As bonecas de Tom Whalen fazem-nos ansiar pela sua graça sem afectos, temer a sua estranheza, adorar o que nos desfaz; odiar o que nos é familiar.

Tom Whalen. Moscas num olho de vidro

Tempos houve em que me escondia no roupeiro, em que fugia do espaço sem janelas das coisas acabadas. Mergulhava num mundo sonoro, fantasmagórico, ouvia-me respirar, um barulho do estômago assustava-me como o guincho de uma porta. O escuro acabava por se ajustar como uma máscara, nessa altura ficava estranhamente encostado ao que pensava. A maioria das vezes levava um boneco de que gostava e tolerava mais tempo o desaparecimento. O boneco era um fio que me ajudava a percorrer o labirinto, ao encontro da fábula, sempre incompleta, que esperava ser narrada. Que fábula se escondia nesse boneco? Que suplica me fizera animá-lo, acolhê-lo, fazer dele um espelho do que desconhecia? Que intimidade lhe dava, que dele me fazia intimo? Chegava como um órfão. Iria educá-lo, domesticá-lo, submetê-lo ao simbólico onde habitava. No entanto, não vinha despovoado para o meu quarto. Carregava um concerto de coisas que inundariam a casa. A infância e a boneco têm duas faces, símbolos de felicidade segura e de terrível solidão. “Quem desconhece a angustiosa espera diante do palco sombrio do próprio coração?” pergunta Rilke na quarta elegia. Na mesma elegia dirá preferir o corpo cheio do boneco a outras máscaras ocas. O boneco que permanece mudo junto dos enigmas, tem o lastro da alteridade, um outro que exige que lhe demos vida, que sejamos generosos e criativos, ao contrário do anjo que nos pede confiança e receptividade. Essas duas forças, de acordo com o poeta, sustentam a infância na sua abissalidade.

Com o correr do tempo larguei os bonecos, apesar dos anjos, uma vez por outra, me continuarem a importunar. Recentemente, tropecei num pequenino livro de quarenta páginas chamado “Bonecas” das Edições Cutelo, escrito por Tom Whalen, de quem nunca tinha ouvido falar, tenho andado a pensar em bonecas desde que lhe peguei. São trinta e nove quadros de uma escrita oracular, capaz de expor o gesto íntimo numa formulação cirúrgica, de nos mostrar o abjecto com uma inventividade maliciosa. Cada quadro parece talhado em redor de um enigma, com uma construção de um ritmo inabalável, leva-nos pela mão até cairmos num poço de pulsões que ignorávamos. Mostra-nos o embaraço com a desenvoltura da ironia, o monstruoso com o repentino golpe infantil. A forma, por vezes, lembra a concisão e o rapto das parábolas de Kafka.

Quando tentei saber mais alguma coisa sobre este, para mim, misterioso escritor, descobri que dedicou muito do seu tempo à tradução de Robert Walser. De súbito, revelou-se um aroma maior do seu secreto bouquet. Quem como Walser, a quem Sebald chamou “o clarividente do pequeno”, sabia que o mais simples dos objectos esconde mistérios por desvendar. Quem, numa articulação rápida entre a ebulição e a subjugação, nos leva da descrição de um simples par de calças à descoberta de um tremor inesperado: “Quem ama, estima e admira as pernas das mulheres, como eu, não pode, por conseguinte, senão concordar com esta moda e, de facto, eu concordo com ela, embora seja também muito favorável às saias. Uma saia é nobre, inspiradora e tem um carácter misterioso. As calças são incomparavelmente mais indelicadas e, até certo ponto, inundam a alma masculina com um arrepio. Por outro lado, porque é que o horror não nos há-de agarrar ligeiramente a nós, modernos? Parece-me que precisamos muito de ser acordados, de ser sacudidos.”

Tom Whalen agarrou numa boneca e levou o mais longe que conseguiu a necessidade de sacudir, de assombrar, o espírito adormecido dos modernos. A descoberta das suas traduções de Walser não me resolveu nenhum enigma, apenas me permitiu ter mais um ponto de orientação, o seu livro não é um pastiche, nem de Walser, nem de Kafka, é um conjunto de textos assombrosos, que como todos os grandes textos não nascem apenas do vazio da sua intuição. Acredito, no entanto, que esta pequena série de textos, pode ter nascido de uma resposta ao poema “a boneca” de Walser. Poema onde quem fala é a boneca, esse ser que por estar submetido à mais extrema materialidade é embutido da mais subtil espectralidade. O poema começa com uma súplica: “Por favor, olhem para mim, não me acham digna do vosso olhar?” Este rogo parece dirigir-se ao adulto, aquele que deixou de a conseguir ouvir, para o qual ela caiu num silêncio similar ao dos peixes. “A minha voz nunca foi ouvida”. Whalen não a faz falar-nos directamente, como Walser, apenas pontualmente, será um narrador quem nos levará para esse outro mundo, tão próximo que desliza para o secreto, onde o desejo irrompe de uma quietude similar à dos mortos. “A boneca é a prova de tudo o que não somos – estamos vivos, ela não; morremos, ela não.”

