«Obrigado pela tua resistência. Obrigados aos lisboetas». Estas foram as primeiras palavras que o Papa Francisco me dirigiu. Foi no dia 22 de abril de 2023, quando fomos recebidos em audiência privada no Vaticano, a cem dias de começar a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Nunca tinha estado com o Papa Francisco, mas senti naquele momento uma ligação invulgar. Parecia que já me conhecia; parecia saber as dificuldades que atravessava, depois daquelas semanas em que a discussão sobre o palco se mediatizou e se multiplicaram as críticas (que depois se mostraram infundadas e injustas…) à JMJ e à CML.
Nesse mesmo dia, nessa manhã passada nos longos corredores do Vaticano e no gabinete do Sumo Pontífice, descobri um Papa que tanto marcou o mundo. Lembro-me perfeitamente da forma como o Papa nos questionava sobre a organização da JMJ, sobre Lisboa e os lisboetas, sobre as suas dificuldades e preocupações. Percebi então que queria visitar um dos nossos bairros municipais, o qual acabou por ser o Bairro da Serafina. E não posso esquecer o momento final – e que ficou para a posteridade –, em que o Papa agradeceu aos lisboetas num vídeo gravado no meu telemóvel. Achando eu que incomodaria o Papa por estar a gravar um vídeo, ele próprio me desarmou com a sua boa disposição, dizendo que não me preocupasse pois quando o D. Américo Aguiar o visitava pedia sempre que gravasse vídeos, e que o fazia com todo o gosto.
Por detrás deste homem simples que conheci naquele dia – desse homem simples que inaugurou o seu pontificado escolhendo precisamente o nome de outro homem simples, São Francisco de Assis – esteve uma figura transformadora. Uma figura que fez dessa simplicidade da aparência e do trato uma força que deixou a sua marca na história da Igreja e do mundo. Dele, recordo três traços – três imagens que foram tomando forma na minha mente desde aquele dia 22 de abril de 2023, e que associarei sempre ao Papa Francisco.
A primeira imagem é a de um Papa das pessoas. De um Papa que impressionava e desarmava pela sua proximidade autêntica, natural, espontânea, que não necessitava das operações de cosmética do marketing ou do recurso aos eufemismos da comunicação profissional. Quem esperaria que o Papa beijasse os pés de um grupo de reclusas de uma prisão de Roma? O Papa Francisco fê-lo, perante as lágrimas daquelas mulheres. Quem esperaria que, aos 86 anos e perante o calor asfixiante de agosto, percorresse todo o Parque Eduardo VII, cumprimentando alegremente os jovens presentes em Lisboa para o ver? O Papa Francisco fê-lo. O Papa Francisco demonstrava esta proximidade em cada momento, e fazia-o com alegria e entusiasmo, lembrando precisamente a sua primeira exortação apostólica, a Evangelii Gaudium.
A esta sua proximidade genuína com as pessoas aliava outro traço: a sua capacidade para fazer pontes. O seu pontificado foi feito de exemplos concretos disso mesmo. Exemplos que se manifestam no diálogo inter-religioso, como no lançamento do Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado em conjunto com Ahmad Al-Tayyeb, Grão Imame da Mesquita de Al-Azhar, a grande sede do conhecimento do islão sunita, na primeira visita papal à península arábica. Este exemplo de diálogo inter-religioso foi dado num mundo cada vez mais polarizado e radicalizado, mostrando que é possível conjugar as diferenças; que essas diferenças não são irreconciliáveis ou incomensuráveis, que não se reduzem à mecânica destrutiva da luta pelo poder; que mesmo perante essas diferenças podemos falar com o «outro», podemos estender-lhe a mão e tentar perceber o seu lado. Foi sempre essa a forma de estar do Papa, que, ainda como Jorge Bergoglio, partilhou durante décadas uma conhecida amizade com o rabino Abraham Skorka, de Buenos Aires, que não há muito tempo afirmou que o Papa era o «mesmo homem» que conhecera na Argentina. Este foi o exemplo que deu o Papa Francisco, perante um ambiente cada vez mais hostil a esta «cultura do encontro», como ele tanto gostava de chamar-lhe.
Foi também luz em tempos de uma certa escuridão. Quem é que não ficou marcado pela sua imagem celebrando, sozinho, a bênção pascoal Urbi et Orbi diante de uma Praça de São Pedro vazia, molhada pela chuva? Tínhamos acabado de entrar no tempo da pandemia: o confinamento tinha obrigado as pessoas a fecharem-se nas suas casas e a esconder as suas caras com as máscaras que passámos a usar no dia-a-dia. Todos nos recordamos do Papa Francisco percorrendo sozinho as escadas da Basílica de São Pedro nesse momento histórico – um momento que evocou com o seu simbolismo a necessidade de não tornarmos o isolamento num estado permanente, de não nos fecharmos nos muros erguidos pela pandemia.
Todos estes momentos ficaram na minha memória. No entanto, pela emoção que então senti, o momento de todo o pontificado do Papa Francisco que mais me comoveu foi, sem dúvida, um momento vivido aqui em Lisboa: a missa de abertura da JMJ no Parque Eduardo VII. Aquele momento em que o Papa exclama, perante mais de um milhão de jovens que enchiam o jardim e se estendiam até bem fundo na Avenida da Liberdade, que a Igreja era de todos – de «todos, todos, todos». Por isso mesmo, é-me impossível não associar o Papa Francisco a uma terceira imagem, emocionalmente inesquecível para mim: como o Papa de Lisboa. Como o Papa que marcou Lisboa.
Foi o Papa que, chegado a Lisboa, cunhou a nossa Lisboa como a «cidade de sonhos». Teve em conta nesta sensível caracterização não apenas os milhões de jovens de todo o mundo para quem Lisboa se tornava, de facto, essa cidade de sonhos; teve também em conta a nossa histórica multissecular, as gerações que aqui vivem e que aqui viveram, que daqui partiram e que aqui chegaram, que em Lisboa sonharam e em Lisboa concretizaram os seus sonhos. Foi o Papa que visitou o Bairro da Serafina. Que inaugurou o Parque Tejo com uma vigília inesquecível. Que encheu o Parque Eduardo VII perante as cores de uma Lisboa veranil, alegre, entusiasmante. Foi quem trouxe um milhão e meio de jovens que encheram a nossa cidade e a tornaram na capital mundial da juventude. Desses dias retenho os inúmeros testemunhos de lisboetas anónimos que me interpelavam na rua, felizes por Lisboa estar a viver a Jornada, felizes por Lisboa estar à altura da Jornada, felizes por poderem assistir a algo que nunca tinham vivido. Aos lisboetas o Papa dirigiu o seu justo reconhecimento, quando afirmou que a JMJ de Lisboa tinha sido a mais bem organizada em que participara.
Se tivesse de resumir toda esta obra do Papa Francisco escolhendo cuidadosamente uma palavra para a descrever, qual seria a minha escolha? Certamente escolheria, em sua memória, uma das três virtudes teologais: a esperança. A esperança que foi o denominador comum do seu pontificado: a esperança que espera a paz; a esperança que vive e serve de alento para aqueles que mais precisam; a esperança que constrói pontes e aproxima os povos. O Papa Francisco foi exemplo deste valor incalculável da esperança. A qual, como escreveu, «é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna». O Papa Francisco fez-nos acreditar na possibilidade desta vida, tornando-se, para mim e para tantos, no Papa da esperança. É assim que sempre o recordarei.