Perante esta nova era, António Mendonça defende que a Europa deveria querer constituir-se como potência, com interesses próprios para o que se está a desenhar. E aí Portugal deveria ter um papel importante a cumprir.
Estamos perante um novo cenário macroeconómico e há já quem fale numa nova era…
O mundo sempre viveu com crises económicas e há ciclos de vária duração. Há os tradicionais de sete a dez anos, mas há de 12, 20, 50 anos. Provavelmente estaremos a atravessar uma fase desses grandes ciclos e tem a ver com o facto de as sociedades serem organismos vivos dinâmicos.
Mas esses ciclos são acompanhados por impactos, nomeadamente económicos…
Não significa que não haja impactos nestas mudanças e, às vezes, até duram dezenas de anos. São impactos de várias naturezas e são transformações que ocorrem na sociedade até haver um ajustamento às novas condições que podem durar mais ou menos tempo.
A imposição de tarifas por parte dos Estados Unidos pressupõe mudanças.
Todo o mundo sofre com as consequências do que se passa nos Estados Unidos. Os EUA ainda são a potência mais importante do ponto de vista económico político militar e são hegemónicos à escala global. Pelo menos, têm sido até agora. Essa hegemonia tem-se afirmado e tem-se renovado. Neste momento, estamos a atravessar uma situação, mas não se sabe exatamente o que vai acontecer. Ou seja, não sabemos se a hegemonia americana se vai desenvolver, se vai afirmar-se sobre novos moldes ou se vamos ver surgir uma era nova. O que estamos a atravessar tem várias dimensões importantes que devem ser tidas em conta.
Quais?
Uma de dimensão mais ampla, mais profunda, que é saber se estamos ou não a atravessar uma época de profundas alterações na própria arquitetura institucional do mundo. Nesse caso, teríamos de recuar até ao ao final da Segunda Guerra Mundial, já que a própria economia global nasce aí: as instituições, os grandes objetivos e a própria arquitetura política da Europa e do mundo. Provavelmente estamos a atravessar uma fase de pôr em causa essa grande arquitetura. Há uma segunda dimensão que é dada pelo comportamento da potência hegemónica que são os Estados Unidos, que se afirmaram a partir da Segunda Guerra Mundial. O dólar impôs-se e foi a moeda injetada na circulação internacional por necessidade. Os países estavam em reconstrução – Europa, Japão e outros – e necessitavam de liquidez. Os Estados Unidos o que fizeram foi fornecer dólares por vários canais, nomeadamente através de investimentos diretos das empresas americanas no exterior. O Plano Marshall foi outro grande veículo de oferta de liquidez internacional que levou à afirmação do dólar. A partir de certa altura, a balança de pagamentos americana começou a ter problemas e a registar défices, em resultado dos próprios investimentos americanos no exterior. Os europeus viam que estavam a ser credores dos americanos, pegaram nos dólares e enviaram para os Estados Unidos para reconstituir as reservas de ouro. Mas a certa altura as reservas de ouro americanas começam a baixar e o Pentágono, que é um verdadeiro Ministério da Economia dos Estados Unidos, chamou a atenção do Governo americano para dizer que as reservas de ouro estavam abaixo do limiar de segurança. Uma crise que se começa a afirmar no final dos anos 60. Os próprios europeus são chamados a colaborar, pondo dólares no mercado para segurar o seu preço. E, ao contrário do que se dizia, os Estados Unidos não perderam a sua hegemonia. Saíram revigorados e deram origem a outra arquitetura na economia mundial.
E a Europa ficou para trás?
