Foi um desses escritores insaciáveis que quiseram devorar o mundo e recriá-lo em desafio à miséria terrena, um dos grandes apaixonados e cultores da arte do romance, tendo provado a sua força redentora por diversas vezes, acabando por ser agraciado em 2010 com o Nobel da Literatura. Era um génio e um canalha, alguém que viveu em perpétuo conflito consigo e com os seus fantasmas, tendo-se servido disso para ir da intimidade ao político, revigorando o efeito de uma épica da denúncia política no mais terrível dos séculos
Era o mais novo do ‘boom’, em alguns aspectos o mais brioso, também o mais traiçoeiro, aquele que mais desconfiança tinha em relação ao talento se o objectivo era produzir uma obra literária que ombreasse com as dos mestres do romance do século XIX. Teve essa intuição muito cedo, talvez devido às suas limitações, e soube fazer disso a sua estratégia, reconhecendo que o verdadeiro elemento ameaçador da grande ficção lhe vem da ânsia de devorar a realidade para se lhe substituir. Mario Vargas Llosa tinha uma ambição desmedida, e nunca se esqueceu como tudo começara. “Cada escritor é antes de tudo um leitor, e tornar-se escritor é apenas uma forma diferente de continuar a ler. Eu dei-me conta dessa íntima relação entre a leitura e a escrita naqueles anos [a infância] porque – e estou seguro a este respeito – as primeiras coisas que escrevi, ou, melhor, que rabisquei, foram alterações ou extensões das aventuras que estava a ler, fosse porque fui tomado pela súbita tristeza de as ver chegar ao seu termo antes de me ver saciado fosse porque queria que tivessem tomado outro rumo, e dava por mim a discordar dos autores quanto às decisões que assumiram. Estas correcções e aditamentos foram, segundo as entendo, manifestações precoces da vocação que me levaria, anos mais tarde, a todas essas histórias, romances, ensaios e peças de teatro que escrevi. E, por isso, não sinto o menor desconforto, antes pelo contrário, na hora de reconhecer que, na minha vocação e nas minhas ficções, aquilo que sou é um flagrante parasita literário.”
Se nos adiantarmos uns anos, deixarmos de lado a primeira década da sua vida, essa espécie de idílio que ele viveu na enorme residência da família materna em Cochabamba, na Bolívia, isto depois de o pai ter abandonado a mãe quando estava grávida de cinco meses, se quisermos saber como em setembro de 1963 se deu a momentosa estreia literária (descontando um pequeno livro de contos, Los Jefes, que em 1958 lhe valeu o seu primeiro prémio literário em Espanha) de um jovem escritor peruano, que nascera em Arequipa, no sul do país, 27 anos antes, veríamos como ele causou desde logo uma grande perturbação com A Cidade e os Cães, um romance desabrido na denúncia feroz que fazia do sistema militar peruano, em que exorcizava todas as humilhações e maus tratos a que foi sujeito nos seus anos de estudante na principal academia militar de Lima. Como nos lembra Alberto Manguel num ensaio do tempo em que ainda produzia alguma crítica em vez de se limitar a reciclar-se (incluído no livro No Bosque do Espelho, ed. Dom Quixote), “o livro inflamou de tal modo as autoridades que, na tradição dos fundadores da cidade, ordenaram um auto-de-fé e queimaram dúzias de exemplares no pátio da academia”. Vargas Llosa mereceu a maior honra que se conferia por aqueles anos e em países onde a literatura abria atalhos para fixar aspectos decisivos da sensibilidade histórica, e alguns generais vieram acusá-lo de ser pago pelo governo do Equador para humilhar o exército peruano. Estava lançada a primeira pedra e acertou num espelho, e o jovem escritor teve desde logo essa noção do poder da escrita na recomposição do reflexo e do retrato que se faria dali em diante. Manguel assinala como o romance foi acolhido além-fronteiras como um clássico moderno, e num momento em que havia uma grande expectativa em relação ao que este género podia fazer, em que se esperava que os escritores servissem essa forma de “justiça selvagem” que recupera o sentido e a emoção diante de actos abomináveis, Vargas Llosa provou que tinha uma arma capaz de fazer alastrar esse elemento de consciência que, se não repara as injustiças, pode submeter certas figuras infames à publicidade dos seus actos. A escrita era de uma precisão que descreve a literatura como uma urgência, sem excessivas marcas de estilo, sem o