A legalidade sem moral: a morte da ética na politica atual

A política reduziu-se à arte de não ser apanhado — ou de garantir que, sendo apanhado, não se tenha infringido a letra da lei. A moral, dizem-nos, é coisa da consciência de cada um. O resultado é a total desvinculação entre legalidade e legitimidade moral.

Vivemos hoje uma perversão devastadora na esfera política: a redução da ética republicana à mera legalidade. “A ética é a lei”, ou seja, “pode não ser moral, mas é legal”. Esta fórmula, repetida com cinismo, revela o empobrecimento do ideal republicano. A ética, reduzida à sua expressão normativa mínima, foi amputada da sua verdadeira função: a de promover virtudes cívicas, responsabilidade pessoal e exigência moral no espaço público.

A antiga ética republicana implicava uma consciência activa do bem comum, do serviço à comunidade, do sentido de responsabilidade perante os outros. Hoje, essa dimensão desapareceu, tanto do espaço público como da consciência individual. Os inúmeros casos e “casinhos” que assolam a política, o mundo empresarial e o sector bancário em Portugal são apenas sintomas visíveis dessa degradação.

Perante cada escândalo — real ou potencial —, os protagonistas refugiam-se na legalidade: “não fiz nada de ilegal”. Já não se pergunta se foi ético, se foi digno, se correspondeu ao que se espera de alguém com responsabilidade pública. A política reduziu-se à arte de não ser apanhado — ou de garantir que, sendo apanhado, não se tenha infringido a letra da lei. A moral, dizem-nos, é coisa da consciência de cada um. O resultado é a total desvinculação entre legalidade e legitimidade moral.

Mais inquietante ainda é a reação da sociedade: perante cada novo episódio, instala-se um surto de indignação breve, seguido de resignação. A normalização da corrupção, a banalização do desvio ético, consolida a ideia de que “todos fazem o mesmo”. A ética pública cede, assim, ao cinismo conformista.

O quadro particular português que é cada vez mais grave, não é uma singularidade nossa, pois também se compreende numa tendência mais ampla: a degradação do valor do plano moral e até das virtudes cívicas. Podemos, de facto, referir-nos à pobreza moral do nosso tempo. Essa decadência tem múltiplas dimensões. Uma delas deriva da própria ideologia liberal, segundo a qual apenas o direito deve regular a vida em sociedade, enquanto as concepções de bem, de vida boa, de virtude cívica e de valores morais pertencem exclusivamente à esfera individual. Esta separação entre direito e ética despoja o espaço público de qualquer substância moral partilhada, transformando a vida colectiva numa mera coexistência de vontades isoladas.

A segunda manifesta-se na juridicização da política. Questões fundamentais do domínio moral e político — como a eutanásia, o aborto, a liberdade de expressão, o discurso do ódio ou os limites da ciência e da bioética — são transferidas para os tribunais. Em vez de serem discutidas democraticamente, tornam-se matérias técnicas decididas por juízes, afastando o debate da cidadania activa e comprometida. O que deveria ser objecto de deliberação pública transforma-se numa linguagem técnica, distante e inacessível.

A terceira reside na ideia, cada vez mais dominante, de que os direitos individuais são trunfos absolutos contra a maioria. Mesmo quando o bem-estar colectivo justificaria algum tipo de limitação, prevalece a noção de que a vontade individual deve ser sempre protegida. O indivíduo é elevado à condição de medida de todas as coisas, e a justiça jurídica passa a confundir-se com a salvaguarda incondicional da sua autonomia. Neste modelo, o individualismo absoluto converte-se no fundamento último — e quase inquestionável — da justiça, da legalidade e da própria democracia. Este paradigma conduz à marginalização do bem comum, da tradição e dos costumes partilhados. Estes passam a ser vistos, não como fontes legítimas de orientação colectiva, mas como expressões arbitrárias da maioria ou, pior ainda, como potenciais ameaças à liberdade individual irrestrita. O resultado é uma democracia esvaziada de conteúdo ético e de referência cultural comum.

Importa notar que a juridicização da política não ocorreu por acaso. Foi incentivada por sectores políticos que encontraram na delegação das grandes decisões aos tribunais, uma forma de blindar o seu poder, de torna-lo perpétuo. Ao deslocarem o conflito político para o terreno jurídico, conseguiram preservar a sua hegemonia, dificultando a emergência de alternativas e tornando ilegítimo o próprio dissenso. Essa mentalidade, cada vez mais difundida, abandona qualquer referência moral substantiva e promove uma conduta estritamente orientada pela legalidade formal. Com isso, o direito converte-se na estrutura normativa dominante do liberalismo contemporâneo, elevado à condição de dogma. O que é legal torna-se, automaticamente, legítimo e justo. Esta absolutização da legalidade não é neutra: trata-se, muitas vezes, de uma estratégia de poder — uma forma de instrumentalizar o direito para neutralizar adversários políticos e interditar discursos que possam ameaçar a ordem vigente. O legalismo, neste contexto, deixa de ser um instrumento da justiça para se tornar uma ferramenta de controlo simbólico e contenção do pluralismo democrático.

Ora, uma sociedade que apenas se orienta por códigos legais — e que perdeu qualquer referência a valores superiores — é uma sociedade amputada da sua alma cívica. O jurista e o técnico substituem o cidadão moral, e neste caso, o político instrumentaliza o próprio direito. A letra da lei torna-se escudo para tudo. Como escreveu Aleksandr Soljenítsin, num discurso notável intitulado O Declínio da Coragem:

“A sociedade ocidental escolheu para si a organização mais adequada aos seus propósitos, baseada na letra da lei. Os limites do que é correto e dos direitos humanos são determinados por um sistema legal, cujos contornos são amplos. As pessoas adquiriram uma capacidade considerável de usar, interpretar e manipular a lei. Todo o conflito é resolvido de acordo com a letra da lei — e este procedimento é considerado perfeito. Se alguém estiver coberto do ponto de vista jurídico, nada mais será necessário. Ninguém se atreve a dizer que, apesar disso, ainda pode estar errado. O autocontrolo voluntário é quase inexistente: todos se esforçam por empurrar os limites da legalidade até ao extremo.”

Soljenítsin advertia-nos que tanto a ausência de um quadro jurídico como a sua absolutização são indignas da condição humana:

“Passei toda a minha vida sob um regime comunista e posso afirmar que uma sociedade sem quadro jurídico é algo terrível. Mas uma sociedade sem outra escala que não a legal também não é digna do homem. Uma sociedade baseada apenas na lei, e que nunca procura algo mais elevado, perde a oportunidade de explorar toda a gama das possibilidades humanas. O tecido da vida torna-se frio e formal. Quando tudo é regulado juridicamente, cria-se uma atmosfera de mediocridade moral que paralisa os impulsos mais nobres do ser humano.”

É necessário recuperar — e não apenas no plano da retórica — comportamentos e exigências verdadeiramente éticas, quer por parte dos responsáveis políticos, quer por parte dos cidadãos. Essa exigência elevaria a nossa vida em sociedade a um patamar qualitativo muito superior. Uma política sem ética é uma política deslegitimada — e uma democracia que se esgota na legalidade é uma democracia em risco de apodrecer por dentro.