Curiosamente, essa crise do sistema monetário internacional teve impactos muito positivos na Europa, ao considerar que não podíamos estar continuamente a depender dos humores dos americanos. E acabaram por acelerar o processo que levou à criação do euro – é a partir daí, no final dos anos 70, que se começa a desenhar os projetos de União Económica e Monetária. Aliás, um dos grandes objetivos era a independência da Europa relativamente à moeda americana. Agora falamos das tarifas mas, naquela altura, Richard Nixon decretou uma taxa de cerca de 10% sobre as importações, o que tem muito a ver com o que se está a passar atualmente. Os Estados Unidos conseguiram, nessa crise, recompor a sua hegemonia sobre novos moldes. É certo que a Europa não deixou de fazer progressos e que se traduziu, em 1999, na criação do euro, o que mostra que a crise foi importante para o processo de autonomização da Europa relativamente aos Estados Unidos. Mas também os líderes que existiam na Europa, nessa altura, não tinham a mesma capacidade que os atuais líderes. Também é nos anos 70 que começa, curiosamente, a ligação dos EUA com a China na tentativa de romper as relações da China com a União Soviética. Isto são coisas que, às vezes, as pessoas não se lembram. A China foi-se afirmando nos anos 70/80, mas sobretudo nos anos 90, o que culmina com a adesão da China à Organização Mundial de Comércio, em 2001. Começámos a assistir a um processo de integração da China na economia mundial e o que se está a passar com a China atualmente deve-se, em parte, aos americanos. A China vai-se afirmando, vai respondendo a exigências, particularmente dos Estados Unidos, e começa a abrir o país aos investimentos americanos e os americanos vão para lá em força para investir em empresas. Isto levou progressivamente ao desenvolvimento da economia chinesa a vários níveis. Os chineses começam a fazer uma exportação de jovens de estudantes para as universidades americanas. Formaram-se centenas de milhares de pessoas nas engenharias e em todos aqueles setores fundamentais, aprenderam também o que é a organização capitalista das empresas e começaram a crescer paulatinamente e começaram a exportar.
Um crescimento que continua a ser visível aos dias de hoje…
Os chineses têm a capacidade de ir fazendo as coisas de forma programada e coerente, até pela sua própria estrutura política. Não estão sujeitos aos ciclos políticos das democracias liberais. Primeiro começaram a exportar produtos baratos, progressivamente foram melhorando o padrão e a qualidade das suas exportações. O que aconteceu? De certa maneira, produziu-se um fenómeno idêntico ao que tinha acontecido no período pós-guerra, até aos anos 70, mas desta vez com a China como protagonista. Os Estados Unidos aceitaram perfeitamente esse papel da China e de outros países da Ásia, o que mostra que a economia americana e a chinesa estavam profundamente integradas. Essa integração foi aprofundada nos anos 90 e acelerou-se com a adesão da China à Organização Mundial do Comércio. Aliás, é extremamente interessante ver as tendências de crescimento da China que a partir dessa adesão disparam. Eventualmente qual foi a falha? Se calhar nunca pensaram que a China e outros países asiáticos pudessem ter o desenvolvimento que acabaram por ter.
E com um peso cada vez maior…
Segundo o relatório Draghi, os Estados Unidos passaram de 21%, nos anos 90, em termos de peso na economia mundial, para cerca de 27%. A Europa perdeu. Na década de 90 tinha um peso igual ou ligeiramente superior aos Estados Unidos e, neste momento, está com cerca de 17%, igual à China. Mas se introduzirmos as paridades do poder de compra, a China já está à frente da Europa. Além disso, introduz-se outro tipo de problemas: a China está, neste momento, na vanguarda tecnológica a vários níveis, até do ponto de vista espacial. Por outro lado, tem um peso económico brutal em setores tradicionais como, por exemplo, o automóvel, etc. E se juntarmos os 17% da economia mundial da China com a Índia, que está com 4%, e Ásia-Pacífico, com 11%, percebemos que esta parte do globo já está a ultrapassar não só a Europa como os Estados Unidos. Está a haver uma alteração de forças radical e os Estados Unidos seguramente não vão querer perder a sua hegemonia na economia global e, portanto, estão a trabalhar nisso desde há muito tempo, a partir do momento em que detetaram essa situação.
Essas tarifas avançariam independentemente de Trump?
Provavelmente haverá uma coerência estratégica que transcende os republicanos ou Trump – provavelmente até antes de Obama – para a existência de transformações e para a necessidade de acautelar os Estados Unidos. Os EUA estão a atuar. E aí entra a terceira dimensão, que é Trump, o protagonista que está à frente do Governo americano, que tem uma visão que rompe um bocado com aquilo que era a diplomacia e que eram os cânones do relacionamento internacional. Às vezes, confesso que tenho dúvidas de saber em que medida é que assenta numa estratégia verdadeira com coerência ou pura e simplesmente é um conjunto de coisas desgarradas. Temos de estar atentos aos desenvolvimentos para perceber onde é que Trump quer chegar e como quer chegar lá. Para mim ainda não é claro, é algo que ainda se está a desenvolver.
E a Europa?