desejo de esmagar o leitor com a proeza da frase, a prosa de Vargas Llosa o que tinha era uma firmeza de tal ordem que o leitor lhe ficava submetido. Manguel nota que este vigor se adequava ao tom de “um protesto contagioso”, mas sem dirigir o leitor, abrindo margem para um registo “sensatamente ambíguo, tanto no estilo como na estrutura, através da alternância das vozes dos seus personagens e da recusa do autor em deixar que a história passasse para o género de aventuras com suspense do qual parecia aproximar-se”. No fundo, a força da sua escrita estava na densidade de uma composição que autorizava o leitor a divagar no interior da trama, a colocar as suas próprias hipóteses e suposições, sem se sentir trancado num único ponto de vista. Isto só é possível num género definido pela premeditação, pela capacidade de montar um enredo plural nos seus propósitos. Se Vargas Llosa sempre insistiu que na raiz de tudo o que escreveu estavam as suas vivências pessoais, o certo é que ele era conhecido por investigar os seus temas de forma obsessiva, e em vez de um desses espontaneísta, caçadores das tempestades da inspiração, preferia confiar na memória, naquilo que esta retinha até criar bicho, e era aí essa “singular e misteriosa teimosia” que formava no seu espírito certas imagens que ele depois ia colher, sendo estas o verdadeiro estímulo da fantasia, o seu ponto de partida para essa construção imaginária a que ele depois se dedicava com a competência de um engenheiro no seu cálculo de estruturas. Nesse aspecto, a sua principal influência foi William Faulkner. “Sem o magnífico inebriamento que senti ao descobrir a riqueza de matizes, alusões, perspectivas, harmonias e ambiguidades da sua prosa, e a forma absolutamente original como organizava as suas histórias, nunca teria ousado reorganizar a cronologia narrativa ‘real’ no meu próprio trabalho, ou apresentar um episódio a partir de diferentes pontos de vista e níveis de realidade, como fiz em A Cidade e os Cães, A Conversa n’A Catedral, e nos meus restantes romances, nem teria escrito um livro como A Casa Verde, no qual as palavras são tão palpáveis, e muitas vezes até mais palpáveis e do que as próprias personagens, adquirindo uma presença que faz delas elementos decisivos da história, além de que a construção, no que toca ao revezar de perspectivas, de narradores e o próprio fluxo temporal tudo isso parte dessa complexidade labiríntica”, escreve ele num dos seus ensaios.”
Este segundo romance (A Casa Verde), não apenas confirmou Vargas Llosa como um desses autores que subitamente era impreterível que “os gringos” tivessem debaixo de olho, na verdade, já estava ali algo que superava a perspectiva de uma perturbação regional, porque este escritor não estava interessado em afluir no plano das tendências, mas meter-se na grande conversa com os gigantes literários que não abriam mão dos avanços em termos da forma narrativa, esse género em que a vida pode ser traficada enquanto uma forma de realidade subtil e impalpável, mas que causa um impressão de tal modo profunda no leitor que o afecta, levando-o a sentir prazer, a experimentar a paleta das emoções, a ponto de sentir que a ficção consegue movê-lo mais, causar-lhe mais sofrimento e êxtase do que a realidade. No fundo, é o verdeiro processo de investigação da nossa memória. E esse segundo romance atirava-se de cabeça nesse jogo, e se tresanda a Faulkner nos seus processos de digressão e combinação de planos, as diversas histórias que ali se entretecem e desenvolvem ao longo dos anos, consegue gerar no leitor um efeito de transe invulgar, pelo colorido e pelo favor da beatitude erótica que nos oferece, com a trama a atingir o seu expoente num bordel nos arredores da provinciana cidade peruana de Piura. Porque Vargas Llosa não é sendo tão engenhoso nem tão radical como o seu mestre, consegue deslumbrar-nos depois pela forma como emprega aquela complicada técnica de deslocação no tempo que torna o passado e o presente parte de uma única consciência simultânea, enquanto nos conduz num ambiente bem mais cativante, com ilustrações e cenas que deixam um rastro incandescente. Assim, não se trata apenas de seduzir o juízo, mas de excitar as pulsões mais básicas, elevando tudo num fluxo contínuo de realidades simultâneas e que consegue assim superar aquela formalidade irritante dos flashbacks.
