Catarina Costa. Os lugares-comuns da catástrofe

Numa sensibilidade de fim do mundo, tão ao gosto do imaginário contemporâneo, Catarina Costa dá-nos uma poesia em tons bastante sóbrios, sem qualquer desespero ou melancolia, que se limita a cartografar a transformação da catástrofe em lugar-comum.

Mais do que poesia, o novo livro de Catarina Costa (Os que não caem como Ícaro) é uma escrita, um poema que se abre em prosa, que reclama para si a sobriedade de um olhar impotente. É a beleza, esse nome tão antigo, que se torna doravante impossível, ou melhor, que se torna estranho ou mesmo indiscernível com a agressão e, consequentemente, com a morte (“em sentido inverso/ podemos descobrir em cada arma/ a beleza frágil do escudo”). Num dos últimos poemas deste pequeno livro, Catarina Costa coloca em cena uma espécie de dialéctica que rapidamente se transforma em conhecimento sofrido, numa ferida que dilata o olhar – impedindo-o de se fechar, o que significa, também, que obriga a ver qualquer coisa que se torna inapagável do horizonte. Começa por falar num movimento de afastamento que nos daria, além da “sujidade/ que se deposita nas pétalas” uma “imagem reconfigurada e limpa da flor.”. Mas esse movimento de retirada, esse afastamento, tornou-se impossível, “o conhecimento impede-nos de ficar atrás/ e viver para a contemplação da beleza”. Um olhar fendido, bífido – como a língua de que falava Paul Celan numa conhecida citação –, contamina de antemão qualquer forma de beleza, “sujando-a” constantemente, dando-lhe um cheiro pútrido da decomposição. Poder-se-ia dizer que esse nome antigo e imemorial se transformou, para Catarina Costa, impossível ou, pelo menos, inacessível. Mas também se poderia dizer – é, talvez, uma das saídas que esta poesia deixa por explorar – que a beleza se tornou, para nós, hodiernos, uma flatus vocis cujo sentido permanece indecifrável – e que vale, portanto, pela sua indecifrabilidade, por surgir como um resto inintegrável, a que não conseguimos dar sentido, na ordem económica do mundo, na mistura de acaso e infelicidade que Catarina Costa vê como a lei que rege os assuntos humanos.

“Refreia a pulsão para embelezar o que decai,

Capta com objectividade cada esquina,

Cada casa, cada rosto que desce pelo tempo,

Regista-os sem idealismo

Antes que sejam subitamente aniquilados”

Este primeiro poema de Catarina Costa dá o tom, digamos assim, ao conjunto bastante coerente de poemas que se seguem – não são uma coleção de poemas unidos por temas ou outra coisa qualquer, são um bloco indecomponível onde em cada poema deposita um diferente aspecto sobre o mesmo conhecimento, sobre a mesma catástrofe. E é uma “tonalidade branca”, à semelhança do verso branco, onde o que está em causa é uma objectividade que, no limite, diz apenas respeito a um determinado choque que retira qualquer forma de investimento face aos objectos – eles são, doravante, cifras que escondem um vazio, faces e rostos da mesma inevitabilidade, do mesmo acaso.

Poder-se-ia dizer que encontramos, nesta poeta e neste livro em concreto, uma espécie de dispositivo bastante conhecido de outros lugares: uma vigência sem significado, querendo com isso dizer que há algo que continua a vigorar sem que, no entanto, se saiba já o seu sentido ou o seu lugar – daí, de facto, o lado irresolúvel que já encontrámos no que diz respeito à beleza, que surge em tons éticos no primeiro poema, não permitindo qualquer embelezamento ingénuo da decadência, seja ela ruínas ou outra coisa qualquer, para, depois, aparecer como transportando sempre um conhecimento sofrido. É essa vigência sem significado que encontramos, por exemplo, numa constante e ininterrupta, muitas vezes metafórica ou não totalmente evidente, reflexão sobre o lugar do poeta. Este tem ainda, em Os que não caem como Ícaro, aquele prestígio antigo que coloca a poesia no centro nevrálgico do tempo – neste sentido, Catarina Costa é uma poeta profundamente epocal –, na ferida que distancia o agora de si próprio. E o poeta é, no limite, alguém que se situa na fractura da temporalidade, habitando as sombras do presente. Esta visão grandiloquente é particularmente evidente quando a poeta retoma a conhecida imagem do estafeta logo no segundo poema, para se endereçar a ela de novo pouco depois (falando de uma “longa teia de fios/ que se vão rompendo na noite sem culpa”, onde as histórias dos sobreviventes “prendem por um fio/ aos ouvidos, lábios e olhos/ do que ficaram”). Podíamos citar René Char (segundo o qual “a nossa herança não é precedida de nenhum testamento”) ou relatar a história do estafeta que chega, já morto, para dar notícia da vitória numa batalha (Jacques Derrida, filósofo infelizmente caído em desuso, comparava esta imagem à própria literatura), mas o que se torna interessante, em Catarina Costa, é que esta mensagem que chega a nós, isto é, ao poeta, aos que “chegam por último”, aos que nasceram “um pouco depois da hora”, “testemunhas tardias/ puramente contemplativas”, é um “quase-nada”:

