A Procuradoria Geral da República (PGR) abriu uma averiguação preventiva que tem como alvo Pedro Nuno Santos. A confirmação foi feita ao Nascer do SOL pela própria PGR em resposta a um conjunto de questões colocadas sobre a entrada de uma denúncia anónima a envolver o líder do Partido Socialista. «Na sequência da receção de denúncias e tendo em vista a recolha de elementos, o Ministério Público determinou a abertura de averiguação preventiva, a qual corre termos no Departamento central de Investigação e Ação Penal», respondeu a PGR.
Ao contrário do que foi noticiado, o Nascer do SOL sabe que o objeto da denúncia está relacionado com a empresa de calçado do pai do líder socialista, a Tecmacal, que celebrou contratos públicos com o Estado enquanto Pedro Nuno Santos estava no Governo. A empresa está sediada em São João da Madeira e tem filiais na Benedita e em Felgueiras.
Em 2022, quando Pedro Nuno Santos era titular de um cargo público, chegou a ser suscitada uma hipotética incompatibilidade pelo facto de deter uma quota na empresa. O na altura ministro das Infraestruturas e da Habitação defendeu-se com um parecer de 2019. que concluiu pela inexistência de incompatibilidades. Já em novembro de 2023, desfez-se da participação «simbólica» – como lhe chamou – de 0,5% que tinha na empresa do pai.
Contactado pelo Nascer do SOL, Pedro Nuno Santos estranhou o tema da denúncia e garantiu que ia colocar online o documento da cedência de quota. «Foi um ato normal de um sócio que tinha 0,5% – o filho – que cede ao sócio maioritário – o pai. não há nada mais do que isso» , afirmou.
A denúncia anónima relacionada com a Tecmacal é uma de duas que chegaram na última semana à PGR. A primeira foi imediatamente arquivada uma vez que se tratava apenas de uma listagem de perguntas sobre a aquisição de património do líder socialista, levantando dúvidas sobre a sua capacidade financeira para os adquirir e lançando a suspeita de enriquecimento ilícito.
Numa conferência de imprensa dada esta quarta-feira a partir da sede do PS, no Largo do Rato em Lisboa, Pedro Nuno Santos começou por dizer que foi com «surpresa» que soube da investigação em curso e que estranha «a coincidência e o momento da divulgação da notícia».
Em março, o Ministério Público tinha já aberto uma averiguação preventiva para analisar dados relacionados com a Spinumviva, a empresa familiar do primeiro-ministro, Luís Montenegro.
A averiguação preventiva tem como objetivo avaliar se existem elementos para avançar com a abertura de um inquérito. Ao contrário do inquérito criminal, a averiguação é um procedimento de natureza administra, que não recorre a meios intrusivos – como escutas ou quebra de sigilo bancário ou fiscal, que só poderiam ser autorizados por um juiz.
Depois de analisados os elementos, só há duas saídas: o arquivamento ou a abertura de um inquérito crime.
Chuva de denúncias anónimas em campanha
A Procuradoria-Geral da República tem desde 2010 um canal de denúncias aberto a queixas de qualquer cidadão e, embora não exista qualquer análise sobre as denúncias anónimas que dão entrada em época de eleições e respetiva credibilidade, magistrados do MP da área penal de várias comarcas do país contactados pelo Nascer do SOL reconhecem que os momentos de eleições, legislativas ou autárquicas, são sempre conjunturas que concentram grande volume de denúncias.
Uma fonte ligada ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) chega mesmo a comparar: «Quanto chegam as autárquicas, as denúncias anónimas disparam. Nas legislativas, o fenómeno repete-se, mas sem a expressão das primeiras».
Com traquejo nestas manobras, este magistrado com 40 anos de serviço, alguns dos quais passados naquele departamento da PGR, recorda que, nessas alturas, os magistrados tomam as devidas cautelas: «Em época de campanha eleitoral, se surgiam denúncias anónimas que visavam um titular de cargo público ou líderes partidários, isso era logo um fator de pouca credibilidade. Por norma, tinha muito cuidado até em instaurar averiguações preventivas. Porque sabemos que a denúncia anónima, por vezes, é o expediente dos cobardes. É uma tentativa de usar a Justiça para outros fins que não os lícitos. Da minha experiência, foram raras as denúncias que nasceram nesses períodos que resultassem numa acusação».
Para o magistrado há casos sem pés nem cabeça que nem merecem que se abra uma averiguação preventiva. Outros dão os seus passos, recolhem-se elementos para a fundamentar e aferir a credibilidade, para se poder decidir a abertura ou não de um inquérito: «Há uma equipa no DCIAP que faz a triagem da substância da denúncia. Para recolher dados e depois aferir da sua credibilidade. Outras eram objeto de análise interna. Nem se chamava averiguação preventiva. Se tivesse algum tipo de fundamento, primeiro fazia-se a análise, mas sem pressa porque o que mais nos faltava era andar a reboque das eleições».