Deste modo, enquanto romancista Vargas Llosa nunca se esqueceu do miúdo que trepou a árvore mais alta que se ofereceu à sua imaginação nos livros de aventuras que começou por ler e que lhe impregnaram a memória, uma vez que tudo isso lhe serviu de defesa a partir do momento em que o pai reentrou na sua vida. Ele admitiria em várias entrevistas que o mundo da ficção foi um grande refúgio onde se podia isolar, defendendo-se contra a solidão, a frustração e o medo. Na sua primeira infância, vivia com os Llosa, a imensa família do lado materno, com um passado aristocrático, uma espécie de enclave onde cresceu rodeado de mulheres, das tias e primas, que mais tarde viriam a aparecer nos seus romances, e que criou nele o sentido de pertença a um lugar caloroso, vibrante. Fora-lhe dito que o pai tinha morrido, e dele só tinha uma fotografia de um homem cheio de pinta envergando a farda da marinha, assim este começou por ser um personagem do seu imaginário, um homem aventuroso, o que até certo correspondia ao perfil de Ernesto J. Vargas, mas quando este regressou, o filho ficaria a conhecer o seu lado temperamental e violento. Nesses 10 anos, Ernesto voltara a casar, tinha tido outros dois filhos, e regressou para salvar a honra da mulher que abandonara, reconciliando-se com ela, levando-a e ao filho para Lima e inscrevendo o rapaz numa sucessão de escolas cada vez mais severas para tentar arrancar dele a influência de ter crescido entre tantas mulheres.
Segundo o relato do escritor no livro de memórias Como Peixe na Água, Ernesto era um tirano doméstico que, nas suas crises de ressentimento por ser de uma classe inferior à da mulher, lhe dava pancada e ao filho, “enquanto me avisava que havia de me pôr na ordem e fazer de mim um homem, e que nunca permitiria que um filho seu fosse o mariconço que os Llosa tinham criado”. Ernesto culpava a família da mulher por alimentarem os devaneios do miúdo que tinha o hábito de dizer que quando crescesse eia ser toureiro e poeta. Assim, Mario perdeu o paraíso em Piura e caiu num inferno, sendo que os livros se tornaram o seu refúgio nessa amarga evasão do pai. Ironicamente, a sanha que Ernesto tinha contra as manias dele acabaram por acirrar a sua precoce vocação literária: “Escrever poemas era outra das formas secretas de resistir ao meu pai, pois sabia o quanto o irritava o facto de eu escrever versos, algo que ele associava à excentricidade, à boémia e ao que mais o horrorizava: ser maricas.” Mesmo anos mais tarde, quando Mario se tornou um adulto um escritor famoso, as tentativas de se reaproximarem eram um fracasso, mas o certo é que o complexo que o pai instigou nele deixou as marcas na sua ficção, e de algum modo também nas suas opiniões políticas. Nos seus romances, como assinalou John Updike, a ameaça tinha “um rosto diferente, mais nitidamente masculino, do que a morbidez em decomposição de Gabriel García Marquez ou as épicas lutas de facas de Jorge Luis Borges”. Updike assinala ainda como o recurso repetido de Vargas Llosa a mundos terrivelmente masculinos pode ser lido como um sinal da influência e uma homenagem ao pai temido que não queria que o seu filho fosse um maricas.
Naqueles anos, Vargas Llosa aprendeu como o romance é o único género artístico que se oferece a quem sente um “colossal apetite” de contar tudo, acolhendo a vida inteira nesse rapto que a ficção permite. Por outro lado, a ficção marca também uma forma de dissidência face à realidade, tendo-se definido a si mesmo e aos seus colegas de ofício como “descontentes profissionais, agitadores conscientes ou inconscientes da sociedade, rebeldes com uma causa, os irredimíveis revolucionários do nosso mundo”. Nada disto depois cola com a imagem do escritor que, com base em algumas noções bastante pedestres que retirou da leitura de Friedrich Hayek e Karl Popper dizia ter visto a luz, renegando inteiramente o seu passado de “intelectual de esquerda” e transformando-se noutro prosélito da fé neoliberal, a ponto de a respeito de Margaret Thatcher ter confessado uma “admiração sem reservas, uma reverência pouco menos que filial e que nunca experimentei em relação a nenhum outro dirigente político vivo”. Vargas Llosa chegou a mudar-se para Londres e, quando a Dama de Ferro deixou o poder, em 1990, no mesmo ano em que ele perdeu as eleições presidenciais no Peru, enviou-lhe um ramo de flores com esta mensagem: “Minha senhora, não há palavras suficientes no dicionário para vos agradecer o que fez pela causa da liberdade”. Mas voltando ao romancista, mesmo este nos últimos anos tinha já uma visão um pouco menos exaltada dos poderes da ficção, reconhecendo que a literatura apenas consegue “pacificar momentaneamente a insatisfação com a vida, sendo que o que importa é sustentar esse milagroso intervalo, este provisional suspensão das leis da vida que oferece a ilusão literária, que parece transportar-nos para fora da cronologia e da história, e tornar-nos cidadãos de uma nação que não está submetida aos rigores temporais”. De qualquer modo, se tantas vezes assumiu posições bastante cínicas, quando falava da literatura parecia ser recordado dos seus ideais e aspirações mais profundas: “Mais ainda, talvez, do que a necessidade de manter a continuidade da cultura e enriquecer a linguagem, a principal contribuição da literatura para o progresso humano é recordar-nos que o mundo está mal feito, que aqueles que defendem o contrário – por exemplo, os poderes dominantes – estão a mentir-nos, e que o mundo poderia ser muito melhor do que é, estar bem mais próximo dos mundos que a nossa imaginação e linguagem são capazes de conceber.”