A boneca nunca é um simples brinquedo. “Ela é um corpo de mulher que foi conformado e concebido para ser uma companheira da sua dona, quer dizer, para ser vista como sujeito.” diz o filólogo Maurizio Bettini, no seu estudo sobre a boneca de madeira romana do séc.II. “uma forma sintética de descrever o modo como a força divina anima a matéria… uma imagem pronta a tornar-se uma pessoa, mais próxima do reino do ser do que do reino dos sinais.” A sua aparente passividade, a sua ilusória inocência são meros embustes. A boneca é um ser de transição, simultaneamente paradisíaca e infernal. Quando a tocamos são sempre os nossos próprios corpos e mentes que estão em risco. Submetida a um desmembramento curioso ou a um toque imaginário, é uma armadilha, porque, como diz Bettini, a tratamos como um sujeito. O seu corpo tem o traço da repulsa e da atração, próximo do cadáver, como escreve Rilke num fragmento que não entrou nas Elegias: “Se houver um cadáver no quarto –/ cobre-o,/ para que não se torne na horrível/ boneca da (infantil) casa/ para que ele não brinque com ela/ erguendo-a, contra…” O angustiante não é o que vem de longe, mas o que está próximo, o íntimo. A boneca é perigosa porque habita essa fronteira, um lugar fora de nós, que nos permite sair de nós mesmos, que nos pede para lhe darmos um sopro da nossa imaginação. Mas, se a animamos, logo nos força a entregarmo-nos, e se nos entregamos, entramos no risco de descobrir o que não queremos. Junto dela a dúvida não nos dá descanso, estamos entre o espanto e o desprezo. Julgamos poder agir sem consequências, sem o espartilho da sociedade, será verdade? A boneca não está fora nem dentro, porque se a abandonarmos ao exterior ainda não começou a ser uma boneca, e quando lhe emprestamos um pouco de vida para onde foi? No seu mundo temos de abandonar qualquer princípio de segurança e enveredar pelos caminhos íngremes do risco ou da aposta. 

Tom Whalen leva-nos por um labirinto. Por riscos e apostas de uma inventividade que se atreve a percorrer o que temos por abjecto e intocável. Fala-nos a partir do mundo das bonecas. Nesse mundo, quem é que sabe o que é permitido ou não, o que é sagrado ou não, o que é violento ou não, o que é verdade ou não? Mas, mais do que percorrer aquilo que parece ser o avesso do nosso mundo, e o avesso e o direito entrançam-se de um modo inseparável, abre buracos nas concepções estanques e mortificadas com que concebemos a realidade. Um mundo desmembrado num interior e num exterior, fechados na ilusão de completude, vivemos naquela que Sloterdijk chama de ficção dominante: “a fantasia de uma esfera íntima contendo apenas um habitante, o próprio indivíduo. Este trompe-l’oeil da realidade é o vector de todas as situações individualistas. Assegura a individualidade de cada pessoa numa bolha colocada em rede.”

A boneca vem escancarar a fragilidade deste tromp-l’oeil, ela está no espaço do entre, mantém-nos num vaivém entre o objeto e o eu, num vaivém do Aqui para o Lá que expõe um vazio fundamental no interior do indivíduo. Se nos lembrarmos, no pequeno texto de Kleist sobre o teatro das marionetas, o bailarino fica fascinado por ser apenas num fio que o mecanismo se concentra, um mecanismo capaz de produzir os mais belos movimentos, porque comanda o centro de gravidade de cada figura. Para alcançar tal perfeição rítmica, era necessário que o operador se transferisse para o interior da marionete. E essa operação representava “algo muito misterioso”, pois a linha descrita pelo fio de comando nada mais era que “o caminho da alma do bailarino”. Se o corpo humano jamais alcançava essa graça, era porque a alma dos bailarinos raramente ocupava o seu centro de gravidade. A ocupação desse centro só era possível num estado de inocência que nos estava vedado desde o pecado original. Para Kleist só nos resta reencontrá-la como alteridade – ou seja, quando nos transferimos para um objeto fora de nós, num acto de criação. Robert Walser talvez nos esteja a dizer o mesmo quando, no fim do poema “a boneca”, escreve: Para uma criança, no entanto,/ estou absolutamente viva,/ como, bebo, passeio,/ deito-me na cama como uma pessoa real /e encanto-os com a minha conversa;/ e tudo isto é apenas imaginado,/ e pode facilmente acrescentar esta/ e aquela coisa imaginária./ Oh, os mais pequenos são muito/ mais espertos do que os grandes pensam./ São eles que sabem como viver.”