Maioria das queixas são arquivadas
Fora do DCIAP, nas 23 comarcas judiciais, as denúncias anónimas têm mais expressão na altura de eleições autárquicas. Outro magistrado ouvido pelo nosso jornal adianta, por outro lado, que a percentagem de arquivamento das denúncias anónimas «é grande». Porquê? «Porque são vagas, não têm documentos que concretizem o seu teor, nem identificam testemunhas dos crimes em causa. Muitas parecem mesmo conversa de café. Vê-se logo que há ali disputas partidárias e tenta-se através de processos judiciais fazer mossa nos adversários». Quanto aos crimes em causa, «80% a 90% são de alegada corrupção».
Regra geral, não se fazem averiguações preventivas (ou pré-inquéritos) nas comarcas, onde as denúncias recebidas dão origem a abertura de inquérito. As averiguações preventivas são mais usadas nos Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP) regionais e no DCIAP.
As denúncias ao MP chegam por duas formas: ou pelo portal de denúncias, que é gerido pela PGR e pelo DCIAP, ou por carta. Habitualmente, é o DCIAP, que tem competência a nível nacional, que recebe denúncias em relação a governantes, enquanto as comarcas recebem mais sobre autarcas.
Quando a denúncia tem motivações políticas, o seu autor, depois da participação anónima ao MP, entrega-a quase sempre à imprensa para tentar dar-lhe projeção pública.
Anonimato facilita denúncias
Como em tudo, porém, há sempre o reverso da medalha e ninguém diaboliza o papel das denúncias anónimas, pois é nelas que se encontra o berço de muitos processos de corrupção. Um dos magistrados ouvidos pelo Nascer do SOL não tem dúvidas de que, nos casos de corrupção, é um dos crimes em que se percebe a razão do anonimato: «Fazer frente a um funcionário é difícil. Porque é a luta contra o poder. As pessoas têm receio. Mas, mesmo assim, são poucas as denúncias por corrupção que ‘têm pernas para andar’ e dão origem a inquérito».
Outro procurador da República, hoje à frente de um dos DIAP do país, sublinha: «Há vários tipos de denúncias anónimas. Há umas que identificam muito bem as coisas (as contas e como foram feitos os negócios) e trazem muita documentação anexada. Obviamente que damos mais valor às denúncias que vêm identificadas. Depois, há as que servem só para enxovalhar».
Para a PGR, está reservado o pior papel neste cenário: prestar ou não esclarecimentos sobre as denúncias recebidas pelo MP. «Em relação a averiguações preventivas, a PGR só presta esclarecimentos em casos muito específicos, quando há uma especial relevância pública», explica um magistrado com experiência nesta matéria. É o que tem vindo a ser feito em relação a Luís Montenegro e o caso da sua empresa familiar, a Spinumviva.
O Nascer do SOL enviou uma série de questões ao gabinete de imprensa da PGR, para saber, por exemplo, se foram recebidas denúncias este ano sobre os atuais líderes dos partidos com representação parlamentar – mas não obteve resposta até ao final do dia de ontem.
Só 14% das denúncias dão lugar a inquérito
Em 2024, o número de denúncias recebidas através da aplicação “Corrupção: Denuncie aqui”, foi de 1.832, das quais 806 foram apresentadas por denunciantes identificados. A análise das denúncias apresentadas através da aplicação deu lugar à instauração de 248 inquéritos e cinco averiguações preventivas, tendo sido remetidas 1134 denúncias a outras entidades e arquivadas 1033.
Em 2023, houve 1.910, das quais 824 foram apresentadas por denunciantes identificados (43,1%). Foi o ano em que houve mais denúncias desde 2019, ano em que houve 1.966 denúncias.
Recorde-se que em 2023, a corrupção tinha subido quase 30% e havia 121 pessoas detidas por suspeitas de criminalidade económico- financeira, a maioria por branqueamento, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna. Além disso, o ano ficou também marcado por uma sucessão de escândalos e investigações judiciais que culminaram na demissão do primeiro-ministro António Costa a 7 de novembro.
Outro dado que salta à vista é que, do total das denúncias, há uma percentagem ínfima que é convertida em inquérito, o que permite concluir que a maioria não tem fundamento, nem indícios suficientes. Em 2023, o número de inquéritos instaurados com base em denúncias apresentadas na aplicação correspondeu a apenas 14,0% das denúncias (12,2% em 2021, 9,6% em 2022).
Quanto ao número de denunciantes anónimos este supera os denunciantes identificados em qualquer um dos anos analisados.
Em relação ao objeto ou visado da denúncia, em 2023, a grande maioria (45,2%) pertence ao setor privado, seguido do setor público, com 33,2%. Segue-se o setor desportivo, com 7,2%, depois o comércio internacional e, por último, setores não especificados.