Depois de concluir a licenciatura em Letras, e de se ter iniciado na tarimba jornalística pela mão do pai, que trabalhava para uma agência de informação internacional e que o levou pela primeira vez a uma redacção, com 22 anos Vargas Llosa deixaria Lima e rumaria à Europa, tendo feito um doutoramento na Universidade Complutense de Madrid, que conclui em 1971 com uma dissertação intitulada García Márquez: História de um Deicídio. Trata-se de uma dissertação em que fica patente a enorme admiração que nutria pelo seu companheiro de geração, numa amizade que acabou em 1976 com um murro que deixou o outro com um olho negro, supostamente por ter feito algum avanço sexual sobre a mulher de Vargas Llosa. De qualquer modo, nem isso o impediu de manter o seu apreço pelo génio literário de García Márquez, e esse é um dos traços mais apreciáveis do seu carácter, o ter sabido distinguir o que dizia respeito à vida e as suas posições quanto à arte, tendo provado uma generosidade estupenda ao longo das décadas ao servir-se das suas crónicas no El País e em tantas outras publicações para fazer apreciações críticas de escrupulosa atenção às obras de escritores mais e menos conhecidos, provando o rigor das suas intuições e desenvolvendo esse trabalho de divulgação e de reflexão sobre a arte do romance numa prosa de afável sedução, e tentando ao mesmo tempo intervir intelectualmente e confrontar tantos dos aspectos essenciais da cultura contemporânea.
O crítico Efraín Kristal distinguiria na obra de Vargas Llosa três períodos entre as décadas de 1960 e 1990, das suas origens socialistas, em que os seus romances traçavam diagnósticos da sociedade capitalista na América Latina, seguindo-se o período liberal após a sua ruptura com a esquerda nos anos 1970, quando o seu tópico de eleição passaram a ser os perigos do fanatismo e das formas de despotismo orçadas a partir de derivas utópicas, para depois acirrar a sua posição de forma algo cínica depois de ter perdido as eleições para a presidência peruana em 1990, um período em que parece ter-se desenvencilhado da sua réstia de optimismo e da crença no processo político. Desde então, maquilhou a desolação das suas ambições pessoais vinculando-se à herança dos liberais europeus do século XVIII, segundo os quais a liberdade pode ser definida como a soberania do indivíduo para decidir sobre o seu destino sem estar sujeito a formas de coacção ou a pressões, baseando as suas escolhas naquilo que a sua inteligência e a sua vontade determinam. Seria aquilo a que mais tarde Isaiah Berlin chamou “liberdade negativa”, ou seja, a capacidade de se ver livre da interferência e da coerção quando o indivíduo pensa, se exprime e toma as suas decisões. No entender de Vargas Llosa esta utopia abastardada e que consagra o espírito individualista nasce de uma profunda desconfiança da autoridade, dos excessos do poder, e de todas acções perpetradas com o fito de se ver reforçado.