“não mais do que uma migalha

Ou nem isso,

Um quase-nada,

Poeira

Ou menos,

Uma partícula de pó

Separável de outras

Tão solitária que logo percebemos

Ter de ser protegida”

Também aqui uma certa irresolução parece estabelecer uma tensão entre, por um lado, a posição ainda grandiloquente do poeta, que reclama para si o lugar de “estação meteorológica para o fim do mundo”, para usar uma imagem de Kraus, e que se situa na “batida/ do coração arrítmico da dessincronia” (num dos poemas onde mais se faz notar a presença de Walter Benjamin, figura espectral ao longo de todo o livro e que nunca é explicitamente convocado) e, por outro lado, esse quase-nada que recebe enquanto herança e que terá, no fim, de também ele transmitir aos vindouros. À grandiloquência do poeta enquanto funcionário da humanidade, seja para atestar dos terrores do presente, seja fazendo apelo a um engajamento ingénuo e desprovido de sentido, Catarina Costa vai baixando o tom, falando apenas das coisas “que eu trazia (e que) não cabiam em lado nenhum”: em lado algum é o lugar do poeta no presente, por mais que retoricamente se pretenda situar num centro que já não se encontra em nenhum lado. Talvez seja preciso aprofundar esta dimensão negativa, mas não grandiloquente, da poesia.

Tal como a figura do poeta que se recorta no conjunto destes poemas, também a estranha sobrevivência de um tema teológico pode ser reconduzida a uma vigência sem significado. De facto, Aqueles que não caem como Ícaro é um livro que faz uso de um tema que é do domínio da teologia: a queda. Tudo, desde os primeiros poemas até ao final, e contrariando o próprio título, é queda, tudo “desce pelo tempo” até à morte – uma ars moriendi sem sabedoria, sem lição alguma, apenas uma “homenagem às coisas condenadas”. Mas também aqui há como que uma suspensão dessa dimensão teológica, como se Catarina Costa usasse os protocolos teológicos para, no mesmo movimento, sair deles: somos, agora, alheios à eternidade (sempre o fomos, certamente, nada sabemos nem poderemos saber dela e, caso houvesse economia no dicionário, esta palavra seria das primeiras a desaparecer) e “continuaram a pregar os corpos à matéria/ mas já sem aquele fausto sacrificial”. Mas talvez também aqui, tal como na imagem do poeta e da poesia, falte levar ao limite o próprio pensamento, aí onde a queda se transforma na pertença à terra e o estarmos alheios à eternidade numa beatitude.

É conhecida aquela imagem de Hermann Broch segundo a qual se escreve para ir depositar o seu livro na biblioteca de Alexandria, antes da catástrofe. Nesta imagem há toda uma urgência desesperada – sabendo, no entanto, que a catástrofe é inevitável – que não surge em Catarina Costa. E talvez não surja porque esta poesia percorre todos os lugares-comuns da catástrofe, tal como ela é pensada pela poesia, e não só: um filme onde as pessoas habitam um limbo “onde cada qual pode ser feliz/ ou infeliz à sua maneira” – antes de uma “eventual catástrofe” –, o “crânio do neandertal” onde se vê as feridas, a fotografia, qualquer fotografia, que mais não é que o símbolo da morte, a mistura indestrinçável entre assassinos e vítimas, as cinzas, o “século mais mortífero”, aqueles que “morreram noutros séculos” (uma outra catástrofe que não pode ser redimida, por mais que eles tenham pensado em nós, “turba nebulosa de quem estava para chegar”), a guerra e a “sobrevivência à devastação”, as ruínas, um castelo de areia que não deixa “sequer/ um rastro de morte” quando desaparece para sempre, o esquecimento profundo que memória alguma pode contrariar, a “fina camada branca de bolor –/ último manto que cobre o que está prestes a desfazer-se”. Todos os motivos, todos os lugares-comuns que surgem quando se trata de uma catástrofe que se encontra na iminência de desabar sobre nós – esta catástrofe tem um nome: tempo – comparecem nesta poesia que é bastante cultural sem, no entanto, tornar evidente essa sua dimensão – a cultura surge aqui como o conhecimento, sofrido, da barbárie. E talvez se possa proceder dialecticamente: se esta poesia está cheia de lugares-comuns, cheia de uma memória que nos chega de uma certa tradição poética do século XX, se a catástrofe se deposita num conjunto de imagens gastas e conhecidas (a fotografia, que surge várias vezes na primeira parte do livro) que Catarina Costa se limita a percorrer é porque, no limite, é a própria catástrofe que se tornou num lugar-comum. E isto, no limite, significa duas coisas: que ela se transformou hoje num horizonte inescapável e que, por outro lado, ela é, agora, o próprio lugar-comum. Não há nada mais banal que a catástrofe, que é agora declarada como permanente.