Qual é a minha expectativa? Que de certa maneira atue como atuou na crise de Bretton Woods, que foi um processo em que os Estados Unidos conseguiram recuperar a sua hegemonia, mas a Europa também se libertou um pouco com o aprofundamento da integração com a União Económica e Monetária. O euro, hoje, independentemente das críticas que possamos fazer relativamente à forma como foi criado, etc., e a posteriori, independentemente de todos os problemas que aconteceram, considero que é um ativo importante do conjunto dos países europeus. O que é que aconteceu com a Europa? É que neste processo todo penso que a Europa não soube reagir e, de certa maneira, pôs de lado um pouco os planos de aprofundamento da integração para apostar no alargamento rápido a não sei quantos países, aos países do centro e do leste da Europa que estavam sob a órbita soviética. Hoje questiono se isso foi uma decisão acertada, ou seja, se deveria ter havido mais cuidado em vez de ir logo absorver aquilo tudo, se não poderia ter havido uma preocupação com o aprofundamento da integração económica e, designadamente, avançar mais, criar mecanismos de coordenação política mais aprofundados, para ter mais autonomia e para criar identidade.
E sobre a ameaça de tarifas…
Sim, mas é uma guerra comercial que não vai prejudicar todos de forma simétrica. Estas tarifas sempre existiram. Atualmente o nível tarifas estava relativamente baixo. Por exemplo, Portugal foi um país que sofreu um choque com a integração dos países do Leste da Europa, países com mão-de-obra mais qualificada, que estavam mais próximos da Alemanha e parte significativa daquilo que eventualmente poderia ter vindo para Portugal foi deslocado para o Leste europeu. Tivemos choques assimétricos e essa assimetria na Europa aumentou, assim como aumentou a identidade da Europa que não evoluiu da mesma maneira. Neste momento, a Europa tem carência dessa identidade.
Um alerta feito pelo relatório Draghi…
Isso foi reconhecido por um dos principais responsáveis daquilo que foi a União Europeia, particularmente do euro, nos últimos tempos. Acho que daqui a uns anos vamos olhar para Draghi como sendo o homem que salvou o euro. Entrou em 2011 para a presidência do Banco Central Europeu e a situação mudou radicalmente com a introdução da política monetária não convencional e foi isso que permitiu que a Europa não se desmembrasse.
Também é certo que a Europa se desenvolve em várias velocidades. Portugal é um desses casos.
Portugal agora até está com boa velocidade comparativamente à média europeia, está a crescer com taxas muito superiores. A União Europeia está praticamente estagnada. No entanto, temos de perceber como é que nos queremos posicionar na Europa no contexto da nova política industrial que está a ser desenhada. E nós temos muito a dar à Europa porque somos os grandes arquitetos da economia global atual. Foram os portugueses que integraram geograficamente o mundo, que desenvolveram relações com outras partes do globo, nomeadamente com a Ásia, em particular. Temos excelentes relações históricas com a China, com África, com América Latina, etc. Não há nenhuma razão para que não possamos ter um papel ativo neste domínio e até introduzir isso na Europa. Por outro lado, estamos na Península Ibérica, Portugal e Espanha deveriam ter preocupações em delinear estratégias comuns relativamente à Europa. A Europa, na minha opinião, não devia estar a aceitar esta hegemonia feita pelo eixo franco-alemão. Macron quer-se afirmar como grande líder europeu e é ele que vai discutir com os americanos, por exemplo. Ursula von der Leyen não se sabe onde anda, de vez em quando faz um discurso ou apresenta um casaco novo. E começa a haver essa tentativa, que acho má, de líderes deste ou daquele país se afirmarem. Para já, o chanceler alemão tem estado calado porque está num processo interno de constituição de Governo. A própria Itália está a querer assumir-se. Isso pode ser bom mas também pode ser mau, na medida em que pode minar um pouco os esforços europeus de constituir um bloco. A Europa, neste momento, deveria preocupar-se em responder à situação atual e deveria querer constituir-se como potência, com interesses próprios para o que se está a desenhar.
A Europa como um todo?
Como um todo não sei. A Europa, em si, não é uma potência global, porque não tem um interesse comum, é um aglomerado de países. Mas deveria pensar nestes termos: ‘como é que nos vamos posicionar no mundo? Queremos ser um agente importante nesta reconfiguração das relações económicas, políticas, geoeconómicas e geopolíticas internacionais? Queremos ter um papel ativo e determinante juntamente com os EUA, com a China, seja com quem for, mas participar neste jogo global?’. A Europa não pode olhar apenas para dentro de si própria. Tem de se preocupar com a afirmação no mundo e ter autonomia.