O certo é que na sua denúncia das formas de autoritarismo, Vargas Llosa se permitiu todo o tipo de contorções e acabou por ferir o ideário conservador e ser favorável às formas mais degradantes de extremismo, saindo do outro lado no que toca à escala ideológica, animando aquele estafado tropo do furor dos convertidos. Assim, e embora continuasse a descrever os seus instintos como os de um liberal, as posições que tomou nos últimos anos seguiram um padrão cada vez mais reaccionário. Em 2018, celebrou a prisão de Lula no Brasil com base num processo por corrupção fabulosamente selectivo, e no ano seguinte exultou com o golpe de direita que depôs Evo Morales na Bolívia. Desde então, vinha manifestando o seu apoio a candidatos de extrema-direita como José Antonio Kast, no Chile, e Jair Bolsonaro, e, em 2023, colocou-se ao lado de uma série de antigos líderes e operadores políticos de direita que apoiaram Javier Milei na Argentina. Mas a prova da sua capacidade de sujeitar a realidade a uma distorsão de acordo com as suas mágoas pessoais foi o apoio que manifestou durante as eleições peruanas de 2021, quando descreveu Keiko Fujimori como o menor dos males em comparação com o candidato da esquerda radical Pedro Castillo, que ao sentir a pressão do congresso, tentou um golpe de Estado a 7 de dezembro de 2022, anunciando a dissolução do parlamento e convocando uma Assembleia Constituinte. Ao assumir esta posição, Vargas Llosa denunciou-se, e provou aquilo que muitos dos seus críticos e até admiradores sempre lhe apontaram, uma certa frivolidade das suas posições políticas, tendo-se colocado contra o candidato de quem estaria mais próximo apenas pelo ressentimento de ter perdido as eleições presidenciais para o seu pai, tendo passado as décadas seguintes a ajustar contas com os seus concidadãos, denunciando o autoritarismo do seu rival, e por terem dado cabo das suas aspirações políticas. A esta luz, ganha uma outra leitura a sua defesa do papel do romancista, tendo sempre montado o argumento de que as ficções nascem para dar resposta ao desejo daqueles que esperam ver realizada a sua ambição de viverem muitas vidas, apesar de disporem de uma só. Vargas Llosa deixou claro que a sua compulsão fantasista era precisamente aquilo que o tornava inapto para ser levado a sério enquanto um intelectual comprometido com certas causas, pois o seu talento na verdade era como o de um chibo, alguém que compreendia por dentro as tentações da volubilidade, do fanatismo que se apoia no desespero social para satisfazer os seus desejos de poder. No fundo, ele escolheu a única condição que lhe permitiria engrandecer-se e ser enaltecido por essa ganância existencial, e de algum modo ele soube corresponder à loucura quixotesca, revelando uma fome de irrealidade que nalgum momento parecia confundir-se com um desejo de transformação política e social. O seu poder de observação, a sua lente sabia incidir sobre a realidade e destacar detalhes de forma a compor personagens e cenários de forma sugestiva, mas depois o seu apetite pela ficção correspondia a um desejo de infundir o ânimo aventuroso que colheu nos livros e nesses horizontes que não estavam sujeitos a leis nem limitações, e através dos quais a sua imaginação se escapulia, levando ao limite a sua vertigem egotista, essa cólera dos pequenos deuses que ambicionam criar o mundo em resposta aos seus ímpetos e caprichos. Ora, o apelo da sua ficção nascia da sua condição parasitária, tendo produzido os seus romances numa lógica de contrabando entre os dois lados da fronteira, traficando elementos de um para o outro, e recriando-os, num quadro que abrangia cholos (como são referidos depreciativamente os índios mestiços do Peru), homens de negócios, aristocratas, proxenetas, revolucionários, estrangeiros, condenados, políticos e artistas numa espécie de fábula sórdida em que a fantasia se deixa tingir da crueldade da vida para se dar margem para uma recriação afectiva poderosa. A sua escrita sobre o Peru como sobre as restantes nações latino-americanas conseguia ser amarga, cruenta, nos seus elementos realistas, e depois aliviava e vingava-se através dos elementos da vida secreta dos seus protagonistas. Há algo de inconstante na sua ficção, na forma como se apropria dos efeitos do realismo literário, como vai camuflando os seus propósitos de um compromisso de denúncia, tendo sido durante a sua juventude um grande admirador de Sarte, mas vindo depois a colar-se à exemplaridade moral de Camus, ao mesmo tempo que se apropriava da sua metáfora para descrever a condição desses romancistas que parecem ansiosos por se substituírem a Deus, e que na sua ficção procedem a um deicídio de forma a ocuparem o seu lugar. Assim, Vargas Llosa define esses narradores com uma ambição “totalizante”, que declaram a sua rivalidade com Deus nos seus romances. Este selecto cânone inclui escritores como García Márquez, Faulkner, Joyce, Flaubert, Balzac, Laurence Sterne e Cervantes, ou seja, os que se servem do género para confessar o absurdo e a petulância do seu génio, procurando engolir o mundo, substituindo-o e em lugar de qualquer fatalismo, imporem a faculdade e ânimo dos seus espíritos. A ambição partilhada com estes autores fica patente num romance como Conversa n’A Catedral, que tem como epígrafe uma frase de Balzac da qual Vargas Llosa parecia servir-se como uma bússola: “Há que ter vasculhado em toda a vida social para se ser um verdadeiro romancista, visto que o romance é a história privada das nações.”
