‘Saco azul’ na embaixada em Angola

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Durante uma década os embaixadores portugueses em Luanda receberam milhares de euros pelo arrendamento ilegal de apartamentos do edifício da representação diplomática a delegados da AICEP, estagiários e outros funcionários. A Procuradoria-Geral da República abriu um inquérito-crime e o Tribunal de Contas está a investigar eventuais responsabilidades financeiras. Os diplomatas João Caetano da Silva e Pedro Pessoa e Costa já foram considerados culpados em processos disciplinares.

Um caso, duas investigações a decorrer: a Procuradoria-Geral da República abriu um inquérito para apurar responsabilidades criminais e no Tribunal de Contas decorre um processo para apurar responsabilidades financeiras na gestão da embaixada de Portugal em Angola por parte de dois ex-embaixadores em Luanda, entre os anos de 2015 e 2022. Em causa está aquilo que foi classificado pela Inspeção-Geral Diplomática e Consular (IGDC) do Ministério dos Negócios Estrangeiros como uma «contabilidade paralela»: a utilização pelos diplomatas João Caetano da Silva e Pedro Pessoa e Costa de milhares de euros obtidos com o aluguer ilícito de apartamentos do edifício da embaixada a delegados da AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, mas também a estagiários, para pagamento de despesas pessoais e representação do Estado à margem das regras contabilísticas.

A existência desse ‘saco azul’ foi denunciada pelo atual embaixador de Portugal em Luanda, Francisco Alegre Duarte, que ao chegar a Angola foi confrontado com a situação ilegal que se prolongava há anos. Alegre Duarte pediu então uma inspeção às contas da embaixada. A investigação ouviu inúmeros funcionários da representação diplomática, atuais e ex-diplomatas em Luanda bem como delegados da AICEP, que confirmaram que a prática vinha, pelo menos desde 2012, quando a embaixada era liderada por João da Câmara, falecido em 2023.

Apenas os seus sucessores, João Caetano da Silva e Pedro Pessoa e Costa, foram alvo de processos disciplinares que culminaram na aplicação de penas de suspensão de 20 dias (suspensas durante um ano). A leveza das penas aplicada pelo ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, foi justificada pelos instrutores do processo – colegas dos dois embaixadores – com a carreira imaculada dos diplomatas, com o facto de ambos terem confessado saber dos pagamentos e nada ter feito para os terminarem mas, sobretudo, porque a inspeção não comprovou, sem sombra de dúvida, o recebimento de dinheiro ou o seu uso em benefício próprio devido à inexistência de suporte documental. Isto apesar de considerarem que tanto João Caetano da Silva e Pedro Pessoa e Costa sabiam que era «ilícito» receber as respetivas quantias.

Contactado pelo Nascer do SOL, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paul Rangel, não se quis pronunciar sobre o caso, uma vez que «os atos e decisões decorreram durante o mandato do anterior executivo». No entanto, o seu gabinete adiantou que o processo foi remetido à Procuradoria-Geral da República e ao Tribunal de Contas e que, por isso, «decorre na esfera estritamente judicial». «A única atuação decorrida durante o mandato deste governo foi o envio de elementos adicionais pedidos pela PGR». O Tribunal de Contas também confirmou ao Nascer do SOL estar a decorrer um processo para apuramento de responsabilidades financeiras.

Uma prática antiga

De acordo com os relatórios finais dos processos disciplinares instaurados a João Caetano da Silva e a Pedro Pessoa e Costa, a que o Nascer do SOL teve acesso, a situação foi detetada quando Francisco Alegre Duarte chegou a Luanda no início de 2022. O novo embaixador foi informado pelo pessoal da representação diplomática que todos os meses o delegado da AICEP, Luís Fontoura, entregava 450 euros em notas para pagamento da renda do aluguer de um apartamento no edifício da embaixada. Dinheiro que era guardado numa «caixa» e que não entrava nas contas da representação diplomática.

Francisco Alegre Duarte ordenou imediatamente que o pagamento cessasse e pediu a Lisboa o envio de uma equipa para inspecionar as contas da embaixada. A viagem da inspetora Patrícia Ferreira, acompanhada pela secretária Isabel Santos e o perito Rui Sande, acabou por ser adiada para setembro de 2022 devido à visita de Marcelo Rebelo de Sousa a Luanda para o funeral de José Eduardo dos Santos e à instabilidade que se seguiu às eleições presidenciais angolanas.

Uma vez no terreno, os inspetores concluíram que o aluguer ilícito dos apartamentos remontava, pelo menos, a 2012. O embaixador de Portugal em Luanda era então João da Câmara, diretor do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa entre 2005 e 2008 e que antes de chegar a Angola representou Portugal no Zimbabué, seguindo depois para a Índia antes de terminar a carreira no exterior no Canadá. Viria a falecer em 2023.