‘Estamos com 30 anos de atraso em matéria de infraestruturas’
Como vê o comportamento da economia nacional?O problema é que não olhamos para a estrutura da economia. Não quer dizer que não tenha havido mudanças qualitativas importantes. Aliás, o nosso padrão de comércio alterou-se positivamente. Temos vários indicadores positivos, mas são dispersos, não obedecem a uma coerência global que permita à economia como um todo funcionar melhor. Temos de dar respostas à questão estrutural da economia, nomeadamente repensar a industrialização. Temos também de dar resposta à integração dos jovens e tentar arranjar manobras internas de fixação de mão-de-obra qualificada. Temos, por outro lado, de dar maior sustentabilidade e coerência à nossa economia como um todo, nomeadamente como vão evoluir as nossas relações com o exterior, designadamente em termos de mercados de exportação, etc.
E em vez de pensarmos no que queremos, andamos a debater a carga fiscal, entre outros temas…
Essa discussão é profundamente básica. Faz sentido repensar os impostos, mas o sistema no seu conjunto. Tem de haver uma coerência sistémica e não passa por dar resposta às empresas, às famílias, a este ou àquele setor porque há interações: as empresas dependem das famílias, nem que seja para comprar, as famílias dependem das empresas para arranjar emprego e o Estado depende de tudo. E medidas sobre baixar o IRS, o IRC, o IVA Zero não têm coerência, mas o erro pode ser meu.
É natural por estarmos em campanha?
Exatamente, mas o drama é esse. Talvez seja o problema das democracias liberais, em que se dá prioridade ao curto prazo e perde-se a capacidade de pensar a longo prazo. Faltam grandes projetos e quando olhamos para Portugal nos últimos 20, 30 anos, pensamos ‘quais foram os grandes projetos que alavancaram a economia?’
A Autoeuropa…
Exatamente. Foi o único e foi nos anos 80.
Não deveríamos ter usado mais a verba do PRR para esses projetos?
Podia e devia. Mas até as dificuldades em concretizar o PRR poderão estar relacionadas com a estratégia que foi adotada. E não é só em Portugal, é um pouco por toda a Europa. É a ideia de regar, é ir a todas e pessoalmente tenho sérias dúvidas que o financiamento deva ser assim. Devia ser mais dirigido para projetos estratégicos que sejam estruturantes, que criem sustentabilidade e que permitam criar flexibilidade para a economia e o financiamento deveria dar resposta a estas necessidades, mas deve-se, em parte, à nossa incapacidade mas também à própria definição das regras ao nível europeu, além do perigo da burocracia e da corrupção. Corrupção haverá sempre, mas é importante criar mecanismos que permitam conter ou eliminar as manifestações de corrupção.
Foi ministro das Infraestruturas. Como vê projetos como o TGV ou o novo aeroporto que teimam em aparecer?
Tão depressa se pensa que vai avançar como fica a marcar passo. Estamos com 30 anos de atraso ou mais em matéria de infraestruturas e neste quadro de definição estratégica da nossa economia, a questão das infraestruturas é fundamental. Recentemente fiz uma viagem a Estrasburgo, regressei via Porto e como as ligações de comboio eram muito fracas vim para Lisboa de autocarro. Já viu a irracionalidade disso? Como é que não há entre as duas principais cidades do país ligações a toda a hora, rápidas e eficazes? Isto é uma manifestação de subdesenvolvimento. Como também é inadmissível que não haja um comboio que ligue as duas cidades da Península Ibérica: Madrid e Lisboa. Sei que, em parte, há medos que haja essa ligação rápida entre Lisboa e Madrid face ao receio de centralizar as relações económicas no centro de Madrid e que a prazo venhamos a perder impacto. Mas julgo que esses medos não se justificam. Também era importante ver o que queremos do ponto de vista marítimo, da especialização dos portos porque Portugal está bem posicionado em termos geográficos. Não está ligado ao Oriente facilmente, mas está ligado à América do Norte, à América do Sul e a África com quem temos relações privilegiadas. Aliás, não vamos fazer nada novo em relação ao que a Alemanha está a fazer que chegou atualmente à conclusão que as infraestruturas estão um desastre e já definiu um programa de 500 mil milhões para investir na modernização das infraestruturas. E os alemães dão-se ao luxo de fazer coisas que antes proibiam aos outros. A Alemanha está com problemas e já não importa o défice nem a dívida. Vamos embora para o regabofe.