É indubitável que o peruano provou um talento invulgar na digestão muito particular das estratégias narrativas dos seus predecessores, tendo composto tramas ofegantes onde, mais que o pulso estilístico, é a capacidade de revezar intrigas que traz um folego e uma densidade que capturam o leitor, sendo muito competente nas descrições, mas sobretudo sustentando o seu apelo à base de instintos e paixões violentas, misturando humor e subtilíssimos efeitos paródicos, sem prescindir nunca de uma carga de crueldade e de um erotismo que eram o sal da sua ficção. Se cativou tantos leitores desde cedo, mesmo entre a tão extraordinária galeria de escritores que ficou associada àquilo que os hábeis agentes de divulgação cultural promoveram como o ‘boom’ da literatura latino-americana, aquilo que o distingue não foi propriamente o talento, mas sobretudo o esforço, o lado deliberado e a sofisticação da estrutura dos seus romances, e foi também isso o que fez dele o escritor com a mais prodigiosa lista de obras marcantes. Sendo nove anos mais novo do que É nove anos mais novo do que García Márquez, que com Cem Anos de Solidão viria a estabelecer o valor padrão do realismo mágico, Vargas Llosa não se deixou encurralar num regime particular e num certo exotismo estético, mas colheu a lição de Flaubert que iniciara o romance moderno ao estabelecer o narrador “objectivo” que, tal como Deus, em grande medida, deve à invisibilidade e à recusa em pregar ao leitor uma moral, esse sabor característico que associamos à realidade, que, na verdade, só é suportável, porque suspende a tentação de a todo o momento nos atazanar com comentários ou juízos sobre o que quer que façamos. Assim, Vargas Llosa cortava com esse regime do romance como forma de ilustrar as teses do autor, e virava costas à literatura que, desde Zola, impunha ao romance um desígnio social de qualquer ordem, submetendo-lhe os critérios de ordem estética. Neste sentido, parecia-lhe que o género estava ainda endividado face ao jornalismo, pugnando por uma justiça que frustrava o verdadeiro alcance da ficção. “Qual é a diferença entre a ficção e um artigo de jornal ou um livro de histórias? Não são todos compostos por palavras? Não apresentam no tempo artificial do conto a imensa torrente que é o tempo real?”, questionava ele num artigo escrito em 1989. “A minha resposta é que são sistemas opostos para aproximar a realidade. Enquanto o romance se rebela e transgride a vida, os outros géneros só podem ser seus escravos.” Assim, Vargas Llosa foi o benjamim e de certo modo veio desde cedo trair e denunciar toda aquela exuberância ou efervescência, reforçando o teor das explorações que haviam elevado aquele género ao registo supremo da invenção literária, remetendo para as lições dos mestres do século XIX, e deu a lume dois primeiros romances – A Cidade e os Cães e A casa verde – que tiveram um efeito eletrizante na literatura latino-americana, quando García Márquez ainda procurava o estilo que o faria mergulhar naquilo a que chamou o “frenesim da fama”. Se o estilo nunca foi o forte de Vargas Llosa, ao fim de algumas páginas ninguém podia já negar-lhe o domínio da técnica narrativa, e a sua maestria na forma como misturava as técnicas do romance folhetinesco de apelo social, histórico e realista, combinando por vezes elementos do romance policial, mas depois elevando o teor da intriga pela complexidade da sua arquitectura, que se apoiava em vários pontos, se desdobrava em múltiplas figuras e cenas. Sem ser o mais original, sem ter uma prosa deslumbrante, os seus romances acabavam por ser os mais desafiadores para o próprio género, enriquecendo-o, e se diferentes leitores e críticos diferem entre si quanto às suas verdadeiras obras-primas, A Guerra do Fim do Mundo e a A Festa do Chibo são indubitavelmente aqueles que melhor ilustram essa capacidade de aprofundar a grande herança romanesca do século XIX. No primeiro temos um sumptuoso relato da Guerra de Canudos, a revolta popular que teve lugar no final do século XIX