Por razões que se desconhecem, o diplomata começou a arrendar parte dos apartamentos disponíveis na embaixada em Luanda. Comprado pelo Estado português em 1985, o edifício de vários pisos inclui, além dos primeiros pisos com gabinetes de trabalho, 15 apartamentos nos pisos superiores que foram sempre ocupados por elementos da embaixada, sem qualquer custo. Existe, inclusive, o caso de um funcionário que vive no edifício desde a sua compra e a quem nunca foi descontado qualquer valor na remuneração pela respetiva ocupação.

Quando João Caetano da Silva chegou a Luanda em 2015, os pagamentos já decorriam. O dinheiro era guardado numa «caixa» por uma assistente técnica. O delegado da AICEP em Angola desde 2013, pagava então 500 dólares por mês pelo arrendamento de um apartamento T2 duplex no 5.º piso da embaixada. Informado da situação, o embaixador manteve-a. O funcionário deixou o cargo em 2016 mas nesse período entregou, em dinheiro, um total de 22 mil dólares, 4.500 durante a liderança de João Caetano da Silva, sem que lhe tenha sido passado qualquer recibo pelos pagamentos – tal não era possível.

Um segundo trabalhador pagou, entre 2014 e julho de 2019, 300 euros mensais para «custos associados ao alojamento». Só no mandato de João Caetano da Silva (2015-2020), o funcionário do Estado entregou um total de 13.500 euros, sem que tenha sido emitido qualquer recibo.

Outro caso identificado pelos inspetores foi o de uma estagiária que esteve em Luanda ao abrigo do Programa de Estágios da Administração Pública (PEPAC-MNE) . Durante um ano, entre setembro de 2015 e agosto de 2016, ficou alojada num quarto com casa de banho chamado «apartamento de trânsito» da embaixada, usado normalmente para estadias curtas de quem visita o país. Quando o estágio terminou, pediu para ficar na embaixada até dezembro, o que foi autorizado por João Caetano da Silva. Nesse período entregou 1000 euros em dinheiro.

Já em 2019, quando foi nomeado delegado da AICEP em Luanda, Luís Fontoura instalou-se num dos apartamentos duplex da embaixada. A 23 de setembro desse ano, João Caetano da Silva falou-lhe no pagamento da renda. Segundo os documentos da IGDC, o funcionário da AICEP disse que pagaria a quantia pedida, 450 euros, desde que fosse emitida uma fatura – e manteve a posição mesmo depois de ser informado que a embaixada não podia passar recibos porque não podia legalmente gerar receita. Depois de ameaçado pelo embaixador de que teria de sair se não pagasse, acabou por reportar a Lisboa o pedido de pagamento. Em consequência, a AICEP aumentou-lhe a remuneração em 450 euros a título de «abono de representação» para suportar o custo mensal do apartamento. Para se proteger, antes de entregar o dinheiro em mão na embaixada, todos os meses enviava um email a uma assistente técnica a dizer que iria entregar os valores pedidos. Ao todo pagou, pelo menos 13.950 euros, 2700 euros no consulado de Caetano da Silva.

ilegalidade flagrante

De acordo com a IGDC, ao longo dos anos, o então embaixador em Luanda levantou várias vezes envelopes com dinheiro que usou para fazer «benfeitorias nos imóveis e bens móveis do Estado português, aquisições de bens para a residência e pagamento de remunerações de empregadas eventuais», «sabendo que a sua conduta não era permitida por lei».

Na sua defesa, João Caetano da Silva – que não respondeu ao contacto do Nascer do SOL – confessou «que tinha conhecimento dos pagamentos, em numerário» pelo uso das parcelas residenciais do edifício da embaixada, mas acrescentou que tal «era do conhecimento geral e constituía uma prática reiterada anterior à sua chegada» e que «limitou-se a dar-lhe continuidade». Admitiu também que usou «as quantias recebidas para pagar trabalhadores eventuais da residência e fazer face a despesas de funcionamento da embaixada». Como algumas compras foram feitas ‘no mercado informal’ não há recibos e por isso não foi possível demonstrar o uso dado ao dinheiro. Mostrou-se também arrependido por não ter cessado essa prática ilegal.

Segundo várias fontes diplomáticas contactadas pelo Nascer do SOL esta prática é altamente irregular. «As embaixadas têm orçamentos de funcionamento e os embaixadores recebem um abono de representação para gastar em almoços e jantares e pagar a funcionários eventuais», explica um diplomata com larga experiência. «Receber dinheiro de uma renda sem suporte legal e usar as verbas para despesas pessoais ou de representação é proibido», continua.