numa remota localidade no Nordeste brasileiro, sendo um movimento de tipo messiânico em que uma comunidade de cristãos encarnou um tal grau de fervor utópico e quis estabelecer uma sociedade à parte, um desafio que levou o governo a sentir necessidade de o travar da forma mais implacável, enviando um destacamento militar para “repor a ordem”. O segundo leva-nos ao ano 1961, quando a capital Dominicana se chamava Ciudad Trujillo, e dá-nos uma opulenta construção coral, mergulhando nas trevas da ditadura do general que nunca transpirava, esse que era apelidado de Chibo, mostrando as transformações e o relevo que assumem nas vidas íntimas essas tensões que apenas nos vão sendo superficialmente relatadas nos jornais. Nesta obra emblemática, Vargas Llosa disseca o culto do caudilho com poder absoluto que contagiou a América Latina durante grande parte do século XX. Trujillo preenche todos os requisitos, pelo ambiente de terror que inspirou, não só pela perseguição que moveu através dos seus esquadrões paramilitares, pelo ambiente de terror ligado aos desaparecimentos e à tortura, mas o livro mostra bem a forma como o caudilho infecta a psique dos seus compatriotas, colonizando o pensamento e gerando uma sensação de vergonha, esse elemento tão pernicioso numa cultura machista, em que as vítimas da opressão em parte se sentem culpadas pelo temor que o caudilho nelas inspira. Esse ser que parece ter olhos e ouvidos em toda a parte, é como um pai que impõe a sua tirania enchendo o filho de complexos e receios. Por aqui se percebe como a sombra de Ernesto J. Vargas pairou sempre sobre o filho.
Estas duas obras fundamentais provam o vigor imorredoiro do género romanesco, sobretudo numa época marcada pela erosão do sentido da verdade e da própria compreensão dos acontecimentos a que atribuímos valor noticioso, sendo o campo do informação o palco de uma guerra de proporções inauditas, e isto não retira importância, mas reafirma precisamente o valor destes relatos capazes de suspender esse efeito centrifugador, restituindo um eixo ao próprio tempo, o qual já só pode ser entendido como um elemento de composição. E isto prova a influência que Vargas Llosa teve na ficção, e em particular na reavaliação do romance realista como instrumento de interpretação dos mais conturbados e desafiadores episódios históricos, devendo ser-lhe reconhecida a força das sua composições, a persuasão dessas narrativas que exprimem o compromisso de cobrir tudo, do íntimo ao político, das aventuras épicas aos retratos psicológicos, sendo tão hábil na sua “estratégia de polir as formas até ao limite para que a beleza da literatura seja a consequência e não o fim” (Luis Alemany).
Assim, e recorrendo aos poderes da invenção, da mentira, é possível dizer a verdade sem recorrer ao escândalo, sem forçar generalizações grotescas, mas ilustrando nos pormenores esses aspectos que nos fazem sentir aquilo que outros viveram. Por isso, no entender de Vargas Llosa “os verdadeiros artistas e criadores constituem sempre contra-governos, governos nas sombras a partir das quais vão impugnando as certezas, as retóricas, as ficções ou verdades oficiais e recordando, no que pintam, compõem, interpretam ou fabulam que, contrariamente ao que sustém o poder, o mundo vai muito mal, e que a vida real estará sempre abaixo dos sonhos e dos desejos humanos”. Isto permite-nos entender como Vargas Llosa podia ser um perfeito imbecil em tantos dos seus posicionamentos políticos, ajudando a produzir essas formas retóricas que servem para ofuscar verdades atrozes e nauseabundas, destruindo o pacto entre consciências que se norteiam pelo mais básico índice da decência moral, e, no entanto, quando se punha a trabalhar, quando em vez de peças de propaganda se comprometia com o género que estudou tão apaixonadamente, logo o rigor deste lhe impunha uma compreensão muito mais sóbria dos fenómenos, das personagens, que só ganhavam vida porque o romancista estava de tal modo comprometido com elas que calava os seus preconceitos.