Todavia, apesar de ter concluído que Caetano da Silva «sabia e não podia desconhecer que [o recebimento de numerário] era ilícito, atenta a longa carreira ao serviço da administração pública e do MNE», que não registou o dinheiro «porque não quis e porque não podia perante a ausência de base legal para o recebimento das citadas quantias» e que «optou consciente, livre e deliberadamente por infringir os deveres gerais» e «manter uma prática ilegal», o instrutor do processo disciplinar – o embaixador José Filipe Morais Cabral – optou por aplicar uma pena de apenas 20 dias de suspensão, suspensa um ano na sua aplicação. Motivo: o facto de Caetano da_Silva ter uma carreira de 42 anos irrepreensível, de ter tido uma atuação exemplar em Angola, o ter reconhecido o erro e mostrado arrependimento e o facto de não ter retirado benefícios económicos da sua conduta. Estes benefícios não ficaram comprovados para a IGDC porque não foram encontrados registos das entregas de dinheiro compatíveis com os depoimentos daqueles que pagaram rendas à embaixada. As ‘folhas de caixa’ encontradas estavam incompletas e não havia recibos de pagamento ou registos de levantamentos em numerário.

Contudo, a atuação do diplomata foi enviada ao Tribunal de Contas e à Procuradoria-geral da República, que está a investigar se esses benefícios ocorreram ou não. O último posto do diplomata foi no México, de onde foi exonerado em novembro de 2022, quando já decorria a investigação às contas da embaixada de Angola.

Uma pena leve

O caso do embaixador Pedro Pessoa e Costa – que não respondeu ao contacto do Nascer do SOL – é semelhante. Quando chegou a Luanda, em março de 2020, o arrendamento de frações do edifício da embaixada já estava em vigor. O diplomata foi informado dos pagamentos pelo então conselheiro de embaixada, nomeadamente da situação do delegado da AICEP, Luís Fontoura, a quem eram cobrados 450 euros por mês. Até fevereiro de 2022, data em que Pessoa e Costa deixou Luanda, o funcionário entregou a uma assistente técnica da embaixada um total de 10.800 euros.

Outro caso identificado pela IGDC foi o de dois estagiários que ocuparam uma parcela do edifício Ingombota, onde está instalado o centro de vistos da embaixada portuguesa. Em 2021, Pessoa e Costa pediu-lhes, no seu gabinete, que pagassem mensalmente 50 euros para despesas de utilização do terraço nos ‘convívios/patuscadas’ que se realizaram durante o confinamento. Os dois perguntaram se haveria recibo e foi-lhes dito que não, que os contributos eram voluntários – ambos pagaram.

Tal como no caso de João Caetano da Silva, a ausência de documentos que provem as entradas e saídas de dinheiro foi considerada fundamental para a aplicação de uma pena de 20 dias de suspensão (suspensa um ano na sua execução). Ao longo dos anos, uma assistente técnica confessou ter destruído os registos por pensar que eles não importavam.

Durante o inquérito, Pessoa e Costa assumiu que utilizava o dinheiro da «caixa» para «pequenos pagamentos de compras» no «mercado informal e/ou relacionadas com atividades de diplomacia económica». Justificou essa informalidade com o encerramento de lojas durante o confinamento e que alguns produtos só se encontravam em mercados de rua, incluindo «lâmpadas, produtos sanitários/covid e madeiras». Assumiu também que essa verba serviu para pagar aos «empregados que apoiavam as atividades com as empresas, algumas travessas descartáveis para essas mesmas atividades, material elétrico, obras de recuperação de janelas e pavimento (…) assim como tratamento da água da piscina». Acrescentou que no Natal também deu 50 euros de «gratificações aos seguranças e jardineiro». Também uma empregada da residência recebia 115 euros por mês, que saíam dos valores das rendas ilícitas. «A situação irregular dessa colaboradora foi um tema que tentei resolver ao longo da minha estadia», assumiu.

Todavia, o atual embaixador de Portugal em Oslo disse também que o tema foi-lhe apresentado, à chegada, como «a prática instituída» e que não teve «qualquer razão para duvidar que a mesma não e baseasse nos pressupostos legais».

Para o instrutor do processo – o embaixador António de almeida Lima –, apesar de Pessoa e Costa nada ter feito para parar a prática ilegal, sabendo que era ilícita, a culpa foi atenuada por não se conseguir comprovar que o dinheiro tenha sido usado em benefício próprio e porque a prática estava instituída. A pena aplicada foi semelhante à de João Caetano da Silva: suspensão por 20 dias, suspensa um ano na sua aplicação.